segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Lições do papel de repórter - Reproduzido do suplemento “Sabático” do Estado de S.Paulo, 4/8/2012 | Observatório da Imprensa | Observatório da Imprensa - Você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito

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ENTREVISTA / AUDÁLIO DANTAS

Lições do papel de repórter

Por Luiz Zanin Oricchio em 07/08/2012 na edição 706
Reproduzido do suplemento “Sabático” do Estado de S.Paulo, 4/8/2012
Aos 80 anos, que não aparenta de jeito nenhum, Audálio Dantas é um mestre. Um mestre do jornalismo, sereno, incisivo e sem sinal de vaidade. Quem o conhece sabe da trajetória de vida exemplar. Das grandes reportagens em jornais e revistas O Cruzeiro e Realidade. Da coragem na condução do Sindicato dos Jornalistas em sua hora mais dramática, a do assassinato do jornalista Vladimir Herzog nos porões do DOI-Codi, durante a ditadura militar.
Dessa faceta de jornalista exemplar, temos uma boa amostra em Tempo de Reportagem, que a editora Leya lança agora. São 13 relatos pinçados por Audálio de um longo trabalho na imprensa na condição de repórter, daquele tipo que, como se diz no jargão do ofício, não pode ter medo de gastar as solas dos sapatos, pois é nas ruas que estão as boas histórias e não no ar condicionado das redações.
Da atuação política ficaremos sabendo um pouco mais adiante, quando lançar A Segunda Guerra de Vlado Herzog, editado pela Civilização Brasileira e que chegará às livrarias em outubro. No livro, Audálio resgata a participação do Sindicato dos Jornalistas nesse episódio, marco trágico pelo assassinato de Vlado, mas também divisor de águas no enfrentamento da ditadura pela sociedade civil. Leia a seguir, a entrevista concedida por Audálio ao “Sabático”.
De todos os textos que você publicou em sua longa carreira, escolheu 13 para esta coletânea. Com que critério fez a seleção?
Audálio Dantas– Eu já havia publicado um livro, O Circo do Desespero, título de uma das reportagens, com dez textos. Agora reuni mais dois, um sobre Carolina Maria de Jesus e outro sobre uma maratona do beijo, prova bastante parecida com a da maratona da dança, e que escrevi para a Playboy em 1993. Tirei também uma matéria chamada Restos, sobre pessoas que vivem do lixo, que acho demagógica. Mas há outra novidade. Para este livro, escrevi uma espécie de making of de cada reportagem. Quer dizer, uma apresentação de cada uma delas, uma reavaliação desses textos, alguns já antigos, pelo meu olhar contemporâneo. O interessante é que às vezes o making of é tão ou mais extenso que a reportagem em si.
Desses, qual considera o mais importante?
A.D. – Sem dúvida, a reportagem sobre a Carolina Maria de Jesus, que teve repercussão imensa, mudou a vida da personagem e também a minha. É um texto do qual não gosto muito, mas ele tem essa importância. E é exemplo de como um repórter sai da redação atrás de uma coisa e pode encontrar outra, se estiver de olhos abertos. Eu saí para fazer reportagem sobre uma favela que estava se formando, no Canindé, na beira do Tietê, e descobri essa mulher que escrevia, mantinha um diário, tinha poemas e tudo o mais, e já andara por algumas redações de jornais tentando em vão chamar a atenção para o seu caso. Não gosto do meu texto, tem muito adjetivo, é até piegas. Serviu para revelar o caso e possibilitou a publicação do livro da Carolina. Tirou 100 mil exemplares, isso nos anos 50, e foi traduzido em vários países. O prefácio da edição em italiano é do Alberto Moravia.
Há essa constante na maior parte das suas reportagens, a presença do povo como personagem, não é? Bem distante do jornalismo de celebridades atual. Você não tinha dificuldade em vender algumas dessas pautas?
