Os materialistas sempre foram ignorantes nas matérias do espírito
O corpo dói, a cabeça idem, o termômetro não mente: bom dia, gripe! Desisto dos meus compromissos e viajo para os lençóis, gemendo como um condenado.
Depois, com verdadeiro esforço homérico, cancelo um almoço, uma reunião de trabalho e negocio um novo prazo para entregar um texto. Oficialmente, estou fora do circuito. Estarei nos três próximos dias.
É então que o milagre acontece: pela primeira vez em muitos anos, o celular não toca mais. Os dias voltam a ter 24 horas. Há silêncio ao redor.
E, com o silêncio, vem o pensamento: ali deitado, sou capaz de pensar em cinco ou seis artigos e numa boa ideia para um ensaio. Sem falar da leitura: com o coquetel farmacológico perfeito, é possível virar as páginas de um livro como elas merecem ser viradas. Devagar. Quem diria que uma gripe podia ser uma ilha de sanidade?
Por pouco tempo, informa o "The Wall Street Journal" em artigo sobre os últimos avanços contra a doença. Hoje, quem sucumbe ao vírus toma Tamiflu: duas vezes por dia, durante cinco dias. Mas, a curto prazo, será possível despachar o assunto em um único dia. A droga, inventada no Japão, dá pelo nome de Shionogi.
Longe de mim condenar os progressos da humanidade: tratamento dentário sem anestesia é um sonho que eu não tenho. (Para os nostálgicos, sugiro o filme "Maratona da Morte", de John Schlesinger.)
Além disso, é preciso lembrar que a gripe continua a matar em abundância ---só nos Estados Unidos, e desde meados de dezembro, são mais de cem mortes por semana.
Mas também é preciso lembrar que, nos casos benignos (a esmagadora maioria), a droga japonesa promete roubar três dias de pura ociosidade. De que vale ter uma gripe quando a curamos em 24 horas?
Eu sei, eu sei: há sempre a possibilidade de não tomar a droga, mantendo a integridade da experiência horizontal. Mas, no processo, perde-se o mais importante: a desculpa. Como justificar lá no trabalho que estaremos ausentes por gripe durante três dias, ou quatro, ou até cinco (o meu objetivo)?
Aliás, a gripe não é a única espécie em vias de extinção. O próprio sono pode ser o próximo alvo. No fabuloso site "Aeon", a escritora Jessa Gamble escreve um dos textos mais arrepiantes da minha enfermidade. Pergunta: se a pílula feminina separou o sexo da reprodução, por que não abraçar um tratamento médico que diminui ou até suprime a necessidade de dormir, separando os seres humanos do reino animal?
Ou, por outras palavras, não será um lamentável desperdício de tempo ter 1/3 das nossas vidas em modo inconsciente? Quem, em juízo perfeito, não trocaria esse período perdido por mais 50 anos de "vida útil"?
Houve experiências: estimulantes vários usados em contexto militar. Mas são expedientes limitados, que podem substituir a sonolência pela psicose. Nos Estados Unidos, o Exército procura um meio-termo entre nenhum sono e o sono normal: por exemplo, uma máscara que substitui as oito horas clássicas por metade disso, ou menos de metade. Duas horas de sono absolutamente reparador, eis o Santo Graal.
Ou o Santo Mal. Leio o artigo e pergunto: como é possível reduzir o ato de dormir a uma mera necessidade biológica? Onde está o prazer do abandono e do esquecimento? "A alma é um vício", dizia a grande escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís. Mas os materialistas sempre foram ignorantes nas matérias do espírito.
E como impedir que uma máscara dessas —lentamente, insidiosamente— não seria imposta sobre uma sociedade de escravos? Escravos produtivos, cada vez mais produtivos, mas escravos na mesma? Imagino a competição: o trabalhador A perdeu o emprego porque o trabalhador B estava disposto a só dormir 2 horas.
Tremendo com a doença —minha e do mundo— apago a luz do quarto e escuto a minha consciência: "Aproveita, rapaz, enquanto podes".
Adormeço com um sorriso de alívio.
João Pereira Coutinho
Escritor português, é doutor em ciência política. Escreve às terças e às sextas.