domingo, 15 de julho de 2012

"O homem não é livre porque está sujeito à paixão" > Marquês d'Argens (1704-1771)

Nem só de sexo viviam os libertinos

Análise de obras censuradas do século XVIII sugere que autores se pautavam mais pela razão do que pela devassidão
GUSTAVO FIORATTI | Edição 196 - Junho de 2012

© ILUSTRAÇÕES COLAGEM DE BEL FALLEIROS COM REPRODUÇÕES DO LIVRO TERESA FILÓSOFA, DO MARQUÊS D'ARGENS
O libertino não é, necessariamente ou tão simplesmente, alguém que, como costuma pensar o senso comum, leva uma “vida voltada para os prazeres do sexo”, ou aquela figura do sujeito “devasso; dissoluto; libidinoso”, ou ainda do homem “que não cumpre com deveres e obrigações”.
A última definição do Dicionário Houaiss para o termo (as citações acima provêm da mesma fonte) é a que mais se aproxima do valor semântico abordado por Luiz Carlos Villalta em seu estudo Livros libertinos e libertinagens em Portugal e no Brasil no ocaso do Antigo Regime. Na pesquisa de pós-doutorado realizada pelo professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), esse sujeito também pode ser aquele que, ao exercer a liberdade de reflexão, “desconsidera regras e dogmas religiosos”.  Ou seja, a devassidão tem um lado político forte.
Em uma edição do século XIX do Diccionario da Língua Portugueza, libertino é ainda “o que sacudio o jugo da Revelação, e presume, que a razão só póde guiar com certeza no que respeita a Deus, á vida futura, &c.fig. o que é licencioso na vida; neste sentido é moderno”. A existência de Deus, aqui, passa a ser analisada por meio da razão e não pelo prisma dogmático.
Outras definições para a palavra, adaptadas de acordo com o período histórico, contexto cultural ou idioma, recriam, no fim das contas, a figura do homem da época moderna, que, sacudido pelas ideias iluministas, estabeleceu a razão como ferramenta essencial para reconfigurar um mundo até então calcificado em torno de duas fortes presenças: a da Igreja e a da Monarquia.
© BEL FALLEIROS
É essa figura que se desdobra pelos livros e documentos que deram base ao estudo, supervisionado por Roger Chartier, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, e por Rogério Fernandes, da Universidade de Lisboa. O texto de Villalta pretende rediscutir a licenciosidade registrada em romances do século XVIII, em registros da censura portuguesa da mesma época, em denúncias feitas à Inquisição contra o comportamento imoral e heresias, assim como a racionalidade presente em textos escritos para combater ideias libertinas.
Muitos dos documentos utilizados estão hoje guardados pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Mas há também fartura de livros publicados e ainda hoje editados, como as obras do português Manuel Maria du Bocage (1765-1805) e do francês Marquês de Sade (1740-1814), para citar dois dos principais nomes relacionados ao gênero.
Villalta é um estudioso da história do livro desde a década de 1980. Seu doutorado foi sobre censura, também sobre bibliotecas e as práticas de leitura em Portugal e no Brasil. Em suas investigações anteriores, ele tangenciou, por mais de uma vez, menções a autores denominados libertinos, inclusive em confissão atribuída a um integrante da Inconfidência Mineira, Cláudio Manuel da Costa.
O básico do ideal libertino, defende Villalta, reside no uso da razão como crivo para compreender o mundo. Por conta do primado da razão, o libertino assume a função de crítico por excelência, principalmente em relação às “verdades” estabelecidas pelas autoridades religiosas, muito embora – e agora sim as práticas sexuais podem definir um tópico dentro de um pensamento – seus princípios acabem contestando o comportamento moral cristão também na prática.
A razão, no entanto, raramente se presta à contestação de um único item. Foi na segunda metade do século XVIII, segundo Villalta, que o termo ganhou um novo atributo entre autores europeus e luso-brasileiros. Passaram a ser libertinos também aqueles que se opunham à Monarquia absoluta. “Se usamos o primado da razão, temos a liberdade de criticar não só a religião, mas também a ordem política”, resume Villalta.
Isso não significa que todo libertino se dedicava a observar ambos os sistemas político e religioso. Há casos de autores que se debruçam sobre um ou outro aspecto. E, como exemplo de dissociação de temas, pode ser citada a obra de Jean Baptiste de Boyer, o Marquês d’Argens (1704-1771), nobre francês a quem é atribuída a autoria do romance Teresa filósofa.
Marquês d’Argens, diz Villalta, questiona os dogmas religiosos ao exercitar sua liberdade criando na literatura situações consideradas imorais pelas autoridades. Descreve-as com riqueza singular, algo a provocar inveja em qualquer roteirista do gênero erótico de hoje. “Mas, em nenhum momento, se opõe à Monarquia absoluta”, aponta o pesquisador. Da mesma forma, havia autores da época retratada que se opunham ao sistema político e que, no entanto, continuavam fazendo o sinal da cruz.


