As pessoas pensam que uma guerra é um videogame, com um pouco
mais de ação. A guerra é estúpida, meus caros
Por: Augusto Nunes
Nunca tenho o costume de requentar textos velhos meus e quase nunca volto pra lê-los, mas este despertou minha atenção, depois que li que o Itaquerão pode deslizar como aquele monte de lama da barragem de Mariana. É de 2013, ainda antes da Copa. Eu já sabia.
– O que mais me incomodava era o cheiro. O cheiro da morte. A morte tem um cheiro muito característico, sabia? – dizia o Mariner, relembrando a cena. ─ Cheguei a acordar várias vezes, com a respiração ofegante, sempre com aquele cheiro me envolvendo as narinas.
As pessoas pensam que uma guerra é um videogame, com um pouco mais de ação. Se acostumam a ver corpos dilacerados e sangue jorrando, mas não fazem ideia do asco e da perdição que tudo aquilo representa, quando está acontecendo bem ao seu lado. A guerra é estúpida, meus caros. Você recebe uma informação, pega uma arma, caminha numa direção mais ou menos definida, procura um alvo e tenta acertar, antes que ele te acerte. É matar ou morrer. É sonhar cada minuto com a volta pra casa e sair daquele horror, sem se dar conta de que muitos ali já não tem nem para quem voltar, quanto mais uma casa para viver.
E os sons? Os sons da batalha são aterradores. Começam com uma miríade de vozes confusas, gritos lancinantes, correrias e sirenes ao longe, antes dos fortes estampidos. Os ouvidos vão ficando anestesiados com o barulho ensurdecedor. É como se saíssemos do corpo para fugir e nos víssemos num espelho. É a alma que fala com você. Que pede clemência. Que não se importa mais com o traçar dos tiros.
Entramos no estádio bem no meio da tarde. As estruturas não suportaram o peso da vigarice, da empulhação, da corrupção, da falta de decência no trato com a vida humana. Superfaturadas e subdimensionadas, ruíram com todo mundo dentro. Tiros eram ouvidos por todo lado. Dizem que começaram de uma milícia cubana ali infiltrada, mas nos disseram que só tinham mandado médicos para cá. Assim mesmo as balas eram de verdade e matavam de verdade também. A modelo contratada para abrilhantar o evento foi a primeira a levar um balaço na nuca. Eles adoram um lindo crânio esfacelado para contar vantagem para o seu séquito de adoradores de uma besta. E por falar na besta, ninguém viu os cicerones da festa. Parece que conseguiram sair de fininho, em meio aos escombros.
A tevê local bem que tentou fazer algumas imagens da tragédia, mas foi impedida por milicianos armados e homens de burca que gritavam alguma coisa como “podres poderes”, como se cacarejassem. Os corpos jaziam amontoados, na entrada do Soccer Hall. Sei lá se é assim que se chama, pois só entendo de football, com dois oos. Tentavam reanimar um jogador famoso, pelo que eu entendi. Era brasileiro. Falei no passado porque no passado ele ficou. Já era. Seu corpo inerte não vai encantar mais ninguém nesta terra desolada. Quando tudo começou, na longínqua Venezuela, ninguém acreditava que aquilo chegaria à maior cidade do hemisfério sul.
Ninguém acreditava que o golpe era pra valer. Diziam que “o bicho ia pegar” – ” the animal will pick up” – mas eu não entendia o significado da frase até chegar aqui e constatar que a guerrilha já se disseminava por toda a cidade. Eles adoram queimar ônibus por aqui. Usam sua carcaçona para tudo; barricadas, abrigo para passar a noite, elementos de contenção e até para transportar gente, de vez em quando. Que nem gado. Nunca tinha visto um caminhão vestido de ônibus em meu país. Talvez por isso tenham começado os protestos pelo preço das passagens, queimando o impostor do transporte urbano. Isso não é um ônibus, é um escárnio com a população deste pobre rincão saqueado. Agora eu entendo tanto ódio acumulado para com os seus governantes. Todos são tratados como lixo por aqui. Aliás pior que lixo, que ao menos às vezes é reciclado.
Do estádio não sobrou quase nada; nem o hino nacional, que eles cortaram no meio. Quando todos gritavam o restante do canto em que irromperam os tiroteios e o ranger da estrutura ruindo. E foi assim que fomos chamados para iniciar uma guerra no próprio quintal americano. É uma pena que uma geografia tão pródiga tenha sido tão brutalmente atacada pela sanha de uma horda. Nem calor, nem frio. Só a morte. Vai ser bom para vocês pensarem o que vão querer da vida, daqui pra frente. Assim como no Iraque, fizemos nossa parte.
