quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

"Nossa sobrevivência depende das ficções que criamos sobre quem somos"


joão pereira coutinho
Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.

Nossa sobrevivência depende das ficções que criamos sobre quem somos

O ano termina e a imprensa faz os seus balanços: filmeslivrosdiscosPeças de teatro. Peças de lingerie. É um simpático ritual.
Não fujo à responsabilidade: o meu filme de 2017 foi filmado em 2014. Mas isso interessa? Não interessa. Quem perde tempo com pormenores cronológicos arrisca-se a ignorar "Força Maior", o inteligente e subversivo filme de Ruben Östlund que só agora assisti.
Imagine a leitora que era casada com um homem rico, bonitão, atlético. Imagine a leitora que a família resolvia passar férias em resort de ski onde só os abastados podem entrar. Depois de tudo isso, imagine também –atenção: vem aí o "spoiler"– que presenciava uma avalanche de neve no elegante terraço do hotel.
Ângelo Abu/Folhapress
Primeiro, a beleza do fenômeno, captada pelo onipresente celular. Depois, a avalanche chegando cada vez mais perto, estranhamente perto, perigosamente perto.
Até o momento em que há pânico entre os hóspedes, gritos, fugas apressadas –e o maridão rico, lindo, atlético decide instintivamente fugir, deixando para trás a leitora e os dois filhos.
Felizmente, foi apenas um medo infundado –a neve ficou ainda longe do terraço. Mas podemos dizer, para usar a linguagem moderna, que a relação está com problemas?
Poder, podemos. Mas a vida continua e, no fim das contas, ninguém é perfeito –certo?

Errado, responde Ruben Östlund. Sobretudo quando o maridão regressa para a família, fazendo de conta que nada se passou. Mas nós sabemos, a mulher sabe, que tudo se passou naqueles segundos. Uma quebra de masculinidade, digamos; o maridão rico, lindo, atlético revelou a sua covardia.
"Força Maior", como o título indica, é um tratado sobre as forças maiores que definem as nossas vidas. Superficialmente, temos a força maior da natureza, que, de vez em quando, esmaga as vaidades humanas com esplendorosa brutalidade.


Mas o que interessa para Östlund não são as forças "exteriores"; são, antes, as forças "interiores", primitivas, instintivas que a civilização reprimiu (obrigado, dr. Sigmund) mas que nunca nos abandonam completamente.

No início, a família representa essa civilização com todos os símbolos do conforto "burguês": cartão de crédito generoso, roupa sofisticada para brincar na neve, até escovas de dente elétricas para eliminar as cáries com maior eficácia. Mas basta um soluço da natureza para que a fêmea proteja as crias –e o macho desapareça para salvar a pele.

Visualmente, esse contraste entre "civilização" e "estado de natureza" é reforçado pelos espaços centrais da narrativa: de um lado, o hotel de luxo; do outro, a paisagem gélida, desértica, quase lunar.
Mas o melhor do filme não está apenas nesse momento fugaz em que o animal humano, medroso, visceral, suplanta o ser civilizado. Está na pequena fenda que ele abre entre o casal. Sim, eles tentam ignorar, depois dialogar, depois fazer piada, depois enterrar o assunto com uma trégua racional.
Só que a fenda nunca desaparece; a mulher nunca se esquece –e o maridão começa a minguar aos nossos olhos, aos olhos da família, aos seus próprios olhos, até ser um farrapo de homem em busca de redenção.


Essa redenção surge por obra e graça da mulher, que oferece ao marido uma nova máscara de bravura. Só então percebemos como a nossa sobrevivência depende das ficções que criamos sobre as pessoas que somos. Sem essas mentiras piedosas, poucos suportariam a imagem crua da mais básica bestialidade.

E se o leitor pensa que jamais, em tempo algum, imitaria o amedrontado homem que abandonou mulher e filhos, cuidado: ignorar o animal que habita em nós é a forma mais imediata de nos comportarmos como ele.
*
P.S. Na coluna da semana passada, falei de Gore Vidal como um dos maiores ensaístas do século 20. Alguns leitores pediram bibliografia sobre o assunto. Aconselho três livros para saborear o talento do homem.
O primeiro é "United States", volume colossal com 40 anos de meditações sobre política, artes e assuntos pessoais. Os outros dois são os volumes de memórias "Palimpsest" e "Point to Point Navigation".
Sobre William Buckley, a sua nêmesis ideológica, recomendo "Miles Gone By" –a autobiografia de um conservador americano que ficaria horrorizado com o estado a que os republicanos chegaram.

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