sexta-feira, 3 de junho de 2016

"Em vez ditaduras, temos democracia imperfeitas" / Mario Vargas Llosa

“Em vez de ditaduras, temos democracias imperfeitas”


O romancista Mario Vargas Llosa, criador de obras-­primas como “Conversa na catedral”, “A guerra do fim do mundo” e “Tia Júlia e o escrevinhador”, é um dos maiores escritores da atualidade. Pela excelência de sua literatura, ganhou o Prêmio Nobel. Em suas palestras, no entanto – como as que deu no Brasil na semana passada, no ciclo “Fronteiras do Pensamento” e num evento do Instituto Palavra Aberta –, o autor fala pouco de seus romances. Llosa se tornou um intelectual engajado. Suas causas são a liberdade e a democracia. O bom combate leva o autor peruano, que mora em Londres, a viajar pelo mundo. No giro mais recente, antes de vir ao Brasil, Llosa esteve na Argentina e no Chile. Ele está otimista com a América Latina, incluindo o Brasil. Llosa acha que nossa democracia sairá fortalecida, e não enfraquecida, do segundo processo de impeachment em menos de 30 anos. “O movimento popular que surgiu no Brasil é de melhoramento das instituições”, afirma.
Época – O impeachment da presidente Dilma Rousseff representa uma ameaça à democracia, como diz o governo brasileiro?
Mario Vargas Llosa – Não creio que a democracia brasileira esteja ameaçada. Ao contrário. O que está ocorrendo pode representar um fortalecimento da democracia no Brasil.
Época – Por quê?
Llosa – O movimento popular que surgiu no Brasil é um movimento anticorrupção, de purificação da democracia, de melhoramento das instituições. E, sobretudo, de repúdio à ideia de que chegar ao poder seja um pretexto para enriquecer usando meios ilegais. Esse movimento mostra que havia mais corrupção do que parecia no Brasil, e rechaça a prática. A corrupção, em toda a América Latina, é uma gangrena contra as instituições democráticas.
Época – O senhor vive em Londres. Como os europeus veem a situação atual do Brasil?
Llosa – A ideia de que há um golpe em curso no Brasil é o argumento principal da presidente Dilma Rousseff. Mas não acho que seja possível levar essa ideia a sério. Minha impressão é que estão sendo cumpridos todos os passos estabelecidos pela legalidade brasileira. Se houver impeachment, como parece que haverá, ele se dará estritamente dentro da moldura legal, que assim sai fortalecida. Creio que, se há uma ameaça à legalidade brasileira, essa ameaça está na corrupção, que cria um desencanto muito grande com as instituições democráticas.
Época – Outro assunto muito discutido no país, além da corrupção, é a derrocada econômica, que está na raiz do processo de impeachment.
Llosa – Espero que o impeachment, se ocorrer, sirva como um aviso para evitar a desonestidade nos cargos públicos, mas não apenas isso. É preciso evitar também as políticas fiscalmente irresponsáveis. Creio que a irresponsabilidade, que é o populismo, está muito ligada à corrupção.
Época – Qual a relação entre corrupção e irresponsabilidade fiscal?
Llosa – O populismo serve para ocultar, para disfarçar as transgressões da lei. Eu acredito que as duas coisas, populismo e corrupção, andam sempre juntas.
Época  Como avalia a derrota da presidente Cristina Kirchner na Argentina?
Llosa – Também vejo o caso argentino com muito otimismo. A Argentina estava indo em direção ao abismo. Seus governantes haviam comprado, pelo menos retoricamente, o “socialismo do século XXI” da Venezuela. Cristina foi uma entusiasta de Hugo Chávez e do chavismo. Sabemos aonde conduz o “socialismo do século XXI”. A Venezuela está à beira do abismo, o país está literalmente se desfazendo. Lá existe fome, faltam todos os artigos de primeira necessidade, remédios, alimentos, há uma inflação que é a mais alta do mundo, há uma escalada vertiginosa da violência. A Argentina estava nesse caminho. Tudo o que havia fracassado no resto do mundo estava sendo aplicado na Argentina pelo casal Kirchner. Por sorte, houve uma rea­ção contra o populismo na Argentina, civilizada e eleitoral. Macri está indo bem num primeiro momento. Está pegando o touro pelos chifres, como se diz na Espanha, fazendo as reformas necessárias.
Época – Essas reformas não são dolorosas demais para a população?
Llosa – Claro que o populismo sempre tem um custo, um custo alto, e quem paga é sempre o povo. Mas a culpa pelas reformas que Macri tem de fazer é do próprio populismo, que manejou o dinheiro público de maneira completamente irresponsável, demagógica, aumentando o gasto fiscal de maneira vertiginosa. Apesar do custo, essa mudança é bastante positiva e há indícios de que vá trazer muitos benefícios ao país. A Argentina é um país com recursos enormes. Se os investimentos vierem, como espera o governo, creio que a inflação será controlada e se poderá gerar emprego.
Época – Há dois tipos de governos de esquerda na América Latina. No Peru e no Chile, há responsabilidade fiscal e respeito às regras democráticas. Já no Equador, na Venezuela e na Bolívia – e na Argentina até recentemente –, o modelo é diferente. Por que isso acontece?
Llosa – Isso ocorre porque países como Equador, Venezuela e Bolívia são governados por mandatários que têm uma inclinação muito forte ao populismo. Mas minha impressão é que há uma reação na América Latina contra o populismo. Formou-se uma consciência de que o populismo significa sacrificar o futuro em troca de um presente que é muito efêmero. E o custo é sempre muito alto, principalmente para os mais pobres, que não têm como se defender de uma inflação alta, por exemplo. Minha visão da América Latina não é 100% otimista, porque na América Latina sempre podem ocorrer catástrofes. Mas tenho a impressão de que se compararmos a América Latina atual com a de 30 anos atrás há um progresso considerável. No passado tínhamos ditaduras militares e revoluções armadas. Agora temos democracias imperfeitas, mas que podem ser corrigidas.


