A primeira vez que eu vi Rimbaud, senti que havia uma outra vida para além das paredes cinzentas de meu quarto. Eu com 17 anos de idade, sem amor nem sexo, não li Rimbaud apenas; eu o vi, diante de mim, "como um gracioso filho de Pan - em torno de sua fronte coroada de flores, seus olhos, duas órbitas preciosas, giravam. Seu peito parecia uma cítara e acordes ressoavam em seus braços louros e seu coração batia em seu ventre onde dormia um sexo duplo". Nesse dia, vi que ele morava em outra vida, "la vraie vie" ( a verdadeira vida), como ele a chamava.
Não havia internet naquele tempo e a literatura era tudo; a poesia era a promessa de outra realidade, impalpável. Li depois, em Artaud, uma profunda definição de arte: "A arte não é a imitação da vida; a vida é que é a imitação de alguma coisa transcendental com que a arte nos põe em contato". Se é que arte tem definição, entendi que aquele era o campo de Rimbaud quando li seus poemas com o coração disparado. "Eu a reencontrei. O quê? A eternidade. É o mar alado partindo com o sol." Minha vida mudou. Rimbaud abria a consciência como uma droga. Anos mais tarde, tomei LSD e vi que a experiência de Rimbaud era lisérgica. Jim Morrison, Kurt Cobain eram Rimbaud.
Eu vivia em vertigem. Não sabia o que queria, mas não queria a vida de meus pais, escurecida por uma infelicidade que não percebiam. Minhas conversas com meu amigo "Broca" beiravam a loucura. Delirávamos a beira-mar, nos paredões da Urca, nas noite daquele tempo. Onde andará Broca, o gênio que gritava para as pedras, onde fervilhavam caranguejos e guaiamuns: "Oisive jeunesse à tout asservie, par delicatesse j'ai perdu ma vie!" E eu contracantava: "Temos de ser absolutamente modernos!". E os guaiamuns agitavam as antenas espantados.
"Temos de conseguir o desregramento de todos os sentidos", nos ensinava Rimbaud, com sua cara de linda bicha louca, no quadro de Fantin-Latour. Partimos então para os prostíbulos - nossa ideia de desregrar sentidos. Não havia drogas ainda, nem uma reles maconha ao alcance de burguesinhos como nós. Enchíamos a cara de Cuba Libre (Coca-cola com rum) e íamos para os bordéis, que pareciam salas de visitas de classe media, com "meninas" sentadas em volta, discretas, num silencio de velório, e indo conosco para a cama emburradas como para um sacrifício - homenagem à virtude perdida. As prostitutas tinham uma aura de transgressão, de loucura de que nos orgulhávamos, os dois corajosos lutadores contra a caretice. Naquele tempo a verdade era inatingível.
Hoje, a "verdade" se proclama visível. O Google tem todos os sentimentos catalogados, mas falta-nos sentir o gosto de alguma coisa vaga que nunca se atinge. Qual seria a emoção de um "gamer" ao ler: "Enquanto os fundos públicos são desperdiçados em caridade, um sino de fogo róseo soa entre as nuvens"? O jovem teria um tédio infinito. Ninguém quer atingir mais nada. Está tudo aí, classificado.
A realidade era nosso delírio. Olhávamos com desprezo os comuns ou então elevávamos os mais vulgares vagabundos à condição de seres tocados por uma aura imerecida. Até que um dia o Broca se apaixonou. Se enamorou de uma colegial sóbria e virgem, claro. Todas eram virgens. Começou a rarear seu amor ao "desregramento"; ia de mãos dadas ao cinema e já olhava com uma ponta de desdém a minha "maldição". Eu o desprezei naquele namoro, muito mais para Lamartine que para nosso deus maldito. Mas aquele amor me tocou. "Minha vida era um festim aberto a todos os corações", murmurava.
Um dia, chegou a minha vez. Não sei como fui capturado pelas duas Terezinhas. Uma era magrela e feiosa e a outra era gorda. Sei que moravam juntas e tinham amantes, mas não eram prostitutas não. Preferi a Terezinha gorda, rosto bonito, muito gorda, mas dividida por uma cintura finíssima e formas sólidas. Deitado em seu corpo nu, parecia estar em um colchão macio, farto, onde me aconchegava como num grande berço protetor. Eu sentia que ela estava encantada com aquele garoto extasiado. Ela tinha algo de vaca e de mãe.
Só pensava nela. Saía do colégio de uniforme, corria para seu apartamento conjugado no Lido e me jogava em seus braços, com um fervor que aos poucos foi entediando Terezinha gorda - percebi eu, algumas vezes, durante meus delírios poéticos. "Por vezes vejo no céu praias infinitas cobertas por brancas nações em júbilo", frases do "além", segundo ela, que era espírita, médium e também funcionária publica que - dizia triste - tinha de contar com a ajuda de um senhor que era seu chefe de seção. Mesmo assim, eu via em Terezinha uma Vênus primitiva, com ancas fecundas, os seios escapando do sutiã negro, com uma luz de grandeza inatingível e misteriosa. No entanto, ela estava diferente, eu via, e já forjava uma admiração por meu "gênio", traída por um desinteresse crescente.
Até que um dia ela disse que não dava mais para eu vir ali, que seu protetor estava voltando de viagem e que eu tinha de arranjar uma moça da minha idade. Ficou com o rosto impassível mesmo quando comecei a chorar, sentindo-me um poeta abandonado, pois "quando se tem fome e sede, alguém nos expulsa!". Foi quando a outra Terezinha, a feia, gritou da janela: "Ih, o Peçanha está chegando" - e saiu correndo porta afora. A gorda amada me empurrou para o hall, coberto de lágrimas, no momento exato em que um sujeito forte e careca cruzou por mim na escada e meteu o pé na porta, dando para ouvir seu berro de "quem é esse merdinha aí?". Eu descia correndo, mas voltei ao ouvir uns gritos lá dentro, olhei pelo olho mágico e vi, como numa luneta convexa, o sujeito arrancando a roupa de minha gorda metafísica e cobrindo-a de bofetadas, que ela recebia com as faces coradas de alegria e um fio de sangue escorrendo-lhe da boca, enquanto lambia o peito cabeludo do sujeito, também banhada em lágrimas. Ali, no olho mágico eu vi então a "la vraie vie" (a verdadeira vida) que Rimbaud deve ter visto quando Verlaine tentou matá-lo com dois tiros. Quando saí, a rua estava diferente.