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O comportamento libidinoso deriva, em parte, desse exercício de liberdade apregoado pelo primado da razão. “Uma vez que o libertino pensa, age e se comporta de maneira livre, muitos deles, frequentemente, não obedecem às regras morais instituídas pela religião. Aos olhos de autoridades, esse sujeito pode se comportar de uma maneira imoral. E esse traço da imoralidade foi usado muitas vezes para conspurcar a imagem dos libertinos”, conta Villalta.
Para o pesquisador, as pulsões sexuais tornam os libertinos vulneráveis ao ataque de seus opositores. “São sujeitos que enfatizam o privilégio da razão e, ao mesmo tempo, cedem lugares importantes para os impulsos, as paixões”, resume, relacionando essas últimas qualidades às práticas sexuais.
Paixão
Para exemplificar os desdobramentos desse conflito, Villalta cita Os Maias, de Eça de Queirós (1845-1900), muito embora o romance esteja situado em um período posterior ao estudado. Afonso da Maia quer educar o filho e o neto de tal sorte que os dois submetam suas paixões aos ditames da razão. “E ele falha com os dois”, avalia Villalta. “Essa relação é bem focalizada pela literatura, pela filosofia. O Marquês d’Argens diz que o homem não é livre porque ele está sujeito à paixão.”
Marquês de Sade, por sua vez, defende, como liberdade, a entrega total às paixões – palavra que, aqui, ainda não tem a significação romântica, do amor idealizado. A filosofia na alcova é um de seus romances mais conhecidos, protagonizado por três libertinos que educam uma jovem moça, induzindo-a a práticas sexuais que  hoje, no século XXI, poderiam motivar constrangimentos em muitas pessoas menos liberais.
Obviamente, o que é retratado na literatura não pode ser lido como relato do que acontecia na vida real, embora haja sim um paralelo. Marquês d’Argens, por exemplo, achava que tudo era permitido no sexo, desde que não houvesse prejuízo ao outro, conta Villalta. “Se o ato envolvia um homem e uma mulher, o homem não deveria engravidá-la, porque a gravidez gerava desonra; e se ela fosse virgem, o homem poderia fazer tudo, menos a penetração vaginal.”
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Pecado? Bem, pela moral cristã, preliminares não eram permitidas… Já no Brasil Colônia, a moral dos fiéis estabelecia que a “fornicaç ão simples” – termo usado por teólogos e também pela Inquisição – não era pecado. Mas daí surge o problema de definir o que pode ser considerado fornicação simples. Por exclusão: “Simples é a fornicação que não é complexa”, ironiza Villalta. Ou, na linguagem da época, é a fornicação “que não é qualificada”. Em outras palavras, da relação genital entre homem e mulher solteiros, não sendo a mulher virgem. Se for anal, a relação se torna “qualificada”, o que se dá também se um dos parceiros for casado, clérigo ou se a mulher for virgem.
Homossexualismo ganha um capítulo à parte. Não é um assunto tão presente e, quando surge, muitas vezes, ainda vem acompanhado de alguma carga moralista. EmTeresa filósofa, as relações homossexuais, por exemplo, aparecem de maneira “um pouco negativas”, diz Villalta. Em muitos romances há sexo entre homens, e o lugar reservado a essas práticas são os conventos e os mosteiros. “Nos romances libertinos, esses não são lugares de virtude, mas são escolas do vício, do pecado. E são ali que as relações homossexuais têm muito espaço”, pondera o pesquisador.
