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quarta-feira, 6 de setembro de 2017

"É possível compreender? // Roberto DaMatta

É possível compreender?

Mudamos as leis, mas não preparamos a sociedade para as mudanças por elas requeridas

Roberto DaMatta, O Estado de S.Paulo
06 Setembro 2017 | 02h00
Um dos mistérios das sociedades humanas é a constatação de como os seus membros são (e estão) convencidos de que suas crenças, gestos, comidas, rituais, utopias, ideologias (e tudo o mais que denominamos “estilo de vida”) são óbvios, virtuosos, legais e religiosamente certos. O deles é fantasioso. Mas o nosso é mais do que verdadeiro - é real. 
Além disso, é espantoso descobrir que toda essa tonelagem de valores é invisível aos seus membros. O crente não tem consciência da sua crença. O feitiço é tão grande a ponto de pensarmos que falamos uma língua quando é a língua que nos fala. E só tomamos consciência disso quando nos confrontamos com a aparente algaravia de um outro idioma. O encontro com o outro obriga a perceber a diferença e a diferença é o limite que condena a traduzir e a tentar compreender.
Para o portador da boa-nova e para o crente, o extraordinário é descobrir o tamanho do batalhão de outros crentes que, com crenças diferentes das suas, também formam a humanidade. Esse foi o susto desagradável que a antropologia social deu no eurocentrismo. A tolerância é um hóspede não convidado de um mundo que confunde tecnocracia com sabedoria. 
A diversidade agencia dúvidas, conduz a escolhas e engendra o inimigo capital dos crentes: a liberdade, o ceticismo e o inesperado abraço da compreensão. O caminho da transcendência anunciada por alguns santos, poetas e filósofos. 
Mesmo quando o crente conhece outras crenças, ele não as percebe como alternativas, mas as encara dentro de uma matriz que vai do infantil e do eventualmente divertido até chegar ao “esquisito”. Daí para o errado, o proibido, o censurável, o louco e o abominável, é um passo. 
Mas como toda rigidez contém o seu contrário, só a crença produz descrença. E, assim, toma o infiel como desafiador - o outro absoluto -, como forte ou superior justo porque ele resiste. A religião abolida torna-se feitiçaria; a ideologia reprimida vira virtude, a música censurada é a mais ouvida. E o estrangeiro branquela e louro, engalanado por sotaques, é tido como mais civilizado; enquanto o nosso familiar universo misturado é apresentado como doente e atrasado.
Para o nosso lado permanentemente colonizado, os estrangeiros brancos - os “de fora” - sempre foram superiores. Eles contrastam com os negros africanos e os nativos que, no Brasil, constituem uma ficção chamada de “povo”. Na nossa mitologia, cada qual tem uma cota de poder. 
Mas nenhuma atinge o ideal atribuído aos “brancos”, que reiteram o paradigma clássico segundo o qual o herói civilizador é um superestrangeiro. Só que eles não vieram do céu, como os deuses, mas nos “descobriram”. Assim, imperadores e imperatrizes austríacas que falavam com sotaque, mandavam na multidão de mestiços e negros dominados por costumes tidos como exóticos e atrasados. De um lado, a Corte; do outro, o Brasil...
O modelo de cima e de fora proibia o de dentro, lido como inferior e doente. Aceitamos costumes de fora tanto quanto ignoramos as nossas práticas cotidianas. Tudo o que é de fora é “legal”. Tudo o que é de dentro é visto como “tupiniquim” - como atraso. Daí resulta essa imensa segmentação entre a máquina administrativa, com seus formalismos supostamente civilizados, e o Estado e a sociedade feitos de jeitinhos nos quais se concretiza o mal-estar de uma indisfarçável ilegalidade recorrentemente produzida. Ilegalidade que cresce na medida em que recusamos levar a sério hábitos e estilos de vida e inventamos leis que não podem pegar. De fato, que fazer quando o compadrio e o parentesco puxam para a nomeação do sobrinho, contrariando a regra que criminaliza o nepotismo costumeiro? O administrador público segue a lei até ser capturado pela força das crenças embutidas nos costumes. Achar que costumes mudam com leis é uma crença que, como diz Gilberto Freyre, promove enormes mudanças formais, mas deixa intocados costumes e crenças para os quais essas mudanças foram dirigidas. Mudamos as leis, mas não preparamos a sociedade para as mudanças por elas requeridas. Seria muito melhor diminuir o fervor legalista para dar mais atenção às demandas dos costumes. Pois a sua força só será domesticada quando eles forem reconhecidos, compreendidos e, na medida do bom senso, atendidos.
Enquanto isso não for realizado, vamos continuar a ter Estado e sociedade como inimigos. Cada qual cavando a sepultura do outro como é o caso dessa crise interminável na qual as demandas da amizade se confundem com as responsabilidades dos cargos e poderes. 