Cabe a vocês, que nunca se meteram em guerras, entender o que significa ser sempre subjugado por um bando de boçais, manejando o pão e o circo que um dia acaba em tragédias como esta. Encontrei um mindinho presidencial. Vou procurar um vidro de maionese e tentar liberar o amuleto como espólio de guerra. Se colar, fico rico. Em Las Vegas eles compram até os cílios que dizem terem pertencido a Marilyn Monroe, porque não? Valeu cara. Uma dia a gente se tromba por aí. Desculpe qualquer coisa; é assim que vocês falam por aqui? “Sorry; I’m being a live”. Só vocês mesmo.
FOLHA DE SP - 03/11 O filme de Tate Taylor, "A Garota no Trem", é adaptado de um bom romance de Paula Hawkins (Record). É difícil comentar a história sem estragar o prazer dos futuros espectadores. Então apenas apresentarei meus pensamentos na saída do cinema.
1) Poucas coisas são tão chatas quanto o casamento com um parceiro ou uma parceira alcoolistas.
É chato subjetivamente, por razões narcisistas. Quem não bebe é levado a acreditar em uma das duas: a) o outro bebe porque a convivência comigo deve ser insuportável; b) não sei por que o outro bebe, mas, para ele/ela, conviver comigo não é uma razão suficiente para ele/ela ficar sóbrio/a.
É chato objetivamente. Imagine o sexo com alguém que pode adormecer no meio de uma transa. E imagine as catástrofes sociais que a bebedeira do outro pode produzir quando você se aventura a compartilhar a vida social com ele/a.
A própria relação é chata, porque o alcoolista é facilmente ciumento e paranoico. O homem, em particular, está convencido de que ele está lutando contra a adversidade do mundo, enquanto sua companheira (que não bebe) estaria aproveitando a vida (eventualmente com amantes). Com isso, o alcoolista pode se tornar estupidamente violento.
Alguns se imaginam resolver o problema bebendo junto com seu parceiro ou com sua parceira, mas as relações de casais alcoolistas são tempestuosas: a bebedeira do casal nunca consegue ser "coordenada".
Em suma, alcoolismo não condiz com casamento: se beber, não case.
2) Na adolescência, voltando para casa nos fins de tarde de inverno, eu olhava para as janelas acesas, onde aconteciam vidas parecidas com a minha, mas que eu imaginava melhores, cheias de afetos ternos e alegres. Eu permanecia no frio da rua de propósito, para idealizar melhor o aconchego das outras famílias, as vidas supostamente mais plenas que a minha –e, claro, os amores que, atrás daquelas janelas, deviam ser perfeitos, absolutos.
Tive sorte: comecei a imaginar que toda paz aparente escondia um mistério. À luz de lustres e abajures, os outros pareciam felizes, mas, de fato, quais horrores se escondiam na obscuridade dos closets? Conselho: pratique essa pergunta sem moderação.
Idealizar o amor de outros casais não alimenta a esperança, mas o desespero.
3) Geralmente, separações acontecem por boas razões, mas, na hora, a gente se esquece disso.
Ou seja, sabemos que o que tinha a perder já foi perdido –ou talvez nunca tenha existido. Mas lamentamos as separações como se, nelas, sempre estivéssemos perdendo "algo". Qualquer separação produz o fantasma de uma perda.
Talvez a gente se sinta humilhado por ter fracassado na realização de um conto de fadas ou de um sonho de nossos pais: o fato é que, frequentemente, a separação é vivida como um dano irreparável, embora ela seja para ambos uma libertação.
4) Hoje é frequente que as pessoas se casem ou se juntem numerosas vezes ao longo da vida. Um novo casamento é quase sempre visto como a solução dos problemas amorosos anteriores, ou como a compensação dos defeitos do casal anterior. Isso lisonjeia os novos amores: ele ou ela nos "salvam", segundo o caso, da "bruxa" ou do "ogro".
De fato, os casamentos que se sucedem são menos diferentes do que parece –a gente muda pouco, e nossos casais também mudam pouco. Em vez de negar essa realidade (decretando a absoluta novidade de nossa escolha mais recente), seria mais sábio fazer um bom uso da série de nossas uniões e desuniões.
Afinal, quem conhece melhor nosso novo amor é seu parceiro ou sua parceira anterior. E ex-parceiros/as nos conhecem melhor do que nosso novo amor. Portanto, que tal cada um entrevistar os "ex" do outro? Seria um bom jeito de antecipar (quem sabe resolver) problemas antigos que se repetirão, mais cedo ou mais tarde, no novo casamento.
