segunda-feira, 2 de julho de 2012

"Cinquenta tons de cinza" /// Veja /// coluna de Ricardo Setti



Livros & Filmes


24/06/2012
 às 16:05 \ Livros & Filmes

Sexo, sexo, sexo, do começo ao fim, no livro mais falado do momento — e o mais vendido no mundo

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A despeito de décadas de feminismo, ser subjugada e dominada por um macho alfa ainda seria mesmo a suprema fantasia feminina? (Foto: Getty Images)
(Publicado em VEJA de 6 de junho de 2012, por Mario Mendes)

CINQUENTA TONS DE CINZA: ATA-ME
O estrondoso sucesso mundial do livro ”Cinquenta Tons de Cinza” sugere que, a despeito de décadas de feminismo, ser subjugada e dominada por um macho alfa ainda seria a suprema fantasia feminina
Anastasia Steele é uma radiante garota na flor de seus 21 anos, prestes a se formar em literatura. Ingênua e bem-comportada, ela nunca teve sequer um namorado. Na verdade, ainda é virgem. Perto dos 30 anos, Christian Grey tem cabelos acobreados, é alto, forte, de corpo muito bem definido, porém não musculoso demais, e bi – isto é, bilionário.
Os dois se encontram por acaso quando ela vai, no lugar de uma amiga, entrevistá-lo para o jornal da faculdade. A atração mútua é fulminante e avassaladora. Se Grey é a imagem perfeita do príncipe encantado dos sonhos de Anastasia, ele não suporta mais ficar um instante longe dela. Parece se tratar de uma união simplesmente divina, não fosse o fato de o magnata possuir um traço terrível e obscuro em sua personalidade.
Na luxuosa cobertura envidraçada onde vive, na cidade americana de Seattle, entre valiosas obras de arte e um piano de cauda branco – que ele toca com o talento de um virtuose -, existe “o quarto da dor”. Decorado com veludo vermelho e couro negro, o cômodo é equipado com cama gigante, almofadas confortáveis, chicotes, coleiras, correntes, algemas e todo o aparato necessário para intensas sessões de sexo sadomasoquista.
Em vez de propor casamento, Grey espera que Anastasia se torne sua escrava sexual e principal objeto de prazer. “Não sou do tipo romântico”, diz, em tom autoritário, para a aterrorizada porém perdidamente apaixonada donzela. Mesmo hesitante, ela aceita o desafio, que inclui total submissão, açoitamento, palmadas, olhos vendados, punhos atados e nenhum carinho.
Tudo descrito nos detalhes mais gráficos, epidérmicos e voluptuosos. Conseguirá a inocente heroína conquistar o amor verdadeiro mergulhando nessa relação no mínimo doloridíssima?
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PORNÔ PARA MAMÃES -- A trilogia de E.L. James tornou práticas sexuais nada ortodoxas palatáveis para o grande público: "As mulheres se sentiram encorajadas a voltar a falar sobre sexo", diz a autora
Esse é o enredo de Cinquenta Tons de Cinza, o livro que todo mundo está lendo, comprando, baixando na internet, comentando, recomendando, discutindo e, acima de tudo, a-do-ran-do no mundo inteiro. Devido ao caráter extremamente explícito das cenas de sexo, que vêm misturadas à linguagem simples dos romances baratos e ao enfoque descaradamente água com açúcar da história de amor, a obra já foi qualificada como “pornô para mamães” e “Cinderela tarada”.
Desde seu lançamento nos Estados Unidos, em março, vendeu mais de 10 milhões de exemplares em apenas seis semanas, tornando-se o maior fenômeno editorial dos últimos tempos e deixando para trás pesos-pesados como o mega-best-seller O Código Da Vinci e a saga Crepúsculo.
Aliás, essa última é a verdadeira culpada pela existência de Cinquenta Tons de Cinza. Foram os romances vampirescos de Stephenie Meyer que levaram a até então desconhecida inglesa E.L. James – ex-gerente de produção de TV, casada, mãe de dois garotos adolescentes e idade “lá pelos 40″ – a escrever sua própria trilogia (as duas continuações, Cinquenta Tons Mais Escuros e Cinquenta Tons de Liberdade, estão vendendo tão bem quanto o original).