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Frases;;; / Roberto Damatta

Frase de Roberto Damatta


No Brasil, o problema é como acabar de vez com o “Você sabe com quem está falando?”, esse brasileirismo inventado como último recurso hierárquico e escravista contra a igualdade republicana que obriga a entrar na fila, ser parado por um guardinha qualquer, ser compelido a responsabilidade quando se ocupa um cargo público e — eis o escândalo dos escândalos — ser enjaulado por um crime porque a lei vale mesmo para todos, e a igualdade perante e lei acaba com os privilégios.

"...Mas como lidar com a contradição que transforma um eleito pelo povo com o nosso dinheiro numa superpessoa acima da lei? "

quarta-feira, novembro 02, 2016

A igualdade é difícil 

ROBERTO DAMATTA

O GLOBO - 02/11

Temos uma aguda consciência das diferenças e dos abismos que separam e distinguem indivíduos e coletividades. Não há mais nenhum lugar inocente e sem sofrimento



Uma fábrica é uma máquina de igualdade. Seu objetivo é produzir coisas iguais, e sua reputação tem a ver com a capacidade de produzir perfeitamente o mesmo do mesmo. O problema é que, começando com o seu proprietário, a igualdade da produção em massa promove, em outros níveis, uma brutal desigualdade.

Por outro lado, é impossível não constatar a impossibilidade de produzir objetos idênticos em sociedades não industriais. Quando eu vivi com os índios apinayé, surpreendia-me o fato de todos saberem quem eram os autores dos objetos — cestas, esteiras, arcos, bordunas, flechas ou enfeites — que eu havia adquirido para o museu onde trabalhava.

O igual é o modelo do fabricado. Todos seriam iguais perante a lei e igualmente iguais perante certos bens e serviços oferecidos pelo Estado ou adquiridos por meio do dinheiro, cujo valor é — vale falar no óbvio — igual para todos. Mas não se pode esquecer do “perante”. É a lei que é igual para os diferentes entre si.

Numa sociedade cujo ideal é a igualdade, as desigualdades seriam lidas como anomalias, perversões e hóspedes não convidados. Mas nem nas sociedades tribais fundadas na família, com tecnologia produzida por seus próprios membros, existe uma igualdade concreta. Há desigualdades, mas elas são transformadas em particularidades e pertencimentos. Cada grupo interno — metades, associações, linhagens — diferencia produzindo interdependências sem as quais o sistema ficaria abalado.

Ademais, entre os apinayé os demiurgos Sol e Lua, inventaram a Humanidade atirando cabaças nas águas de um ribeirão. As cabaças afundavam e, quando voltavam à tona, estouravam, e delas saíam pessoas. Sol produziu gente sadia e bonita. Mas Lua interferiu e começou a dizer baixinho: feio, cego, surdo e assim surgiram as diferenças. Quando Sol interpelou Lua, ele replicou que um mundo sem diferenças não ia dar certo.

Eis uma concepção na qual a descontinuidade não é fruto da desobediência da criatura, mas é instituída pelos criadores. Acrescento, contudo, que antes do contato com o “civilizado”, as diferenças materiais entre os membros desta coletividade eram mínimas e que a dinâmica que os une e desune é a da filiação e da afinidade, debaixo de uma ética de reciprocidade.

No nosso caso, a questão é outra. Como diz Lévi-Strauss, nós vivemos num mundo incapaz de fidelidade a si mesmo. O vir-a-ser é o tema dominante da nossa cosmologia fundada no individualismo, no progresso e, consequentemente, num futuro no qual tudo vai (ou deveria) se resolver. Temos uma aguda consciência das diferenças e dos abismos que separam e distinguem indivíduos e coletividades. Não há mais nenhum lugar inocente e sem sofrimento. Vivemos o fim das Shangri-Lás, e ninguém sabe mais quem foi James Hilton.

A novidade de um mundo globalizado é a descoberta de que nenhuma sociedade é perfeita mais adiantada. A globalização obriga a rever utopias. As musas da modernidade — liberdade, fraternidade e igualdade — são complicadas na prática. Muita igualdade liquida a liberdade. Muita liberdade dramatiza os limites das diferenças e racionaliza a exploração humana. Se o planeta é de todos, como aceitar que alguns países tenham o poder de tudo destruir?
As musas da modernidade — liberdade, fraternidade e igualdade — são complicadas na prática. 
No Brasil, o problema é como acabar de vez com o “Você sabe com quem está falando?”, esse brasileirismo inventado como último recurso hierárquico e escravista contra a igualdade republicana que obriga a entrar na fila, ser parado por um guardinha qualquer, ser compelido a responsabilidade quando se ocupa um cargo público e — eis o escândalo dos escândalos — ser enjaulado por um crime porque a lei vale mesmo para todos, e a igualdade perante e lei acaba com os privilégios. Antes de sermos presidentes, ministros, juízes, senadores e donos de grandes empresas, somos todos cidadãos. Mas como lidar com a contradição que transforma um eleito pelo povo com o nosso dinheiro numa superpessoa acima da lei? Ontem ele pedia votos, hoje — eleito por meio de um fundo partidário! — ele acha legítimo assaltar os cofres públicos.

