O futebol brasileiro no banco dos réus
Proprietária do nosso futebol, a CBF enfrenta as consequências de ter usado uma paixão nacional para enriquecimento ilícito
O cronista Nelson Rodrigues, há mais de 50 anos, já constatou: “o pior cego é o que só vê a bola”. Numa corte de Nova Iorque, nesta semana, é um senhor frágil, de cabelo e tez branca que se depara diante da juíza federal Pamela Chen. O julgamento contra José Maria Marin, entretanto, não é apenas contra um dirigente que comandou a CBF. Trata-se, na realidade, de um processo sobre o próprio futebol nacional, sobre seus cúmplices e suas entranhas do poder. Um processo contra aqueles que promoveram uma cegueira quase generalizada.
Conforme a data do julgamento se aproximava, não foram poucos os dirigentes da Fifa e da CBF que me admitiam que estavam preocupados sobre o que poderia surgir do processo. Hoje, depois de pouco mais de dez dias de audiências, tudo o que essas entidades temiam se transformou em realidade. Acusados e testemunhas passaram a usar a corte como um palco privilegiado para revelar um lado obscuro do esporte. O futebol como ele é.
Para se defender das acusações de corrupção, os advogados de Marin usaram um fato que qualquer um envolvido na CBF sempre via: ele jamais a governou sozinho. Seu braço direito, vice-presidente e homem que o acompanhava a todas as reuniões era Marco Polo Del Nero, o atual comandante do futebol brasileiro desde 2015. Para a defesa de Marin, quem “tomava as decisões” era o seu vice.
Ainda que seja uma estratégia dos advogados para reduzir a responsabilidade de seu cliente, a realidade é que a tática surpreendeu a muitos dentro da CBF e Del Nero foi jogado para o centro do debate.
Nos dias que se seguiram, coube ao argentino Alejandro Burzaco, ex-executivo que comprava direitos de TV de torneios sul-americanos, admitir que a corrupção era a regra do jogo. Na qualidade de testemunha, seu relato confirmou os pagamentos a Marin. Mas também indicou que o próprio Del Nero o procurou em 2014 para negociar um aumento da propina. O entendimento com o futuro chefe do futebol brasileiro ainda vinha com um pedido: adiar o pagamento do suborno para 2015, quando Marin não seria mais presidente da CBF. Assim, Del Nero não teria mais de dividir a propina com seu “amigo”.
As audiências ainda jogaram ao centro da arena Ricardo Teixeira, ex-presidente da CBF entre 1989 e 2012. Ele teria recebido, desde 2006, US$ 600 mil por ano em propinas para ceder contratos de transmissão da Copa Libertadores e da Copa Sulamericana.
Não escaparam nem mesmo grandes grupos de imprensa do Brasil e América Latina, citados pela única testemunha ouvida até agora como parte de um esquema de corrupção. No caso da TV Globo, ela foi mencionada como tendo destinado supostas propinas para ficar com o direito de transmissão das Copas de 2026 e 2030, algo que a empresa nega de forma veemente.
O processo também atinge em cheio as pretensões do Catar de sobreviver como sede da Copa até 2022. O ex-dirigente argentino, Julio Grondona, morto em 2014, foi apontado nesta semana como receptor de US$ 1 milhão em troca de seu voto aos árabes para que pudessem sediar o Mundial. Ele era o presidente do Comitê de Finanças da Fifa e, em outras palavras, era o dono da chave do cofre da entidade.
Ao relatar o caso, Burzaco revelou como Grondona o contou bastidores do dia da votação. Nas primeiras rodadas, o então presidente da Conmebol, Nicolas Leoz, teria votado pelo Japão e Coreia do Sul. Num dos intervalos, Grondona e Teixeira chegaram até o paraguaio e o “chacoalharam”. “O que você está fazendo?”. Quando o processo eleitoral foi retomado, Leoz mudou de comportamento e votou pelo Catar.
O tsunami das declarações chegou ainda até a Argentina. Na noite de terça-feira, Jorge Alejandro Delhon, um dos executivos denunciados, teria se matado. As audiências ainda tiveram cenas de dramalhões latino-americanos, com Burzaco chorando diante do que poderia ser um ato de intimidação de um dos acusados, o ex-presidente da Federação Peruana de Futebol, Manuel Burga. O peruano o teria feito um sinal de cortar o pescoço, em plena audiência.
Horas depois, a testemunha não conseguiria segurar as lágrimas quando lembrou que fora avisada de que a polícia argentina o mataria se retornasse ao país.
Entre supostas ameaças, choros, mortes, relatos extraordinários e contas milionárias, não deixa de chamar a atenção o fato de que o processo está apenas em sua segunda semana. Por mais um mês, como num cenário de um jogo de Copa descrito pelo cronista, o mundo da cartolagem e seus cúmplices viverão “uma suspensão temporária da vida e da morte”.
Todos os citados, por enquanto, negam qualquer tipo de responsabilidade. Mas o que o processo começa a revelar é que, de fato, uma paixão nacional foi tomada por um grupo com um único objetivo: o enriquecimento próprio. De forma infesta, sequestraram uma das poucas coisas que é legítimo em um torcedor: sua emoção. A cada partida assistida em campo ou na televisão, em cada camisa comprada, em cada item adquirido, o torcedor aparentemente não financiou o futebol nacional. Mas seus donos, em contas secretas em Andorra, Suíça e paraísos fiscais.
Desde criança, foi vendida a história a todos nós de que aquele time de amarelo nos representa. Quando ganha, é o presidente da República quem os recebe, como heróis nacionais numa conquista “do país”. Quando é humilhado em campo, é uma nação que flerta com a depressão.
Em Nova Iorque, enquanto a cegueira começa a se dissipar, estamos vendo que esse futebol “nacional” tem dono. E não é o torcedor.
Jamil Chade é jornalista, autor do livro "Política, Propina e Futebol" (Cia das Letras, 2015).
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