Em Saturnino, porteiro dos cartuxos – versão brasileira, publicada em 1842, de um romance supostamente escrito por Jean-Charles Gervaise de Latouche e que teve sua primeira edição na França, no final de 1740 ou no princípio de 1741 – o protagonista, em uma de suas peripécias eróticas, numa piscina do convento, identifica uma moça pela qual sente desejo. Ela lhe é concedida depois que ele aceita sujeitar-se a uma relação homossexual passiva com o padre Casemiro.
Editores
Conta a professora do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Márcia Abreu, Saturnino, porteiro dos cartuxos faz um frontal ataque ao comportamento dos eclesiásticos, por meio de cenas, instruções e descrições de natureza sexual. O livro “mobilizou, de um lado, livreiros, editores e leitores capazes das mais extravagantes peripécias para ter acesso a ele e, de outro, censores, inquisidores e agentes policiais empenhados em impedir a circulação da obra”.
Ainda segundo a pesquisadora, que também estuda romances libertinos, muita gente foi perseguida e presa em Paris assim que o livro começou a circular. O escritor e jornalista Pascal Pia (1903-1979) reconstituiu, a partir dos registros que restaram na Bastilha, os primeiros esforços da polícia para tentar identificar e deter o autor, os ilustradores, editores, vendedores e até leitores da obra.
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A documentação reunida por Villalta dá base à hipótese de que o retrato literário de práticas homossexuais dentro da Igreja Católica não era fruto exclusivo da imaginação. O autor encontrou, em um mosteiro em Portugal, uma denúncia datada do fim do século XVIII em que um jovem frade faz relato sobre outros dois companheiros que o teriam assediado sexualmente. “Ele os denunciou e ninguém tomou providência. Por isso, o fradezinho começou a sofrer tentativas de assassinato; e isso não é ficção”, atesta Villalta. “Foram mais ou menos três tentativas.”
Outros documentos da época, diz o pesquisador, assinalam a estreita relação entre os clérigos e as práticas homoeróticas, adjetivadas então como “vícios de clérigos”. Detalhe significativo, sublinha o autor: há registros de que os dois frades, antes ou depois de suas relações homoeróticas, em uma ocasião ao menos, leram um poema de Bocage chamado Epístola a Marília. O texto apresenta a religião e a imagem do inferno como elementos de opressão política e moral.
Documentação impressa e manuscrita, utilizada nos órgãos de censura, são grandes aliadas do pesquisador. Ele conta que, para sua sorte, censores liam os romances publicados à época, discutiam e davam pareceres sobre o que poderia ou não ser publicado. “Essas análises viravam editais que proibiam os livros libertinos. Alguns eram proibidos em segredo, pois a própria censura reconhecia que editais poderiam estimular leitores a procurar por essas obras”, conta Villalta.
As tentativas de combate aos ideais libertinos, muitas vezes, faziam efeito contrário, portanto. Perseguido na época do Marquês de Pombal (1699-1782) por se opor à subordinação da Igreja aos interesses da coroa, o padre Teodoro de Almeida, nos 10 volumes de sua Recreação filosófica, obra publicada entre 1751 e 1800, pondera sobre os possíveis efeitos da publicação de críticas aos livros libertinos. “Poderia ser um tiro pela culatra”, resume Villalta. “Quando você critica, você divulga. Na medida em que se publicam em português as obras que discutem as ideias libertinas, publicadas em livros editados no exterior e em outros idiomas, as tornamos acessíveis para um público que não conhece línguas estrangeiras.”
Verdade seja dita: a Igreja, neste caso, acabou dando uma força. Pela riqueza de documentos disponíveis e pelos volumes e exemplares guardados nas gavetas da própria Inquisição, a história dos libertinos pode enfim agora ser recontada.


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