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domingo, 28 de setembro de 2014

"Herdeiro dos Ventos" / Mustafá Ali Kanso / conto fantástico


Herdeiro dos Ventos [Conto de Mustafá Ali Kanso]10 de Novembro de 2011, por Desconhecido
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Herdeiro dos Ventos [Conto de ficção científica]


O autor Mustafá Ali Kanso cedeu gentilmente o conto inédito Herdeiro dos Ventos para publicação aqui no HypeScience. 
Ao final descubra como concorrer ao mais novo lançamento do Autor: o livro A Cor da Tempestade, com lançamento programado para a quinta-feira, onde este mesmo conto foi publicado.


Aos escritores de FC.


Ele nasceu prematuramente; pesava pouco menos de dois quilos e nem para chorar tinha forças. Foi mesmo um milagre ter sobrevivido.
– Pulmões fracos – sentenciou a parteira.
Avesso ao tempo, logo deixou de ser um bebê raquítico para se tornar um menino raquítico.
Numa casa de seis irmãos era o temporão crescendo entre as frestas, incapaz de defender-se das brincadeiras daquele mundo.
– Coração fraco – lamentou a mãe.
Nenhuma lembrança restou dessa travessia e nenhuma fotografia foi fixada no álbum da família, e, como todo menino de sua época, foi trabalhar no campo.
No entanto, suas mãos eram pequenas demais para segurar uma enxada. Completamente inútil para a lavoura.

– Braços fracos! – praguejou o pai.
De seu caráter não se espremia nenhuma gota de tenacidade. Era dócil e conciliatório, cordato e ponderado, falava pouco e não brigava. Era arredio às palavras ásperas e quando agredido não revidava.
– Espírito fraco – suspirou o vigário.
Como era manso tanto na fala quanto nos modos, foi internado no seminário. Quem sabe lá, ele despertasse para a vocação religiosa ou mesmo pudesse esconder em clausura a vergonha de sua cacogenia.

Apesar da esqualidez de suas palavras que competiam com a de sua figura, tinha agilidade no pensamento. Aprendeu a ler com rapidez e dominou com facilidade a escrita. Descobrindo a biblioteca da missão, entregou-se à recreação de seu espírito, devorando todos os livros que encontrava. No entanto, demonstrou um interesse descabido pela ficção e como um herege começou a escapulir de suas horas de estudo para caminhar invisível pelas nuvens com o balão de H. G. Wells ou viajar submerso com Júlio Verne pelos oceanos azuis de Nautilus.

Em um caderno amarrotado começou a ensaiar seus primeiros contos envolvendo fantásticas máquinas voadoras e extraordinárias viagens para a lua. Volta e meia era flagrado em franca heresia: ousava encontrar mais verdades nestas histórias que na bíblia.

As surras freqüentes mostraram-se completamente em vão. Apenas tornaram manco de corpo quem já era manco de espírito.

Ele não entendia o significado das palavras sagradas, não assimilava o martírio da dor e não respeitava o símbolo da autoridade.

– Fraco da cabeça – insistiu o tutor.
Era ingênuo demais para sentir medo e não se importava se o privassem de beber ou de comer. As sessões de jejum apenas lhe conferiram aquele sorriso beatificado, o que, sem dúvida, correspondia a um descabido desacato.

Provou-se que sua paixão pela literatura era definitivamente incorrigível a ponto de ousar escrever suas próprias histórias. Como controlar alguém que pretende pensar por si mesmo?

Devolveram-no à família para a contrariedade dos pais.

Longe das bibliotecas abandonaria o pérfido costume de ler e, sem tempo livre, não poderia escrever ou pensar. Deram-lhe tarefas femininas para ocupar o seu dia, tais como ordenhar as vacas e recolher os ovos, tosar as ovelhas e alimentar os porcos, dar ração para as carpas e escovar os cavalos. Se isto servia muito bem para domesticar as mulheres da comunidade, funcionaria com ele.

Nas tarefas repetitivas libertou ainda mais sua alma. Com alegria conversava com os animais, relatando cada livro que lera. Falou sobre o Minotauro para as vacas, contou sobre Circe para os porcos, descreveu as sereias para as carpas. Jasão era um assunto para as ovelhas e Tróia era o tema predileto dos cavalos.

Parecia que tais assuntos agradavam sua insólita platéia. As vacas e as galinhas ficaram mais produtivas, os porcos e as carpas mais viçosos, e as ovelhas e os cavalos mais dóceis.

Porém, a alegria de seus pais duraria pouco. Ele encontrara, mesmo nestas inocentes tarefas, um meio de subverter a ordem pré-estabelecida.
Continuou a escrever seus próprios livros usando a tinta de seus mais criativos gestos nas páginas mais etéreas do ar.