DEVANEIOS DELIRANTES Apaixonada pela saga Crepúsculo, a inglesa E.L. James começou a escrever apenas como passatempo: 25% do mercado literário americano e direitos vendidos para o cinema por 5 milhões de dólares (Foto: Ni Sindication / Other Images)
DEVANEIOS DELIRANTES -- Apaixonada pela saga "Crepúsculo", a inglesa E.L. James começou a escrever apenas como passatempo: agora, domina 25% do mercado literário norte-americano e vendeu direitos para o cinema por 5 milhões de dólares (Foto: Ni Sindication / Other Images)

“Um exemplarzinho só já estaria bom”
Em 2008, depois de ler e se apaixonar pelas aventuras do vampiro Edward e sua amada Bella, Erika Leonard (só o sobrenome James não é o seu verdadeiro) passou a escrever variações da trama no popular site Fanfiction.net, no qual fãs podem postar histórias criadas a partir de livros de sucesso favoritos como, por exemplo, a série Harry Potter.
Um dia ela decidiu ir além e começou a escrever o que viria a ser Cinquenta Tons de Cinza. O conteúdo on-line não demorou muito a atrair a atenção de uma pequena editora australiana, que propôs à autora cobrar pelo download da história e também fazer cópias impressas por encomenda. O sucesso da empreitada foi tão instantâneo e avassalador quanto a atração entre Anastasia e Grey.
Quando Cinquenta Tons se tornou o número 1 na lista de e-books do The New York Times e a versão impressa se esgotou nas livrarias, as grandes editoras americanas começaram a disputar os direitos de publicação. A vitoriosa foi a Vintage Books, uma subsidiária da gigante Random House.
No começo de junho, o serviço de verificação de venda de livros nos Estados Unidos, o BookScan, informou que a trilogia acabara de abocanhar 25% do mercado americano de ficção adulta, além de ter ganhado tradução para 37 idiomas. Também os direitos de adaptação cinematográfica já foram adquiridos, pela Universal e pela Focus Features, por alegados 5 milhões de dólares – um recorde que pertencia a O Código Da Vinci, comprado por 3 milhões.
Detalhe: a escolha do elenco está sujeita à aprovação da autora. “Nunca, nem nos meus devaneios mais delirantes, imaginei que o livro se tornaria o que se tornou”, declarou E.L. James, uma morena de humor transbordante, à editora executiva Isabela Boscov durante uma conversa num café de Londres pontuada por suas risadas e tiradas espirituosas. “A extensão da minha ambição era um dia ver o livro – um exemplarzinho só já estaria bom – na vitrine de uma livraria.”
“Estamos diante de um daqueles livros de suspense impossíveis de largar, espetacular e totalmente original”, acredita Jorge Oakim, da Intrínseca, a editora que desembolsou 780 000 dólares para publicar a trilogia no Brasil (o lançamento está previsto para agosto) e deter os direitos da tradução em português para e-books em todo o mundo.
Mas um momento: quem quer saber de suspense diante de um material quente como Cinquenta Tons de Cinza? É o sexo que interessa. Principalmente como são descritas as práticas S&M: “De maneira totalmente saudável, segura e consentida por ambas as partes”, como observou um crítico americano.
Metódico e cauteloso, Grey coloca em um contrato todas as suas exigências e expectativas sexuais para Anastasia. Em uma piscadela para a literatura de autoajuda, a trilogia funciona como um manual erótico para quem deseja sair da rotina sexual de um relacionamento, sem no entanto resvalar na perversão canalha ou na promiscuidade pura e simples. Além de estritamente monógamo, Grey só avança nos jogos violentos (“mas bem menos violentos que o S&M do mundo real”, frisa a autora) com a absoluta aquiescência de Anastasia. Que, não obstante seus momentos de dúvida, topa tudo por amor.