Essa prática tornaria as separações mais civilizadas, porque seria perigoso deixar uma lembrança sinistra em companheiras ou companheiros anteriores.
Sem esperar esse costume ser instituído, note-se que o fato de ter mantido boas relações com seus ou suas "ex" deveria ser considerado um ponto a favor de qualquer "candidato" prospectado.
Na hora de empregar alguém, a gente pede referências aos empregadores anteriores. Por que não fazer o mesmo na hora de casar?
Esta nave nada formosa passeando no céu e acomodando cientistas que nem sabemos o que fazem por lá pode nos trazer novidades sobre o clima do planeta, de reações de temperaturas e nos desvendar um monte de dúvidas sobre tanta coisa que desconfiamos ...? Seu passeio pode ser útil para a humanidade? Bom, pelo menos, o sorriso de Kate Rubins demonstra que a nave tem charme para encantar seus ocupantes em meio ao caos de ferramentas, instrumentos, fios, aparelhos de precisão e outras peças que não identificamos... Mandamos um recado : ela pode continuar tranquila e sorridente; aqui embaixo ninguém está com inveja dela e de seus companheiros de voo
O celular de trabalho de Denice Santiago tocou em plena tarde de domingo em Salvador. Do outro lado da linha, uma mulher dizendo que o ex-marido, proibido pela Justiça de se aproximar dela, estava a caminho de sua casa.
"Nessas horas não posso simplesmente dizer que estou de folga. Tenho que resolver", diz. A necessidade de solução imediata se explica: na Bahia, 629 mulheres vítimas de violência doméstica estão diretamente sob os cuidados de Denice.
Fardada ou não, ela é a major Denice, de 45 anos, comandante da Ronda Maria da Penha (RMP), unidade da Polícia Militar baiana criada em março de 2015 para acompanhar mulheres sob medida protetiva judicial - brasileiras que enfrentam o machismo e a brutalidade de companheiros, pais, irmãos e vizinhos.
Com pouco mais de um ano e meio de funcionamento, essa operação vem chamando a atenção de pesquisadores e de outras corporações policiais pelos bons resultados - que parecem dever algo ao carisma e à obstinação de sua comandante.
"São famílias que estão em jogo. Como mulher, mãe e policial, não posso falhar. Se nosso sistema for violado, podemos perder uma vida", diz Denice.
No foco desse sistema de proteção estão mulheres como Ana*. Ela passou 18 de seus 45 anos com o pai de suas duas filhas adolescentes. Durante o casamento, afirma, suportou o "sentimento de posse" e a "loucura" do marido.
"Eu não podia olhar para o lado. Ele puxava meu braço, batia e xingava. Era uma tortura", conta Ana. "Quando ele se aposentou, passava o dia em frente ao meu trabalho, me vigiando. Parecia que ia morrer sufocada."
Acompanhada pela RMP há um ano, ela diz que reencontrou o sossego. "Eu não vivia em paz. Isso é um renascimento."
Modo de operação
A Ronda Maria da Penha na Bahia tem bases em Salvador e nas cidades de Paulo Afonso, Serrinha, Juazeiro e Feira de Santana.
Diariamente, incluindo finais de semana e feriados, 71 policiais se revezam em visitas de surpresa a mulheres que recorreram à Justiça para manter agressores à distância.
A presença policial costuma inibir a aproximação desses homens, mas não em todos os casos. Desde a criação, a ronda já prendeu 59 agressores que ultrapassaram os limites fixados pela Justiça, alguns flagrados em plena visita dos policiais.
De sua sala na sede da ronda, em Periperi, subúrbio da capital baiana, a comandante repassa planilhas, lê relatórios e monitora o movimento das equipes.
Mesmo não participando mais das visitas residenciais, ela conhece a história de cada mulher assistida. Recebe muitas para conversas que podem se estender por horas. "Essas mulheres precisam confiar na gente. Temos que construir uma relação para que elas nos contem suas verdades."
Números da violência
De olho nas planilhas, a major sabe que precisa de mais estrutura: 71 policiais parece pouco diante do quadro da violência contra a mulher no Estado.
Somente no primeiro semestre de 2016, a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) recebeu 26.674 chamadas na Bahia, com notificações que vão de ofensas verbais a graves agressões físicas.