Num fim de tarde quando descia a encosta do morro manquitolando com um fardo de pasto nas costas escorregou e, dobrando-se pelo peso da carga, foi lançado pela ribanceira no que teria sido uma queda fatal. Para seu espanto, desceu pela campina como uma pluma, revelando para si um inacreditável talento. Ele que já estudara no seminário a obra completa de Bernoulli intuía incontestavelmente sua impossibilidade matemática de voar. No entanto como todo bom escritor, a despeito das evidências, desafiou o que era correto e certo e continuou voando.

Nos dias que se seguiram, o mundo ganhou novo significado. Liberto das garras que o aprisionavam ao solo corria com suas asas de vento, em todas as campinas, sem que seus pés tocassem o chão. Ascendia pelas linhas invisíveis da sua já pautada atmosfera. Ganhava o ar com a fluidez de uma indescritível agilidade para escrever naquelas tênues páginas o produto de sua vontade.

Sabia que a cada linha desta ascendente escrita ele se aproximava mais de si mesmo. Escrevia em seu próprio idioma iniciando cada página, de cada dia, sempre pelas linhas de baixo e assim ia escrevendo, cada vez mais para o alto. Em sua alegria não anteviu que poderia ser, mais uma vez, flagrado.

Seu pai, desconfiado de toda aquela indesejável felicidade, escondeu-se na campina, e, estarrecido, presenciou o inusitado.

Seria bruxaria, aberração da natureza ou número circense?

Tanto faz. Em qualquer das hipóteses seriam excomungados, apedrejados ou cobertos de ridículo.
O menino que sempre fora um avoado da cabeça agora se tornara também um avoado de corpo.

Na dúvida o levaram ao médico da capital para descobrir se não lhe nasceriam penas, pois era de consenso que tudo o que acontecia na alma logo se manifestaria no corpo. Era só uma questão de tempo.

Depois das sangrias de praxe e de uma rápida terapia de sanguessugas, foi desvendado o perigo daquela transferência. Se ele já vivia em espírito no mundo da Lua, em breve o seu corpo, para lá, seria transportado. Por isso ele voava. Foi a conclusão unânime dos especialistas.

Seu pai temia o ridículo, sua mãe, os perigos, e o vigário, a heresia. Assim se reuniram os três para confabular. Depois de muito ponderar, e em comum acordo, decidiram acorrentá-lo a uma bola de ferro.
Estava proibido de voar.

Passou então a executar suas tarefas diárias com a pesada bola de ferro firmemente aguilhoada à perna boa. A outra já tinha sido imobilizada pelas surras da vida.

No entanto, a vizinhança indignou-se ao ver o frágil menino acorrentado.
Era perturbador. Fisicamente ele já se parecia com um fantasma. Ainda mais, arrastando suas correntes, do nascer ao findar do dia. Era a própria figura de um espectro saído de algum pesadelo.
“Que nova raça maldita essa criatura servia de adão?” – perguntaram-se os ofendidos.

Os sustos foram se tornando freqüentes mesmo para os mais avisados e assim, foram todos exigir solução.

Ficou acertado – para o sossego da vizinhança e em consideração à saúde das gestantes – que ele ficaria trancafiado em casa.

Com o tempo perceberam que a pesada bola de metal riscava o chão e as grossas correntes provocavam acidentes na cozinha. Seus pais decidiram, por fim, acorrentá-lo às fortes pilastras do porão. Ali não poderia ler, pois não havia luz e tampouco poderia voar pela carência de espaço.
Arrastaram-no para seu novo cativeiro, felizes com a praticidade. Como o teto era muito baixo o menino teria que ficar ajoelhado. O que seria uma ótima penitência para aquele encrenqueiro incorrigível. Afinal, por que ousara ser assim tão diferente?

Todos os problemas se resolveram de um só golpe e já no segundo dia se esqueceram dele completamente, restando apenas uma adorável sensação de alívio.

Foi no terceiro dia de seu privado cativeiro, acorrentado, de joelhos, na escuridão daquele mundo estéril, que ele aprendeu sua última lição de humanidade. Sentia-se como um novo Prometeu em seu martírio; só que nesta nova versão era a indiferença dos homens quem devorava suas entranhas.

Surpreendentemente libertou-se por si de suas correntes. Invisível, ganhou o ar, identificando-se integralmente com sua obra. Passou a habitar, a partir de então, a alma dos inconformados: esse tipo de gente perniciosa que se torna célebre por invocar os ferozes ventos da mudança.

Séculos depois, aquela casa foi transformada, ironicamente, numa grande biblioteca. Sem que ninguém sequer imaginasse que em suas fundações, jazia em eterna oração, o esqueleto de um anjo acorrentado.

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