O universo da literatura erótica feminina
O tema também está longe de ser original. Submissão sadomasô é o mote de História de O, clássico erótico publicado nos anos 50 e filmado nos 70. Vale lembrar que, nos últimos setenta anos, várias escritoras – muitas delas de talento superior ao de E.L. James – se dedicaram a escrever histórias encharcadas de sexo ou livros inteiros sobre o assunto. Além disso, uma gorda fatia do mercado literário internacional se dedica aos chamados romances femininos.
RAINHA COR-DE-ROSA A inglesa Barbara Cartland, a mais famosa escritora de best-sellers açucarados para mulheres: heroínas virgens que só se entregam ao amado no último parágrafo (Foto: Gianni Minischetti / Getty Images)
RAINHA COR-DE-ROSA -- A inglesa Barbara Cartland, a mais famosa escritora de best-sellers açucarados para mulheres: heroínas virgens que só se entregam ao amado no último parágrafo (Foto: Gianni Minischetti / Getty Images)
São livros de bolso impressos em papel barato que contam histórias de amor despudoradamente melosas, arrematadas com o esperado e inevitável final feliz e salpicadas aqui e ali com cenas mais palpitantes.
A fórmula – subtraídas dela as cenas palpitantes – fez a fama da inglesa Barbara Cartland, a rainha da literatura cor-de-rosa (ela só se vestia nesse tom), cujas heroínas somente se entregavam ao amado no último parágrafo. Autora de mais de 700 títulos do gênero, Barbara vendeu mais de 1 bilhão de exemplares no mundo inteiro.
Esse é também o nicho dominado pela editora canadense Harlequin – que em 1971 adquiriu outro gigante do gênero, a inglesa Mills & Boon, mantida até hoje como marca independente e milionária. Só a Harlequin lança cerca de 110 títulos por mês e, claro, também possui coleções eróticas, a exemplo da série sugestivamente intitulada Homens de Uniforme.
MATRIZ CLASSICA Jane Austen, uma das maiores prosadoras da língua inglesa: os personagens de seu Orgulho e Preconceito viraram uma das inspirações para o casal improvável de Cinquenta Tons de Cinza (Foto: Stock Montage / Getty Images)
MATRIZ CLASSICA -- Jane Austen, uma das maiores prosadoras da língua inglesa: os personagens de seu "Orgulho e Preconceito" viraram uma das inspirações para o casal improvável de "Cinquenta Tons de Cinza" (Foto: Stock Montage / Getty Images)


E.L. James não esconde de onde vem a inspiração para a sua trilogia: Anastasia, a protagonista, é leitora devota do Orgulho e Preconceito de Jane Austen, do Jane Eyre de Charlotte Brontë e do Tess dos D’Ubervilles de Thomas Hardy, entre outros clássicos da literatura inglesa do século XIX. Os personagens dessas obras, aliás, emprestam traços marcantes aos seus próprios personagens: Christian Grey tem o cavalheirismo, a arrogância e a absoluta, ainda que adorável, falta de de autoconhecimento do James Darcy de Orgulho e Preconceito (“ele é homem, afinal”, brinca E.L.), enquanto Anastasia é tão excitável, rápida no troco e desaforada quanto a mulher pela qual Darcy reluta em se admitir apaixonado, Elizabeth Bennet.
INGÊNUA, MAS FIRME Charlotte Brontë: seu clássico Jane Eyre é um precursor das histórias de amor e dominação (Foto: Stock Montage / Getty Images)
INGÊNUA, MAS FIRME -- Charlotte Brontë: seu clássico "Jane Eyre" é um precursor das histórias de amor e dominação (Foto: Stock Montage / Getty Images)
Da mesma forma, Christian e Ana espelham o irascível Mr. Rochester e a ingênua, mas inquebrantável, Jane Eyre do romance homônimo. E, como Tess, Ana treme de medo diante da sedução do cafajeste D’Uberville e palpita de amor por Angel Clare – a diferença é que, neste caso, esses dois personagens são fundidos em Christian Grey como facetas polares de sua personalidade.
“Quando me apontam essas semelhanças, porém, respondo que todas essas histórias têm a mesma matriz: A Bela e a Fera, que pode ser lida como um símbolo do poder transformador e revelador que as mulheres às vezes exercem sobre os homens – sem os quais, por sua vez, elas não podem atingir uma feminilidade plena”, diz E.L.

PODER TRANSFORMADOR A Bela e a Fera, na versão do cineasta Jean Cocteau: o desejo feminino de mudar o homem (Foto: The Picture Desk / AFP)
PODER TRANSFORMADOR A Bela e a Fera, na versão do cineasta Jean Cocteau: o desejo feminino de mudar o homem (Foto: The Picture Desk / AFP)
As feministas – sempre elas – não gostaram e acusam a autora de glorificar a submissão ao macho alfa. “Além disso, é um livro muito mal escrito”, esbravejou a americana Erica Jong, autora de Medo de Voar, um dos marcos do erotismo feminista (e que não é ele próprio tão bem escrito assim, diga-se). E.L. James não se abala. “O que Cinquenta Tons fez foi encorajar as mulheres a voltar a falar sobre sexo. Isso é avanço, e não retrocesso”, devolve.