Época – O senhor é peruano. Como vê o caso específico do Peru, governado pela esquerda e considerado um exemplo de boa gestão econômica por organismos internacionais?
Llosa – É muito interessante o que se passa no Peru. Desde que caiu a ditadura, no final do século passado, houve três, quase quatro governos distintos que mantiveram o respeito à democracia política e – algo que é muito raro na América Latina – uma continuidade da política econômica. Uma política com abertura dos mercados, integração aos mercados do mundo, e incentivos aos investimentos. Com isso, reduziu-se bastante a pobreza extrema e houve um crescimento significativo das classes médias. Oxalá essa continuidade, que é rara também na história do Peru, se mantenha.
Época – O senhor já foi fascinado pelo socialismo cubano. Pode falar sobre isso?
Llosa – Minha geração queria ver no socialismo cubano um socialismo diferente, que não havia passado por um partido comunista, que parecia aberto à coexistência de ideias e valores diferentes. Parecia que finalmente teríamos uma revolução com liberdade e justiça. Hoje creio que tudo isso era um mito. Desde o princípio Fidel Castro optou por uma linha de socialismo soviético, que lhe dava um poder absoluto. Mas o desencanto demorou a chegar, como acontece sempre com os mitos que demoram em se desfazer.
Época – A aproximação com os Estados Unidos pode trazer a Cuba algo parecido com uma democracia?
Llosa – De imediato não. Seria ingênuo pensar isso. Cuba pode receber um pouco de oxigênio com os investimentos americanos, o que melhoraria a situação econômica catastrófica da ilha. Se o comércio trouxer alguma prosperidade, a vida será mais respirável para os cubanos. A abertura econômica pode trazer uma certa abertura política. Mas acho que, enquanto os irmãos Castro estiverem vivos, não haverá mudanças importantes.
Época – O senhor se define como um liberal. No Brasil, não há representação política que defenda ideias liberais. Os dois partidos protagonistas das últimas eleições presidenciais, PT e PSDB, se definem como de esquerda.
Llosa – Não há partidos liberais em quase nenhum país da América Latina. É divertido notar que o ditador nicaraguense Anastasio Somoza dizia que seu partido era liberal. Se isso é liberalismo, é melhor mesmo que não haja partidos liberais. Os partidos não se atrevem a se definir como liberais porque a palavra foi satanizada pela esquerda. A esquerda, quando governa, às vezes governa muito mal, mas, quando sataniza algo, consegue ser bastante eficaz, usando lugares-comuns e clichês. Isso não importa. O que importa é que as ideias liberais, de alguma maneira, voltaram à atualidade na América Latina, de forma que os países estão colocando em prática, em larga medida, a doutrina liberal.
Época – O senhor pode dar exemplos?
Llosa – Nenhum presidente peruano se atreveria a dizer “sou liberal”, mas no Peru houve privatização de empresas. No Peru há a defesa da democracia, a defesa da liberdade econômica, a defesa do direito de propriedade, o estímulo aos investimentos… Por trás de todas essas ideias há princípios liberais muito claros. Veja também o exemplo do Uruguai. O país é governado por um partido com origem na extrema-­esquerda. Mesmo assim, há uma política de respeito da democracia e uma política econômica que é profundamente liberal. Os empresários estão muito contentes com o governo de extrema-esquerda do Uruguai. Somos muito poucos os que nos declaramos como liberais. Mas estamos vendo, com muita satisfação, que nossas ideias, que nossos valores, começam pouco a pouco a se estender pela América Latina, ainda que com nomes diferentes. Quando houver progresso, quiçá os que impulsionam esse progresso reconheçam que estão inspirados no liberalismo.