Nos registros, contabilizados pela Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo federal, a Bahia é o quarto Estado em números absolutos de chamadas, atrás de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Salvador é a quinta capital, com 5.927 chamadas de janeiro a junho.
De acordo com o Tribunal de Justiça da Bahia, tramitam no Estado 26.527 processos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Ao final de cada um deles, será determinada ou não uma medida protetiva, que, entre outras ações, podem proibir o homem de se aproximar da mulher ou afastá-lo do lar.
Quando a medida é estabelecida, a própria Justiça indica casos urgentes para acompanhamento da RMP.
"Quero qualquer coisa que a Secretaria de Segurança oferecer. Eu vou atrás, encho o saco, mostro os números. Quanto mais mulheres atendermos, melhor", diz major Denice.
Repercussão do trabalho
A iniciativa na Bahia não é a primeira nem a única no Brasil - a Brigada Militar gaúcha, por exemplo, organiza patrulhas semelhantes desde 2012 -, mas repercute entre acadêmicos e instituições policiais.
Em setembro, Denice foi palestrante na abertura, em Brasília, do encontro anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), ONG que reúne pesquisadores e profissionais do setor.
O tema do encontro foi violência contra a mulher, e a major dividiu a apresentação com Maria da Penha Fernandes, farmacêutica conhecida por batalhar pela condenação do ex-marido agressor e dar nome à lei de 2006 que aumentou o rigor das punições em casos deste tipo.
"Mesmo com limitações estruturais, a Ronda Maria da Penha da Bahia é um exemplo hoje para outras iniciativas do país. Não conheço outro trabalho policial que esteja tão próximo das pessoas e já com resultados práticos tão expressivos", afirma a socióloga Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP.
Bueno diz que há muita descontinuidade em políticas de segurança no Brasil, e por isso ações na área ainda são muito dependentes de uma liderança pessoal forte para sucesso e continuidade.
"Neste caso, é preciso valorizar que é uma major, uma mulher, à frente de uma ação que vem dando certo."
Trajetória
Filha de família pobre, Denice Santiago estudou toda a vida em escola pública. Em 1990, após terminar o ensino médio, foi incentivada pelo pai ("Para garantir emprego e salário", conta) a tentar uma vaga na primeira turma feminina de praças da PM da Bahia. Entrou como sargento.
Dois anos depois, ingressou na primeira turma aberta para oficiais mulheres. Hoje é uma das duas únicas oficiais a ocupar posto de comando na PM baiana - mulheres são 13% do efetivo da corporação.
A atuação com foco na mulher acompanha o caminho de Denice na Polícia Militar. Em 2006, quando integrava o setor de tecnologia da corporação, ela fundou o Centro Maria Felipa, até hoje o único núcleo direcionado para mulheres em PMs do país.
Batizado com o nome da heroína das batalhas pela independência do Brasil na Bahia, o centro ajudou a criar a norma que determina o deslocamento imediato de policiais gestantes para o trabalho administrativo. Antes, elas ficavam nas ruas até as vésperas do parto.
O CMF também promove cursos e seminários para policiais e oferece auxílio a mulheres da PM vítimas de violência doméstica. O centro motivou até um apelido para a major: até hoje é chamada de Felipa por muitos colegas de farda.
Teoria e prática
Para atuar sob o comando da major Denice na Ronda Maria da Penha, policiais se alistam voluntariamente. Após seleção pelo perfil, passam por uma formação específica, um dos diferenciais do programa na Bahia.
No curso, elaborado pela Secretaria de Políticas para Mulheres do Estado, discutem temas como gênero e patriarcado. E todos entram em contato com os outros órgãos da rede de atendimento: Polícia Civil, Tribunal de Justiça, Ministério Público, Defensoria Pública.
Após a inserção na operação, policiais, homens e mulheres, participam de encontros mensais com atividades lúdicas e de autocuidado. O objetivo é abrir espaço para que possam se expressar artisticamente e aliviar a carga emocional das histórias de crises familiares que acompanham.
Graduada em Psicologia, a própria comandante passa por acompanhamento psicoterapêutico.
"Preciso recorrer ao analista para não levar tudo isso pra casa, mas é impossível", comenta, lembrando o dia do telefonema no domingo de folga. (Naquela ocasião, a major acionou policiais de plantão, mas o agressor desistiu de aparecer quando a mulher disse que já havia ligado para a ronda.)
Outro ponto forte da iniciativa é a interlocução entre os órgãos da rede de atendimento. Representantes do comitê gestor da RMP conversam via WhatsApp para acelerar procedimentos que envolvam a proteção de mulheres assistidas.
