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segunda-feira, 2 de julho de 2012

'Marcha da insensatez', por J R Guzzo // blog Augusto Nunes


01/07/2012
 às 10:35 \ Feira Livre

‘Marcha da insensatez’, por J.R. Guzzo

PUBLICADO NA EDIÇÃO DE VEJA DESTA SEMANA
J.R. GUZZO
O advogado paulista Márcio Thomaz Bastos encontra-se, aos 76 anos de idade, numa posição que qualquer profissional sonharia ocupar. Ao longo de 54 anos de carreira, tornou-se, talvez, o criminalista de maior prestígio em todo o Brasil, foi ministro da Justiça no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus honorários situam-se hoje entre os mais altos do mercado — está cobrando 15 milhões de reais, por exemplo, do empresário de jogos de azar Carlinhos Cachoeira, o mais notório de seus últimos clientes. Num país que tem mais de 800 000 advogados em atividade, chegou ao topo do topo entre seus pares. É tratado com grande respeito nos meios jurídicos, consultado regularmente pelos políticos mais graúdos de Brasília e procurado por todo tipo de milionário com contas a acertar perante o Código Penal. Bastos é provavelmente o advogado brasileiro com maior acesso aos meios de comunicação. Aparece em capas de revista. Publica artigos nos principais veículos do país. Aparece na televisão, fala no rádio e dá entrevistas. Trata-se, em suma, do retrato acabado do homem influente. É especialmente perturbador, por isso tudo, que diga em voz alta as coisas que vem dizendo ultimamente. A mais extraordinária delas é que a imprensa “tomou partido” contra os réus do mensalão, a ser julgado em breve no Supremo Tribunal Federal, publica um noticiário “opressivo” sobre eles e, com isso, desrespeita o seu direito de receber justiça.
Se fosse apenas mais uma na produção em série de boçalidades que os políticos a serviço do governo não param de despejar sobre o país, tudo bem; o PT e seus aliados são assim mesmo. Mas temos, nesse caso, um problema sério: Márcio Thomaz Bastos não é um boçal. Muito ao contrário, construiu uma reputação de pessoa razoável, serena e avessa a jogar combustível em fogueiras; é visto como um adversário de confrontos incertos e cético quanto a soluções tomadas na base do grito. É aí, justamente, que se pode perceber com clareza toda a malignidade daquilo que vem fazendo, ao emprestar um disfarce de seriedade e bom-senso a ações que se alimentam do pensamento totalitário e levam à perversão da justiça. Por trás do que ele pretende vender como um esforço generoso em favor do direito de defesa, o que realmente existe é o desejo oculto de agredir a liberdade de expressão e manter intacta a impunidade que há anos transformou numa piada o sistema judiciário do Brasil. Age, nesses sermões contra a imprensa e pró-mensalão, como um sósia de Lula ou de um brucutu qualquer do PT; mas é o doutor Márcio Thomaz Bastos quem está falando — e se quem está falando é um crânio como o doutor Márcio, homem de sabedoria jurídica comparável à do rei Salomão, muita gente boa se sente obrigada a ouvir com o máximo de respeito o que ele diz.
O advogado Bastos sustenta, em público, que gosta da liberdade de imprensa. Pode ser — mas do que ele certamente não gosta, em particular, é das suas consequências. Uma delas, que o incomoda muito neste momento, é que jornais e revistas, emissoras de rádio e de televisão falam demais, segundo ele, do mensalão, e dizem coisas pesadas a respeito de diversos réus do processo. Mas a lei não estabelece quanto espaço ou tempo os meios de comunicação podem dedicar a esse ou aquele assunto, nem os obriga a ser imparciais, justos ou equilibrados; diz, apenas, que devem ser livres. O que o criminalista número 1 do Brasil sugere que se faça? Não pode, é claro, propor um tabelamento de centímetros ou minutos a ser obedecido pelos veículos no seu noticiá­rio sobre casos em andamento nos tribunais — nem a formação de um conselho de justos que só autorizaria a publicação de material que considerasse neutro em relação aos réus. Os órgãos de imprensa podem, com certeza, ter efeito sobre as opiniões do público, mas também aqui não há como satisfazer as objeções levantadas pelo advogado Bastos. O público não julga nada; este é um trabalho exclusivo dos juízes, e os juízes dão as suas sentenças com base naquilo que leem nos autos, e não no que leem em jornais. Será que o ex-ministro da Justiça gostaria, para cercar a coisa pelos quatro lados, que a imprensa parasse de publicar qualquer comentário sobre o mensalão um ano antes do julgamento, por exemplo? Dois anos, talvez? Não é uma opção prática — mesmo porque jamais se soube quando o caso iria ser julgado.
MINISTRO REPROVADO