É desprezível essa batalha judicial (mistificada como política) para manter privilégios. Estou convencido de que o discurso quase sempre vazio que enquadra as pessoas no velho dualismo de direita e esquerda dissimula muito mal o cerne da questão: somos uma sociedade dividida entre aristocratas (ancorados no Estado) e babacas — as pessoas comuns. Os que conhecem os limites dos seus papéis sociais e, com o seu trabalho, sustentam um palacianismo kafkiano de direita e de esquerda, duro de eliminar. Somos os últimos escravos...

Roberto DaMatta é antropólogo

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

O fundo do poço / Roberto Damatta

O fundo do poço - 

ROBERTO DAMATTA

MURILOemPERCA TEMPO - O BLOG DO MURILO - Há uma hora
*O Globo - 19/10* Para nós, herdeiros da quebradeira lulopetista, o fundo do poço é o teto. É a proposta de emenda constitucional que define até onde o governo pode gastar. Pensando bem, é um ato kafkiano, pois, independentemente de orientação, todo governo que se preza há de ter um limite. Aceitar um teto é uma ruptura com um sistema no qual o “Estado” tudo podia e cada governo empurrava para o próximo questões cruciais. Se a “República” de 1889 veio para consertar uma sociedade feita de mestiços condenada pe
la mistura, ela sempre operou imperialmente. Não é, pois, por acaso que ... mais »

Não é, pois, por acaso que até hoje falar nos limites do “Estado” arrepia certos setores. Um dos argumentos aponta para cortes de investimentos nas chamadas “questões sociais”, como se investir nos direitos fundamentais dos cidadãos não fosse uma formidável questão social, pois é justamente nesta esfera que mais se aplicam critérios gerenciais eficientes e sagrados. Num Brasil de demagogos, estamos todos fartos de Robin Hoods ao contrário, do bando que se elege com os pobres e vira compadre dos ricos.

O teto vai obrigar a decidir não mais quanto, mas como gastar. É inaceitável concordar que Educação e Saúde sofram constrangimentos. Mas será preciso enfrentar de onde tirar os recursos para que desvalidos sejam salvos da predação das nossas motivações ideológicas de classe média branca e bem posta, cujo projeto básico tem sido o de “arrumar” um emprego numa repartição de prestígio dentro da ordem estatal e, com isso, garantir-se para o resto da vida e mesmo depois dela, pois uma aposentadoria especial vai cuidar de seus descendentes.

A discussão dos limites de gastos vai contra todo o simbolismo do poder à brasileira. Os palácios para morar, as secretárias, os aspones, jatinhos, frotas de automóveis, guarda-costas, passaportes diplomáticos, ajudas infindáveis de custo... Uma ética de favores desenhada para enriquecer graças ao aumento dos gastos públicos e às custas do trabalho da sociedade.

No teto está um ator não convidado. É a consciência do trabalho para todos e para cada um. Num Estado com gastos limitados, será imprescindível saber o que cada um produz e quanto recebe para gerenciar tal ou qual ministério, diretoria, conselho e repartição pública. Será preciso acabar a velha distinção entre trabalho (a ser feito pelos comuns) e emprego, a ser apropriado por nós, de acordo com nossas relações pessoais e jogos partidários. Quem trabalha tem como recompensa míseras aposentadorias; mas já para os funcionários públicos, a aposentadoria é promoção. Limite de gastos implica em competência no cargo estatal Será preciso transformar chefes aparentados ou companheiros em patrões concretos, motivados pelo mercado e compulsivamente competitivos. O emprego não pode mais deixar de implicar em trabalho para o Brasil.

Nada mais brasileiro do que o brasileirismo de ter um Estado politicamente aparelhado, na confirmação da coisa pública como propriedade de um governo eleito. Do mesmo modo que o emprego deve virar trabalho, o governo não pode perder de vista os deveres do Estado e este, os interesses de um Brasil inserido num mundo globalizado.
Um Estado bem gerenciado vai obrigar os ocupantes de cargos públicos a realizar aquilo que mais odiamos: a prestação de contas dos nossos gastos. O teto pode transformar o povo pobre que deveria ser nosso eterno vassalo em patrão.

Mas se existem limites, espera-se que o tão falado “corte da própria carne” venha de cima. O teto é uma vitória indiscutível do governo Temer, mas onde cortar será a prova crítica da sua sinceridade gerencial. Se temos 12 milhões sem emprego, não podemos tergiversar com os velhos nababos instalados no topo do nosso republicanismo.
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Nada mais fácil do que receitar para os outros. O caso americano não me deixa mentir. Donald que não é o Duck, mas o Trump, desafia as fórmulas feitas. A primeira é a do ardil burguês nas democracias liberais, pois ele prova que muita grana não compra tudo, muito menos uma Presidência: um cargo que requer um ator capaz de compreendê-lo para desempenhá-lo. A segunda é que somos todos crianças quando se trata de entender nossas coletividades. Como é que de um país com um sistema educacional invejável sai um Trump? Descobrir como esses Donalds são fabricados é o enigma que leio nos jornais e revistas de lá. O grande “The New York Times” disse que o nosso Congresso é um circo e tem até um palhaço, o Tiririca. E o que temos hoje na America fundada por fugitivos do Mayflower e por levas de imigrantes que atualizaram os ideais liberais e igualitários dos seus “pais fundadores”?