Época – No Brasil e na América Latina há partidos de esquerda que abraçam as ideias liberais. E no resto do mundo?
Llosa – Há também partidos de direita que abraçam as ideias liberais. O liberalismo contamina a social-democracia, o socialismo, mas também os partidos conservadores. É interessante que, no Reino Unido, a grande reforma liberal não foi feita pelo Partido Liberal, mas pelo Partido Conservador, com Margaret Thatcher. Na Espanha, as grandes reformas liberais foram feitas pelo Partido Popular, de tendências conservadoras. O liberalismo não é uma ideo­logia, mas uma doutrina, que pode contaminar diferentes matizes das forças políticas. E isso é bom. O liberal Ludwig von Mises dizia que o liberalismo deveria ser uma cultura – na economia, na política, na vida individual – da qual se alimentam todos os partidos democráticos.
Época – Pode-se dizer que o senhor pertence a uma corrente alternativa do liberalismo?
Llosa – Não, não seria verdade. Não há que confundir essa visão economicista – dos que veem o mercado como a panaceia para resolver todos os problemas – com a visão dominante do liberalismo. Nenhum dos grandes criadores da doutrina liberal, a começar por Adam Smith, escreveu isso. Os liberais sempre defenderam valores como a democracia, a tolerância, a coexistência na diversidade. Sempre admitiram o princípio de que podem estar errados, de que o adversário possa ter razão – essa é a essência da grande tradição liberal. Por isso os liberais foram sempre tão hostis a religiões de Estado. Justamente porque sempre foram contra o dogmatismo, contra as verdades únicas e absolutas. A grande mensagem liberal é a tolerância.
Época  Por falar em religiões e Estado: na votação do impeachment na Câmara, os brasileiros ficaram surpresos com a quantidade de deputados que citaram o nome de “Deus”. Qual o efeito das bancadas religiosas numa democracia?
Llosa – Não há nada de errado em haver abertura para todas as crenças dentro de uma democracia. O perigo é quando uma religião se converte em uma religião de Estado. O liberalismo defende que o Estado seja laico e que as religiões coexistam, prosperem, entrem em competição pelos fiéis.
Época  O senhor escreveu um livro sobre a civilização do espetáculo. Ela é uma ameaça à democracia?
Llosa – Esse é outro problema do nosso tempo. A alta cultura sempre proporcionou diversão e entretenimento. Mas a diversão não é a função principal da cultura, como se pensa hoje. A cultura tem como missão fundamental manter vivo o espírito crítico. A cultura nos coloca em contato com mundos criados, artísticos, que são confrontados com o mundo real. Ela nos faz ver o mundo real desde a perspectiva de mundos imaginados, geralmente mais ricos, mais intensos, mais perfeitos. Isso cria em nós um desassossego, uma inconformidade em relação ao mundo real, e é daí que nasce o espírito crítico – que é o elemento transformador das sociedades. Uma sociedade culta no sentido tradicional da palavra é mais difícil de enganar por governos mafiosos e autoritários. Se tudo se torna frívolo, puro entretenimento, perde-se esse efeito crítico e transformador da cultura.
Por João Gabriel de Lima e Fernando Schuler
Fonte: revista “Época”, 13/05/2016

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