domingo, 15 de julho de 2018

O que fazer com o óbvio?

Minutos de sabedoria

Monja Coen e Leandro Karnal revestem de princípios budistas e pílulas filosóficas platitudes apaziguadoras entoadas como séria reflexão
Bateu o joelho na quina da cama? A Monja Coen e Leandro Karnal ensinam a não xingar e, assim, fazer sua parte no combate à cultura da violência. Deprimiu-se com a eliminação do Brasil? A jornalista há 35 anos convertida ao budismo comenta em cima do lance, nas redes sociais, que jogo é recomeço, é como a vida. Foi demitido? O professor da Unicamp cita Maquiavel para lembrar que você deve ser o “gestor de sua vida”. É, não está fácil para ninguém. E é justamente facilidade que a dupla vende em palestras para empresas, professores ou dentistas e, agora, juntos, em O inferno somos nós — Do ódio à cultura da paz (Papirus 7 Mares).
Não espanta que o livro esteja nas listas dos mais vendidos. Nada contra best-sellers, monjas ou professores de história. Mas ainda não perdi a capacidade de estranhar que os três façam parte de uma mesma equação, nesse caso uma das expressões mais bem-acabadas de toda uma cultura motivacional que acena com felicidade pessoal e sucesso profissional. Seu porta-voz é o “palestrante”, que, assim como o youtuber, é uma das mais exóticas ocupações de nosso tempo. Uns e outros, aliás, ganham a vida falando pelos cotovelos, para todos e para ninguém, sobre grandes temas e miudezas. E replicam em livro a lógica oracular de suas apresentações ao vivo ou na web.
É inútil discutir suas ideias, pois pregam para convertidos. Não têm leitores, mas clientes que pagam para ouvir o que querem e não ser importunados.
Monja Coen e Leandro Karnal são, nessa lógica, perfeitos evangelistas do óbvio. Revestem de princípios budistas e pílulas filosóficas platitudes apaziguadoras entoadas como séria reflexão.
Em O inferno somos nós — referência à célebre frase “o inferno são os outros”, citação de Entre quatro paredes, peça de Jean-Paul Sartre — pretende-se singelamente defender a desmontagem da “cultura do medo” que fundamenta o Ocidente e, com ela, da “cultura da violência”.
No diálogo, Karnal faz o papel do homem quase comum, um sábio atravessado por paixões, vaidades e breves momentos de intolerância. À Monja cabe, é claro, a imagem de equilíbrio temperada por uma ou outra manifestação de falibilidade. Tudo transcorre num mundo mau, mas que assim nos parece porque a turma insiste em amplificar seu lado negativo: “Estamos aqui discutindo cultura de paz, e isso não será manchete de nenhum jornal”, diz Karnal. “Não sou conspiracionista, mas acho que, talvez, exista um plano geral em que interessa muito o medo porque ele é a melhor forma de controlar as pessoas.”
Ok, o mundo é adverso. Mas não para valer. No diálogo não existe violência de Estado nem desigualdade social, apenas genéricos indícios de iniquidade. A adversidade torna-se mais concreta quando fala, por exemplo, à experiência da vida corporativa. Usa-se a hedionda expressão “resiliência” e recomenda-se prudência em momentos delicados, como quando se está prestes a perder o emprego num processo de “fusão”. “Em um momento de transição como esse, quem conseguir manter a calma e fazer o seu melhor garantirá sua vaga”, diz a Monja entre uma parábola de um samurai e a de um tirano arrependido. “Quem, através do medo, fica assustado deixa de produzir de acordo com sua capacidade e acaba sendo descartado.”
Os anos de meditação talvez expliquem a peculiar percepção da Monja Coen sobre a realidade brasileira. “Gosto que ainda haja polícia no mundo, policiais que possam fazer coisas que não quero fazer, como ir atrás de bandidos”, diz ela. “Posso, então, chamar esses profissionais, que são, de certa forma, treinados e especializados para impedir que as pessoas — crianças e idosos, homens e mulheres — sejam massacradas”. Uma avaliação que, convenhamos, faz mais sentido no Butão do que na Maré.
Karnal e a Monja não estão sozinhos. Ela mesma identifica seus aliados, “pensadores”, “professores dessa cultura de paz”, em Mario Sergio Cortella, Luiz Felipe Pondé e Clóvis de Barros Filho. Todos bem formados, articulados, inteligentes e, também, incansáveis na venda de indulgências. Afinal, para que investir em horas de estudo, quando se podem comprar minutos de sabedoria?

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