Ora, temos o Trump dos muros, da mente fechada e do machismo à americana. Pior que isso, corremos o risco de ver o país capaz de destruir o mundo com um presidente que pode destruí-lo. Eis o tamanho da inana.


quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Dogmas do corpo e tratados da alma podem ser adquiridos durante a vida...

Sexo, liberdade e etnia 

- ROBERTO DAMATTA

O GLOBO - 12/10

Há na idade uma progressão determinante em contraste com a liberdade. Refiro-me ao fato de que todos nós temos um início e um inevitável fim
Um mundo globalizado e idealmente igualitário abriu os portões de uma inigualável liberdade. Hoje, a sexualidade e a etnia não são mais papéis irrecorríveis — são papéis adquiridos. Resultam de escolhas individuais que rompem com a determinação que decretava como deveríamos ser. Dissolvemos a ideia estabelecida de dois sexos com o redesenho fundado na liberdade, pois o fisiológico não determina mais nem as práticas eróticas, nem a construção de um grupo familiar. O aparato biológico com o qual nascíamos (e morríamos) foi repensado pela categoria de gênero. Podemos nascer como “homens” ou “mulheres”, mas viver atualizando muitas formas de masculinidade e feminilidade.

O dualismo arcaico constituído de masculino e feminino — de homem e mulher — foi substituído pelo direito de escolher. Aliás, mesmo quando havia somente dois sexos — o ator principal do drama (o masculino) e o seu coadjuvante oprimido (o feminino), como nos revelou Simone de Beauvoir num livro fundacional, “O segundo sexo”, publicado em 1949, o mesmo ano, aliás, em que veio à luz o igualmente clássico “As estruturas elementares do parentesco”, de Claude Lévi-Straus, um estudo que confirmava as mulheres como objeto de trocas matrimoniais realizadas por seus pais e irmãos — sempre existiram homens femininos e mulheres masculinas.

Já sabíamos que certos atributos tradicionais de gênero — virilidade, sensualidade, docilidade, intuição, coragem, persistência, passividade, racionalidade etc... — não estavam em sincronia com ovários e testículos.

A possibilidade da reinvenção erótica permitiu redefinir a ontologia exclusiva do macho ou fêmea. Tanto Freud quanto Margaret Mead revelaram como sistemas de crenças marcam e definem o quem é macho ou fêmea, tornando a classificação simbólica mais importante do que que a visão universalista e evolucionista tradicional. Freud, por exemplo, falou em bissexualidade. Mead, por seu turno, descreveu sociedades nas quais os homens eram passivos e as mulheres ativas. Tal variedade, porém, não foi tomada como uma receita. O que se demonstrava era um conjunto de alternativas a serem respeitadas, e não uma outra camisa de força a ser seguida.

Em relação à etnia, ocorreu um processo semelhante. Uma pessoa pode nascer “negra” ou “oriental” e viver e morrer como “branca”: americana ou europeia. Ela pode manejar o seu corpo para nele reproduzir o padrão étnico ocidental ou fazer o movimento inverso, orientalizando-se ou africanizando-se. Ademais, dinheiro e celebrização permitem mais liberdade, bem como, maior legitimidade, mesmo diante de inevitáveis incoerências.

O fato é que neste nosso mundo que oscila entre liberdade e inquietação, podemos escolher o país com o qual queremos nos associar, de tal modo que o nascimento e a descendência não mais determinam nossas consciências e etnias.

Mas se um viés de liberdade centrada no individualismo marca a subjetividade sexual e o pertencimento a algum grupo, tudo muda quando falamos de idade. Porque há na idade uma progressão determinante em contraste com a liberdade. Refiro-me ao fato de que todos nós temos um início e um inevitável fim.

Temos todas as liberdades, menos a liberdade de escapar da decadência biológica que vai nos levar — tenhamos ou não mudado de sexo ou de etnia — para o fim.

Podemos evitar a branquidão que é azeda ou a negritude que significava escravidão; podemos transformar o masculino em feminino (e vice-versa), mas não temos como evitar que nasçamos, passemos pela juventude, entremos na idade adulta, envelheçamos e morramos.

Como assimilar essa inevitabilidade da velhice que nem todos, aliás, experimentam, sem pôr em suspeição as utopias das escolhas individuais ou, como dizia Lévi-Strauss, as ilusões da liberdade? Como, num mundo de liberdade infinita, aceitar essa determinação coercitiva da idade?