Por iniciativa própria, Denice também encabeça uma ação chamada "Mulheres de Coragem" - recebe mulheres assistidas na sede da unidade para palestras, oficinas de arte e teatro, em ações de socialização e empoderamento.
Para policiais homens e o público masculino externo, organiza as palestras do "Papo de Homem". "A ideia é fazer com que os homens se percebam no ciclo da violência, porque este (agressão contra a mulher) é um crime cultural", afirma.
A caminho de uma visita da ronda, o soldado Ivan da Silva reconhece que buscou uma vaga na unidade especial apenas para trabalhar no horário administrativo e ter tempo para estudar à noite. "Hoje minha cabeça é outra. Fui aprendendo com as histórias. A realidade das mulheres é muito mais difícil do que se imagina."
Ao seu lado, outro soldado, Arivaldo Souza, afirmou que entendeu que a violência não se manifesta somente em agressões físicas. "Comecei a ver o peso da violência psicológica. Uma mulher me disse uma vez que preferia levar um tapa a ouvir as coisas que o ex-marido dizia."
Minutos depois, os dois PMs, ao lado da soldado Jocinanda Oliveira, chegam à casa de Lúcia*, de 28 anos. Após três anos em um relacionamento violento, ela se afastou do ex-namorado depois de ser agredida com o filho recém-nascido do casal no colo.
"Ele chegou a me ameaçar de morte. Sempre tive muito medo, mas com as visitas dos policiais a gente sente que pode contar com alguém. Eu converso com amigos e falo com orgulho que a ronda veio aqui em casa", afirma.
Acompanhada pela unidade há cerca de um ano, ela costumava sair de casa apenas para ir ao trabalho.
"Eu fui à praia outro dia. Nem acredito. E só fui porque me senti confiante. Foi ela quem me incentivou", conta Lúcia, lançando um olhar de cumplicidade para a soldado Oliveira. Ela segura o filho e chora.
Cotidiano
No comando da operação, major Denice se diz orgulhosa por histórias como a de Lúcia, mas afirma que não pode baixar a guarda para romper o ciclo do que chama de "violência cultural".
No papel de mãe de um adolescente de 15 anos, procura dialogar com o filho sobre temas que encara no trabalho, apostando que ele levará as informações adiante.
"Eu insisto mesmo. Às vezes ele brinca quando me pede sugestão de tema de redação, dizendo que violência contra a mulher não vale. Mas ele é bem consciente e eu sei que conversa muito com os amigos."
Ao falar da vida familiar, Denice deixa escapar que, até fevereiro de 2015, "sentia que era eterna". Foi quando, em um exame de rotina, descobriu um tumor no estômago - após uma cirurgia que extraiu todo o órgão, atravessou meses de tratamento quimioterápico.
Agora, adapta-se dia a dia. Come menos, evita alimentos pesados, prioriza a comida de casa e, para fugir de eventuais toxinas, cortou frutos do mar. "Só não abro mão de pão. Adoro sanduíche, mas estou comendo metade da metade", diz a major de 1,73 metro, entre risos.
Para o bem da digestão, também precisa mastigar tudo lentamente. Diz não ver problema, pois assim consegue mais tempo para pensar na vida e bolar "mais umas maluquices" para a ação da ronda - uma dessas ideias é fazer uma horta em frente à sede da unidade e convidar as mulheres para cuidar do espaço.
"Com o câncer, uma amiga disse que não deveria perguntar por que as coisas acontecem e sim para quê. Depois que superei essa doença, me fortaleci para tocar o trabalho, ajudar essas mulheres a serem felizes. Minha mãe sempre disse que nossa missão é ser feliz."
Para o futuro, a major abre portas no ambiente acadêmico. Hoje cursa mestrado na Universidade Federal da Bahia em que estuda a relação entre a questão racial e o enquadramento de suspeitos por policiais militares.
E vislumbra a felicidade em algum cantinho perto de Salvador, onde possa fazer uma horta própria e viver tranquila ao lado da família, assistindo a seus filmes preferidos: os épicos e os da franquia Marvel, com seus heróis onipotentes e falíveis.
Criada em família com raízes no candomblé (religião de matriz africana), Denice Santiago se apresenta como uma mulher de Iansã. É a deusa dos raios e trovões na mitologia iorubá, guerreira que batalha pelo seu povo e carrega a força do feminino.
Iansã pode ter mil facetas, mas a fragilidade nunca será uma delas.
*Para preservar a identidade das mulheres vítimas de violência, os nomes foram trocados.