Treze tons de rosa
Mulheres que conquistaram leitores falando de sexo sem censura e sem vergonha

Anaïs Nin (1940)
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Anaïs Nin
Escreveu contos sob encomenda (1 dólar a página) para um cliente rico interessado em pornografia. O resultado foram as coletâneas Delta de VênusPequenos Pássaros, cuja publicação só foi autorizada pela autora francesa nos anos 70

Tereska Torres (1950)
Tereska Torres
Tereska Torres
Sacudiu o mercado editorial popular com Women’s Barracks, sobre as relações entre mulheres no Exército francês durante a II Guerra. Em dois anos, vendeu mais de 2 milhões de exemplares só nos Estados Unidos

Adelaide Carraro (1963)
Adelaide Carraro
Adelaide Carraro
Com o explosivo romance Eu e o Governador – sobre um suposto e apimentado affair com o político Jânio Quadros -, a escritora paulista virou sinônimo de pornografia. Especializou-se no gênero e foi um fenômeno de vendas em sua época

Jacqueline Susann (1966)

Jacqueline Susann
Jacqueline Susann
Com sexo, drogas e mexericos, a escritora americana vendeu 30 milhões de exemplares do seu O Vale das Bonecas. Em A Máquina do Amor, criou um herói sexy, frio e violento, como o Christian Grey de Cinquenta Tons de Cinza

Xaviera Hollander (1971)

Xaviera Hollander
Xaviera Hollander
Na autobiografia A Aliciadora Feliz, contou em detalhes escandalosos sua trajetória de secretária executiva a bem-sucedida dona de bordel em Nova York. Aos que a acusavam de indecente, respondia que se tratava de um “guia sexual para a mulher do século XX”

Erica Jong (1973)

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Erica Jong
Medo de Voar foi um dos estrondos editoriais da década de 70, com altas doses de erotismo, feminismo, papo-cabeça e palavrões. O escândalo maior, entretanto, ficou por conta da protagonista, que admitia praticar o adultério sem culpa nem remorso

Emmanuelle (1974)

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Emmanuelle
Graças ao sucesso do filme com Sylvia Kristel no papel-título, o livro de Emmanuelle Arsan, de 1959, chegou à lista dos mais vendidos. É a história da mulher de um diplomata que se entrega a fantasias sexuais na exótica Bangcoc

História de O (1975)

História de O
História de O
Outro caso de filme que fez a fama do livro – este escrito em 1954, por Pauline Réage (pseudônimo de Anne Desclos). A jovem O é entregue a vários homens pelo próprio amante, numa trama que dilui Marquês de Sade em pseudointelectualismo e alta-costura

Shere Hite (1976)

Shere Hite
Shere Hite
Muito mais comentado do que lido, O Relatório Hite – uma investigação sobre a sexualidade feminina – pôs em discussão assuntos até então tabus, como orgasmos múltiplos e masturbação. Considerada “a primeira feminista bonita”, Shere atualizou e republicou o livro em 2006

Jackie Collins (1979)

Jackie Collins
Jackie Collins
Atriz obscura, a inglesa passou a escrever romances tórridos em que o sexo é o prato principal. Já vendeu cerca de 400 milhões de exemplares com títulos nada sutis como A Vadia, O Garanhão e O Mundo Está Cheio de Homens Casados

Ariella (1980)

Ariella
Ariella
A enorme bilheteria do filme – baseado no romance A Paranoica – foi proporcional ao sucesso da autora do livro, Cassandra Rios, no Brasil dos anos 60 e 70. Entre suas obras lésbico-eróticas estão também Tessa, a GataA Santa Vaca.

Judith Krantz (1982)

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Judith Krantz
Ex-jornalista de moda, a escritora americana gosta de personagens ricos e ambientes glamourosos. Mas explora con gusto as cenas de sexo altamente gráficas em romances como LuxúriaPrincesa Margarida e A Filha de Mistral

Catherine Millet (2002)

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Catherine Millet
Vida Sexual de Catherine M. revelou um lado desconhecido da editora da prestigiosa revista francesa ArtPress. Nesse diário, ela confessa em detalhes sua preferência pelo sexo grupal – mas sempre na companhia do marido

Sexo, sexo, sexo, do começo ao fim, no livro mais falado do momento — e o mais vendido no mundo

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