Podemos reprimi-la, mas não podemos viver sem um corpo que envelhece e impõe um princípio de suficiência no conjunto de escolhas que reproduzem a onipotência do pós-capitalismo apoiado no consumo e na alta tecnologia. Esse progresso que promete uma vida sem dor nas costas. O envelhecer prova que, tanto como o planeta e o capitalismo, nós também temos limites. É preciso um mínimo de asas para voar.

A inexorabilidade da idade deve ser lembrada neste Brasil onde a aposentadoria sinaliza velhice e promoção, livrando-nos do trabalho lido como castigo e estigma escravista, e não como um chamado ou vocação. Entrar nisso, porém, é, como dizia Kipling, uma outra historia...

PS: Dedico essa relfexão à memória de Irma Brant, com o meu afetuoso abraço para Arnaldo e Jaqueline.

Roberto DaMatta é antropólogo

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

"No mundo “real” a competição promove desigualdades permanentes e naturais, satânicas ou divinas. Mas, no esporte, a contingência da derrota (e da vitória) engloba apenas as inferioridades daquela competição ou jogo..."

Detalhes olímpicos - 

ROBERTO DAMATTA

ESTADÃO - 17/08

Todas as Olimpíadas fabricam seus heróis. Aliás, toda atividade humana na qual se destaca um papel central, esse destaque dificilmente deixaria de ser visto como o “herói” simplesmente porque sua ausência impediria definir o ponto, dando-lhe um ponto de vista ou um arremate. Afinal, o diálogo com a finitude é o que constrói os heróis e os campeonatos. Dos torneios de várzea aos refinados Jogos Olímpicos, cuja marca é justamente um ciclo mundial de quatro anos. Fosse anual, não haveria Phelps ou Pelés.

O mundo em que vivemos é marcado pela predominância da parte sobre o todo; do individuo sobre o grupo. Para nós, a sociedade é o resultado de uma associação de indivíduos que perseguem os seus interesses, os quais se coordenam, no dizer de um tal de Adam Smith, por meio de uma bruxaria chamada de “mão invisível”. O próprio conceito revela como é central o foco na parte e no sujeito, deixando de lado as relações e, com elas, o reconhecimento do todo que, entre outras coisas, simboliza o limite. E o limite é o olimpo, o assento dos sobre-humanos. Mas, com o fim da monarquia, pode-se subir ou descer deste monte...

Se levarmos esses “detalhes” em conta, descobrimos que comparar conduz a individualizar. Eu prefiro X e você Y; eu sou Z e você X. Tal destaque pode levar ao desprezo ou a ênfase no elo que, afinal, é a base do contraste. Toda comparação pode conduzir a uma competição ou a uma guerra. Não foi por acaso que os Jogos foram reinventados na Europa!

A individualização extremada leva a diferenças que podem se fixar em desigualdades. Ou, ao contrário, em diferenciações que obrigam a rever preconceitos e exclusões. Os Jogos colocam no mapa países ignorados por meio de seus heróis. E, ao mesmo tempo, transformam desigualdades eventuais em diferenças irremovíveis. Um “detalhe” crucial da Olimpíada é o jogo entre eventos (ou “provas”) e um padrão geral — o tal “quadro de medalhas” — que reordena ou confirma nações alinhadas não mais pelo poder militar ou econômico, mas por desempenho neste campo situado entre guerra e arte.


Como mencionei na semana passada, o esporte, como as artes, é um ponto de repouso das rotinas — das questões práticas e das tragédias. Ele não as elimina, mas as converte e, no caso de fracassos, pode agravá-las acentuando ainda mais os radicalismos. De qualquer modo, como tudo que é programado e delimitado por um texto, palco e atores, o esporte é uma fantasia, mas uma fantasia transformada numa realidade tão séria quanto um filme musical ou um martini. Sua “glória” é um transbordamento parcial para o real. Seria maravilhoso se questões políticas pudessem ser resolvidas por meio de uma luta de boxe ou por um jogo de basquete...

De um certo ponto de vista, o campo do esporte é um experimento comparativo e uma abertura para a mudança. Aqui, dois “detalhes” se destacam imperiosamente: as regras explícitas e um uso do corpo com foco exclusivo no seu desempenho, talento e capacidade. No caso, uma refrega do atleta-herói contra o tempo, o espaço e os “estrangeiros” — esses outros que, paradoxalmente, não podem ser eliminados. Nesse sentido, o esporte é um ritual cujo proposito permite diferenciar iguais (todo jogo começa numa igualdade absoluta, como aprendi com Lévi Strauss) sem, entretanto, esquecer — e isso digo eu — que as diferenciações sejam passageiras e relativas, pois tudo pode mudar numa outra competição.

Vejam a diferença: no mundo “real” a competição promove desigualdades permanentes e naturais, satânicas ou divinas. Mas, no esporte, a contingência da derrota (e da vitória) engloba apenas as inferioridades daquela competição ou jogo.. Nesta esfera da vida, não pode haver um campeonato que acabe com todos os campeonatos (como foi o caso de algumas guerras); ou um estilo de disputa definitivo. Muito pelo contrário, todo torneio tem como pressuposto um outro torneio de modo que a serie derrotado/vitorioso/derrotado seja permanentemente renovada. É muito semelhante a experiência do cantor com a música cujas interpretações são infinitas, embora ela continue sendo a mesma música.

