domingo, 10 de janeiro de 2016

Pequena história do Brasil contada por uma caderneta... / Senhor Custódio e Roberto Pompeu de Toledo

10/01/2016
 às 0:15 \ Opinião

‘Alerta de Ano-Novo’, um texto de Roberto Pompeu de Toledo

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Foto de O Tempo (ilustração)
Publicado na versão impressa de VEJA 
O senhor Custódio está preocupado. Ele é um veterano de inflações. Quando jovem, viveu os 81,99% de 1963 e os 86,46% de 1964. Já maduro, tendo de arcar com as próprias contas, lembra dos 220,6% de 1984 e dos 235,13% de 1985. E os primeiros anos 1990 então? Lá foi o índice para taxas astronômicas. Em 1990 foi de 1 475,71%; em 1992, de 1 158%; em 1993, de 2 780,6%. Em corrida desenfreada, o Brasil passou, nessas três décadas, das dezenas para as centenas, e das centenas para os milhares. O sr. Custódio está preocupado com a inflação de dois dígitos e as notícias de suspeitas reorientações da política econômica do governo e, como teme que muitos brasileiros, especialmente os 40% nascidos depois de 1990, não tenham ideia do que é viver com altas taxas, franqueou ao colunista seus registros de despesas dos anos 1993-1994, vésperas do Plano Real.
Custódio é uma pessoa prudente e metódica. Anota e guarda tudo direitinho. É assim que ficamos sabendo que o aluguel do apartamento em que morava, em janeiro de 1993, era de 2 350 000 cruzeiros (sim, milhões ─ era nessa esfera que se trabalhava); em fevereiro já passara para 3 127 530 e, em julho, atingira 14 540 000. Foi da casa dos 2 milhões para a casa dos 14 milhões em sete meses! A conta de luz, que em janeiro era de 367 760 cruzeiros, em julho chegara a 1 953 422.
A preciosa caderneta do sr. Custódio tem registros ainda mais singelos do que era a vida contabilizada em milhões. Em junho de 1993, a compra de mês num supermercado custou-lhe 3,4 milhões de cruzeiros. Nesse mesmo mês, acometido pela suspeita de doença grave, pagou 3,8 milhões por uma consulta com um especialista. Não se pense que eram cobranças fora da realidade. Os 3,4 milhões da compra do mês equivalem a 440 reais de hoje, e a consulta de 3,8 milhões, a 490 reais ─ preço de um especialista renomado, então como agora. O que era fora da realidade de uma sociedade organizada, e tão fora que atingia níveis surreais, era, primeiro, ter de trabalhar com tantos algarismos, e, segundo e mais importante, algarismos que não paravam quietos, tomados pela loucura de subir. Em março-abril, o sr. Custódio fez um tratamento dentário. O esperto dentista não quis perder tempo fazendo cálculos de milhões. Tomou logo como referência a moeda americana e cobrou 400 dólares pelo serviço, a ser quitados em duas vezes.
Em agosto de 1993 houve uma mudança de moeda. Saiu de cena o cruzeiro e, em seu lugar, entrou o “cruzeiro real”. Já se articulava o Plano Real, daí o nome da nova moeda, mas a medida, ao cortar três zeros da moeda anterior, tinha por único objetivo facilitar os cálculos. A inflação continuaria em sua marcha indômita. O sr. Custódio, nesse período, tinha o azar de ter um filho cursando uma cara faculdade, que pagava às vezes recorrendo a empréstimos de parentes. A mensalidade foi de 12 700,98 cruzeiros reais, em agosto, para 46 470, em dezembro. No ano seguinte a marcha continuou, e a mesma mensalidade, em junho de 1994, o último mês antes do início da era do real, atingira 389 179.
Ao rever suas anotações, o sr. Custó­dio é tomado de alucinações como pensar que até o fim da década, do jeito que vão as coisas, retomaremos o velho truque de cortar os zeros da moeda ─ e o real (R$), já impossível de caber no normal das calculadoras, será substituído pelo novo real (NR$). São só alucinações, claro. Custódio, além de prudente e metódico, é assustadiço como costumam ser as pessoas prudentes e metódicas. Em todo caso, consultando seus alfarrábios, ele verifica como foi fácil, poucas décadas atrás, escalar dos 19,47% de inflação em 1970 aos 79,42% em 1979, e daí aos 235,13% em 1985. Com a inflação, vão-se os ministros da Fazenda. O governo Sarney teve quatro. Itamar Franco, em sete meses, testou e descartou três, antes de nomear Fernando Henrique Cardoso. Dilma Rousseff, em onze meses do segundo mandato, já partiu para o segundo.
O sr. Custódio é assaltado pela sensação de um conhecido filme que recomeça. Ele gostaria que a excelentíssima senhora presidente da República e o excelentíssimo senhor Nelson Barbosa, o novo ministro da Fazenda (o sr. Custó­dio, além de prudente, metódico e assustadiço, é formal como costumam ser as pessoas prudentes, metódicas e assustadiças), dedicassem um minuto de seu precioso tempo para considerar os dados de sua caderneta. O desânimo o impede de sair por aí desejando às pessoas um feliz ano-novo. Prefere distribuir alertas de ano-novo. O colunista pensa que ele talvez tenha razão.

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