O VALOR DO PASSADO
De sábado para domingo, no Skorpius, um bar do hotel Antares, quatro amigos tentaram retomar uma conversa interrompida há 40 anos na rua Formosa em torno de uma mesa de jantar, onde se jogava ‘futebol de botões’. Para reforçar a memória, um ‘time inteiro’ saiu de uma caixa de sabonete Phebo, uma caixa redonda de madeira e, com o carinho de quase meio século foi juntar-se aos copos de cerveja e aos pratos de iscas.
Ainda envolto em talco, junto a papeis de seda, mas sem o brilho das parafinas, eles começaram a escorregar pressionados por uma palheta, que nada mais é do que o anteparo de uma chupeta de criança, atrás de um grão de milho, a bola oficial.
Os craques que antes serviram a capas, paletós ou roupas femininas eram tratados com precisão, com delicadeza e até com arte. Depois de preparados, raspados com pedaços de lâmpadas nas suas bordas, lixados no seu fundo, escovados com flanela no seu topo, eles ficavam com o aspecto de ‘jogador de futebol’. Conforme o tamanho, a altura eles ocupariam uma posição no ‘gramado’. Os mais leves tinham a incumbência do ataque. Os mais pesados e mais altos eram escalados na defesa. Os atacantes, mais habilidosos, tinham que vencer o goleiro adversário - a caixa de fósforos com chumbo dentro – que guardava uma meta em que sobrava um centímetro de cada lado e no alto. Apesar da dificuldade, o aproveitamento era sempre em torno de 70% das tentativas. Com jogos lá e cá, em residências diferentes, as oportunidades eram equilibradas.
No final do ano, como eram donos de times, os amigos tornavam-se ‘cartolas’ e saiam trocando Geninho por Pedro Amorim... Passados alguns dias os botões ganhavam outros nomes e se transformavam em Orlando ou Pirilo.
Uma caixa redonda de madeira reacendeu emoções contidas e arremeteu como um pavio de pólvora os sentimentos de pessoas com cabelos brancos e com a velocidade de pensamento percorreu quatro décadas. A partir daí fez com que cada um vestisse um uniforme que se compunha de uma calça com dólmã cinza...
Na segunda-feira, à tarde, em Udine no norte da Itália, uma torcida entre saudosa e angustiada prestava uma homenagem a uma carreira brilhante de um jogador de futebol, Zico. Um jogador acima das paixões futebolísticas porque sua arte deixou de pertencer aos seus torcedores flamenguistas para ser internacionalizada pelo seu talento, pela sua criatividade.
No pequeno espaço de tempo em que Zico deixou de jogar naquela cidade italiana as marcas de saudade podiam ser vistas nas faixas que os torcedores registravam sua admiração – ‘una magica notte per um único amore, Zico nel cuore’- e também pelas várias ocasiões em que o homenageado tratava a bola com arte dos mestres e a humildade dos puros. A atenção que os italianos dedicavam ao seu ídolo era um presente a uma obra em que os melhores quadros ou lances não podem ser guardados porque são solos sem partituras, óleos sem tela, versos sem palavras, esculturas esculpidas ao vento, frases sem verbo, como um passe de mágica, quase uma ilusão...
Ainda que os meios de comunicação consigam absorver boa parte dessas obras desses nobres do esporte muita coisa boa se perde. Sobra para nós a certeza de que esses expoentes são os verdadeiros agitadores desta difícil arte de jogar futebol e, é exatamente por meio destes lideres carismáticos, como Zico, que o futebol perpetua sua posição de atividade esportiva mais popular em todo planeta. Grazzia Zico...
Na quarta-feira, dia 29 de março, no Calçadão, um documento histórico, o Pelourinho, recebia uma desrespeitosa e perversa homenagem. Era coberto com um manto negro com a intenção de chamar a atenção, não sobre o monumento e sim para o artista que concebeu o gesto. Como se não bastasse o Pelourinho recebia uma ameaça: seria retirado dali para o Cemitério...
Uma idéia como essa, além de cruel, e exatamente igual a uma demolição. - lição do demônio – e fica muito próxima do que se fez com o Trianon...
Fifica Nunes Campos
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