Um dos “detalhes” do esporte como uma esfera de significado social é que nele vitória e derrota estão em relação. Perder não é desonra. É uma “prova” do outro lado desta moeda sem a qual não há jogo, pois sem ela não há vitória.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Uma Olimpíada 'a la Brasil' ... /

quarta-feira, agosto 10, 2016

O mundo no Rio - 

ROBERTO DAMATTA

O Globo - 10/08

Como não enxergar esse contraste entre a utopia da competição idealizada, delineada no juramento olímpico, e o descaso pelas leis com sérias consequências políticas?

Tal foi a frase de uma mensagem que recebi de Richard Moneygrand, meu velho mentor, que, ao ler a coluna na qual falo dos meus 80 anos, prediz com seu permanente e generoso otimismo que, com cautela, eu chego aos 90.
Mas, prossegue o sábio, como deixar de falar da variante brasileira dos Jogos Olímpicos que fazem o seu ano de nascimento, Roberto, o distante 1936, coincidir com esses Jogos de 2016?

Como não observar o modo pelo qual vocês aculturaram esse ritual reinventado na Europa, moldando-o e “nele dando um jeito”?

Dando-lhe um estilo no qual a ambiguidade — disfarçada de improviso (o qual perdoa tudo, até o roubo descarado pelos poderosos) — é um valor; visto que nem toda sociedade repete — como insistem os idiotas do determinismo histórico — o esquema que começava na antiguidade escravocrata e terminava no inferno da exploração burguesa.

Nesta indigente visão linear, não há misturas, repressões ou reversões. Mas como aplicar isso ao seu Brasil, que teve na escravidão africana o foco do seu desenvolvimento e da sua civilização fundada, como dizia Darcy Ribeiro, primeiro no “cunhadismo” (os colonizadores “casavam-se” com as índias) e, depois, pela mestiçagem, a qual engendrou um preconceito relacional. Nele, a aparência predominava sobre a origem, como ensinou um não lido Oracy Nogueira?

Como ser igual aos ingleses e franceses se vocês são — como tem visto o Comitê Olímpico Internacional com trepidação — uma coletividade na qual o improviso, o risco, o adiamento, o recurso e o foco do meio, e não do início ou do fim, são dimensões básicas de sua cosmologia? Para vocês, definir é um castigo, e o inferno não são os outros, pois tudo depende de quem é o outro. Se for amigo, é céu; se inimigo ou estrangeiro, fica-se com Sartre.

Como não especular que esse grandioso ritual esportivo marcado por normas fixas, simples e conhecidas não esteja ocorrendo em paralelo a um tenebroso julgamento criminal cujo ponto crítico é o exato oposto: o não cumprimento de leis pelos mais altos responsáveis pelo país?

Como não enxergar esse contraste entre a utopia da competição idealizada, delineada no juramento olímpico, e o descaso pelas leis com sérias consequências políticas? A maior delas sendo a divisão do Brasil como país, numa ocasião em que — diante de outras nações — ele deveria estar unido...

Mas, por outro lado, continua Moneygrand, como não abrir-se para o fato de que o “esporte”, como a música, o vinho, o amor, o cinema e a literatura são maquinas de esquecimento? Que essas atividades que chamamos um tanto sem pensar de “jogos” inventam novos focos, mudam pontos de vista e, com isso, trocam as coisas de lugar? Primeiro, porque eles custam muito caro; depois, porque exigem uma imensa organização; e, finalmente, porque ninguém pode ser anfitrião sem arrumar sua própria casa.
Quando um país “joga” com outro, substituindo o conflito e a guerra por modalidades esportivas “olímpicas” — ou seja, formas de competir que incluem times e indivíduos, como é o caso do futebol e do atletismo e da natação —, o resultado não é o ressentimento que engendra outra guerra, mas aquela familiar transformação da frustração em solidariedade em nome de algo maior. E nada é mais importante e até mesmo sagrado, conforme diziam os sociólogos clássicos, do que a fabricação de uma totalidade capaz de englobar todas as suas partes num acordo indiscutível. De gestos, espaços, uniformes, aparelhos e regras que valem para todos e que não levam à destruição, mas cobrem de honra o perdedor e asseguram o direito a um outro “jogo”. De tal maneira — prossegue o professor — que não se pode mais distinguir vitória e derrota, porque elas são parte essencial de uma mesma moeda. Convenhamos que isso é o oposto da guerra na qual um grupo simplesmente aniquila o outro. Um dos “trabalhos” mais formidáveis do “esporte” é precisamente essa legitimação da derrota pela vitória que será superada ou vencida no próximo encontro ou campeonato.