A.D. – Sempre tive essa busca por assuntos de fundo social. O tempo era outro, ainda assim um editor me censurou por colocar negros e pobres como personagens. Por exemplo, no caso de O Circo do Desespero, era uma abordagem diferente na cobertura habitual do carnaval, os desfiles, as mulheres gostosas, os bailes. Aqui, o caso era outro. Eram miseráveis atrás do prêmio, que se matavam numa maratona de dança interminável. Por sorte, o editor de O Cruzeiro era um intelectual, um homem sensível, Odylo Costa, filho. Entreguei o texto e ele, do Rio, mandou um telegrama dizendo que havia chorado ao lê-lo. Como digo no livro, acho que foi o maior elogio que recebi em minha carreira de repórter.
No entanto, o texto não é piegas...
A.D. – Sempre pretendo contar a história da melhor maneira, sem chantagear ninguém ou procurar comover.
Mas os textos são impactantes, emocionam, fazem pensar. Há uma proximidade temática entre essa reportagem sobre a dança e a outra sobre a maratona do beijo, que fecha o livro.
A.D– São parecidas por esse aspecto, o mundo cão, armado para explorar desesperados que tentam ganhar algo. Mas se reparar, no primeiro caso são miseráveis atrás de uma recompensa para garantir necessidades básicas, como alimento. No outro, já se disputava um automóvel, símbolo de status. No fundo, a mesma coisa, a exploração das pessoas, transformadas em espetáculo na sua agonia.
A mais dura, me parece, é “Juqueri - Nossos Desamados Irmãos Loucos”. Que também traz uma inovação formal da técnica jornalística, um texto no qual se vê a compaixão pelo outro.
A.D. – Sim, para fazer uma reportagem desse tipo você tem de ser um observador. Mas precisa se identificar com o outro, com a dor do outro. Não existe neutralidade; tem o seu ponto de vista ali. E, quanto à forma, como aquele era um universo fragmentado, eu também escrevi em fragmentos, em flashes isolados, que faziam sentido no conjunto. Faço um tipo de jornalismo que não se enquadra naquele esquema do lead, das informações básicas, etc. Acho que se pode usar técnicas da literatura, como supor um determinado pensamento na cabeça de um personagem. Mas tenho receio de que a expressão “jornalismo literário” leve a pensar que estamos inventando algo, que estejamos fazendo ficção. O jornalista deve observar os fatos, ater-se às informações. Pode escrever como ficcionista, mas não fazer ficção. Deve também ouvir o máximo possível de pessoas, como fiz em “Chile 70”, logo após da eleição de Salvador Allende. Conversando com as pessoas de diferentes pontos de vista, percebia-se logo onde aquilo poderia dar. Não é algo que se faça num dia ou dois. Percorri o país de norte a sul, por mais de 3500 quilômetros e ouvi dezenas de pessoas antes de escrever.
E quanto ao livro sobre o caso Herzog?
A.D. – A Segunda Guerra de Vlado Herzog eu estava devendo havia 37 anos. O caso já foi esmiuçado de vários ângulos, houve até filme, mas faltava destacar a atuação do Sindicato dos Jornalistas na ocasião. A resistência, o culto ecumênico na Catedral da Sé, toda a reação à morte do Herzog foi um desafio à ditadura, um divisor de águas no processo de liquidação do autoritarismo, e o nosso sindicato teve participação importante em tudo isso.
Como você o escreveu?
A.D– É uma história do Vlado, em sua parte biográfica. E a história daquele período e das circunstâncias que o levaram à morte. Eu não havia anotado nada. Levei ano e meio lembrando e escrevendo. Nas horas vagas, que se diga, pois não interrompi outras atividades profissionais para fazer esse livro. Fui lembrando. Parte dele é um diário em primeira pessoa, o resto é em terceira pessoa. Há esse lado íntimo, pessoal. Mas também entrevistei muita gente. Ouvi mais de 50 participantes dos fatos, José Mindlin, dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel, jornalistas que haviam sido presos antes do Vlado como Sergio Gomes da Silva, Paulo Markun, Duque Estrada, a Clarice Herzog. Enfim, é um livro que eu sentia que devia ser escrito.
***
[Luiz Zanin Oricchio, do Estado de S.Paulo] 

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