A Olímpiada é — como você mesmo remarcou sem ter sido lido, pois ninguém é profeta na sua própria tribo, no seu livro “A bola corre mais que os homens” — um ritual de integração mundial. Nela, o protagonismo não é o da globalização com seus avanços técnicos, os quais abrem fossos entre as “maçãs” e as “bananas”, mas é o investimento humano. Esse elemento que nas artes mas, sobretudo, no esporte reúne técnica, esforço intelectual, perseverança espiritual ao ponto da renúncia do mundo, com desempenho. Na competição, vemos o exterior — a disputa de um time contra o outro; ou de pessoas usando seus corpos na luta contra o espaço e o tempo. Mas, olhando mais de perto, enxergamos a dedicação e o investimento reveladores de um espírito. Uma “ética de dedicação” a uma modalidade esportiva tão grande quanto a devoção e o amor.

Esse amor, prossegue meu velho amigo, finalizando sua mensagem, que hoje vocês têm neste Rio que é o palco do mundo.

domingo, 10 de julho de 2016

"Brasil, um país que opera com leis explícitas e com regras implícitas..." // Roberto DaMatta

Roberto DaMatta

Brasileirismos

Gente boa: do bom e do bem. Platônicos sem saber, eles unem o bom vinho e o excelente uísque a amigos inigualáveis. Eles amam execrar e, temos depois, santificar o execrado. Tem sido assim com grandes pensadores e até com ditadores. Eis um brasileirismo.


Não falam de questões, mas de pessoas. Dos “outros” – deles mesmos vistos de longe. Cada caso tem uma versão. Quando surge uma indiscrição, tergiversam. Fazem parte dos “arrumados” e estão “no mesmo barco”. Um barco com espaço para mais um grupo. Isso os torna imunes aos naufrágios. Eis um outro brasileirismo.
Aceitam abusos e tramoias porque seguem o brasileirismo das relações pessoais. Todos se ligavam com todos, de modo que basta saber quem é para safar (ou agravar) uma situação. A consideração era maior do que a eficiência que eles tanto clamavam.
Uma pessoa diz que o sujeito é fascista, mas se o amigo afirma que é um conhecido, cria-se um dilema. Esse era um brasileirismo clássico, mas eles não davam importância às relações pessoais, que era justamente a dimensão social que lhes permitia as ultrapassagens.
Assim, quanto mais faziam leis, mais os elos pessoais as neutralizavam, alimentando o sonho pueril de revoluções institucionais destinadas a consertar definitivamente o sistema. Promulgavam a lei que igualava, mas quando os acusados eram amigos, o laço pessoal – tomado como banalidade, inocência e engano – era imediatamente usado de modo que o patife virava ambicioso, o fanático um exagerado; o nazista um exaltado e o ladrão partidário uma vítima da imprensa midiática.
O abuso dos elos pessoais, que salva criminosos e os transforma em perseguidos, gera uma relação duvidosa com a lei e as instituições, pois torna a impessoalidade antipática, senão impossível. As leis são boas para os outros, não para nós. O magistrado é competente, até que se saiba de seus amigos. Então, num só movimento, se desmoralizam as leis, porque ninguém discute ou percebe o peso das relações pessoais no funcionamento da sociedade.
O país das leis não se entende com a sociedade das amizades. Não querendo conhecer a força do “dou para receber”, essa norma que amarra mais do que as constituições, pois, sem ela, não haveria simplesmente sociedade, o País inventa brasileirismos. Cria leis e mais leis com o objetivo de tornar real o anonimato sem o qual não há cidadania, mas elas reforçam os relacionamentos pessoais.
O fato é que ou estar “dentro” ou “fora” é mais importante do que o certo ou o errado. Laços ideológicos nutridos por amizade e obséquios ultrapassavam partido e credos, obrigando a isentar criminosos óbvios e a negar erros crassos de gerenciamento. As amizades englobam os interesses nacionais. Uma gigantesca onda de corrupção, ao lado de dilemas político-burocráticos, engendrou um cenário jamais previsto pelos politicólogos: o brasileirismo de um país com dois presidentes. Um afastado constitucionalmente, e o outro, empossado com o aval do STF, tentando remendar o que pode, sendo impiedosamente chamado de “golpista”.
O personalismo, tido como banal e inconsequente, é justamente o cerne dos brasileirismos. Ele leva o sistema ao pré-suicídio, porque opera com leis explícitas e com regras implícitas. A lei proíbe claramente, a amizade faculta ocultamente.
Lado a lado, essas éticas criam arranjos imprevisíveis. Os laços pessoais interferem com os institucionais e vice-versa. Quem faz é mais importante do que aquilo que foi feito.
A discriminação pessoal do “esse eu conheço!” neutraliza as leis.
O maior brasileirismo não é a tão propalada e vergonhosa desigualdade, mas, sem sombra de dúvida, é o clamor igualitário. Não podemos continuar com a teoria segundo a qual, quando se trata de país é ideológico e político; mas, quando se trata de amigos, é coisa de honra, respeito e consideração. Como conciliar esses códigos claramente indispensáveis para uma vida social equilibrada, senão discutindo suas demandas, confrontos e implicações?
Num mundo de amigos e compadres, nada pode ser mais perverso do que a igualdade de todos perante a lei.
PS: Se tudo correr bem, volto a este espaço em agosto. A folga é o meu brasileirismo.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Verdade, sinceridade e honestidade / Roberto Damatta

Onde está a certeza? - ROBERTO DAMATTA

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O GLOBO - 20/04 



Se o alvo era o demonizado capitalismo e um mundo igualmente cruel, o tiro saiu pela culatra, pois ao fim e ao cabo o que houve foi pretender legitimar ladrões como salvadores da pátria

O certo — diz uma voz dentro de mim neste histórico domingo, 17 de abril, é uma coisa, a certeza é outra. Será preciso começar fazendo essa distinção. O certo persegue a certeza, sendo a razão imperativa para que as certezas criem convicções e engendrem ações generosas e positivas para o Brasil.

O certo é simples: nenhuma coletividade de massa nesta era de simultaneidades planetárias e digitalização global as quais engendram uma absoluta transparência pode ser infantilizada pela negação de um claro plano de poder tocado a uma vergonhosa, e quase sempre quixotesca corrupção, a qual acabou por devastar economicamente o Brasil. Realmente, um plano de poder aliado a uma ética dos fins justificando os meios liquidou estatais e fundos de pensão, levou à bancarrota bancos oficiais e, pela ladroagem, transformou funcionários em milionários, ladrões e empresários em símbolos de vileza para seus ilustres clãs políticos e familiares.

Se o alvo era o demonizado capitalismo e um mundo igualmente cruel, o tiro saiu pela culatra, pois ao fim e ao cabo o que houve foi pretender legitimar ladrões como salvadores da pátria. O maior deles, o chefe, Lula da Silva, começou repetindo a imagem do pai dos pobres para ser mais do que a mãe dos ricos, pois é hoje o compadre de um rol de empresários cujo cartel virou um clube de propinas. Esse sinistro capitalismo foi usado para abrir abençoadas contas no exterior e promover financiamentos a países vizinhos reforçando seus governos autoritários.

O povo pode ser bobo, mas não é palhaço. O povo, como se viu domingo, não aceitou ser o filho bastardo de um governo lulopetista que se postava como pai e, depois, mãe, mas que dele abusava de modo incestuoso, roubando-lhe os recursos. A genitora inventada pelo pai-salvador revelou-se dona de mais impaciência e ausência de noção do seu papel do que de amor materno. Postava-se como mãe sem, entretanto, ter o coração materno da famosa canção imortalizada por Vicente Celestino.

Política tem muito de ética pessoal, mas não é família ou casa-grande. Um país é uma casa e senzala, embora seja moradia. Alugá-lo a incompetentes cínicos que admitem terem comido muito mel ao ponto de melarem-se todos é, mais do que uma realidade, é um insulto.

E o povo que usa expletivos como conceitos filosóficos — existe algo mais complexo que explicar o significado de f.d.p ou de um p.q.p? — revelou a sua vontade e o seu pensamento selvagem levi-straussiano, quando vimos a tribo que domingo podou o poder político lulopetista, dando o primeiro passo para afastá-lo do palácio e do imenso aparelho que ele cuidadosamente construiu.

Estou sendo golpista? Para alguns sim. Para quem sabe do meu caráter, não. Não tergiverso com minha honestidade e não vendo minha alma ao diabo na forma de pedidos, favores e dinheiro. Meu nariz está limpo porque jamais ajoelhei para lamber um traseiro ou solicitei um empenho. Quando, um dia, me perguntaram “O que você quer?”, disse sem tremer: “Nada!”

Nessa rede de elos familiares e de simpatias que o ritual de domingo deu provas contundentes, eu jamais entrei. Estudando Brasil eu vi o peso dos favores na condução de nossos projetos de modernização igualitária e encareço aos que desejam real e firmemente mudar o Brasil que prestem atenção a essa trama do dar-para-receber que não amadurece, mas infantiliza. Que não engendra cidadãos responsáveis, mas devedores e, no limite, subserviências. E o faz sem saber, mas sabendo — maldosa e inocentemente.

O que vi domingo foi um grito esperançoso de maturidade com todo o bom humor possível diante dos mais reacionários que, negando o real, recitavam o mantra do ilegal para um ritual que paradoxal e brasileiramente, pois era obviamente legítimo e certo, embora tivesse raízes nos dentes podres com os quais todos — todos! — comemos nossas carniças.

Foi um ritual do mesmo naipe dos estelionatos eleitorais, dos quartos neuroticamente secretos onde aquele sujeito da Petrobras guardava como um Ali Babá os tesouros roubados. Foi uma prova de como o ilegítimo é legal tal como as propriedades do ex-presidente Lula são dos seus amigos do coração.

Foi um passo para a maturidade e para o casamento do ético com o legal. Mas, como estou cansado de testemunhar tal movimento, pois fiz parte dos “conscientizados” da esquerda brasileira, posso ter certeza, mas não estar certo.