A verdade é que a pregação de Márcio Thomaz Bastos ignora os fatos, ofende a lógica e deseduca o público. De onde ele foi tirar a ideia de que os réus do mensalão estão tendo seus direitos negados por causa da imprensa? O julgamento vai se realizar sete anos após os fatos de que eles são acusados — achar que alguém possa estar sendo prejudicado depois de todo esse tempo para organizar sua defesa é simplesmente incompreensível. Os réus gastaram milhões de reais contratando as bancas de advocacia mais festejadas do Brasil. Dos onze ministros do STF que vão julgá-los, seis foram indicados por Lula, seu maior aliado, e outros dois pela presidente Dilma Rousseff. Um deles, José Antonio Toffoli, foi praticamente um funcionário do PT entre 1995 e 2009, quando ganhou sua cadeira na corte de Justiça mais alta do país, aos 41 anos de idade e sem ter nenhum mérito conhecido para tanto; foi reprovado duas vezes ao prestar concurso para juiz, e esteve metido, na condição de réu, em dois processos no Amapá, por recebimento ilícito de dinheiro público. Sua entrada no STF, é verdade, foi aprovada pela Comissão de Justiça do Senado; mas os senadores aprovariam do mesmo jeito se Lula tivesse indicado para o cargo um tamanduá-bandeira. O próprio ex-presidente, enfim, vem interferindo diretamente em favor dos réus — como acaba de acusar o ministro Gilmar Mendes, com quem teve uma conversa em particular muito próxima da pura e simples ilegalidade. Mas o advogado Bastos, apesar disso tudo, acha que os acusados não estão tendo direito a se defender de forma adequada.
Há uma face escura e angustiante na escola de pensamento liderada por Bastos, em sua tese não declarada, mas muito clara, segundo a qual a liberdade de expressão se opõe ao direito de defesa. Ela pode ser percebida na comparação que fez entre o mensalão e o julgamento do casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, condenados em 2010 por assassinarem a filha dele de 5 anos de idade, em 2008, atirando a menina pela janela do seu apartamento em São Paulo — crime de uma selvageria capaz de causar indignação até dentro das penitenciárias. Bastos adverte sobre o perigo, em seu modo de ver as coisas, de que os réus do mensalão possam ter o mesmo destino do casal Nardoni; tratou-se, segundo ele, de um caso típico de “julgamento que não houve”, pois os meios de comunicação “insuflaram de tal maneira” os ânimos que acabou havendo “um justiçamento” e seu julgamento se tornou “uma farsa”. De novo, aqui, não há uma verdadeira ideia; o que há é a negação dos fatos. Os Nardoni tiveram direito a todos os exames técnicos, laudos e perícias que quiseram. Foram atendidos em todos os seus pedidos para adiar ao máximo o julgamento. Contrataram para defendê-los um dos advogados mais caros e influentes de São Paulo, Roberto Podval — tão caro que pôde pagar as despesas de hospedagem, em hotel cinco-estrelas, de 200 amigos que convidou para o seu casamento na ilha de Capri, em 2011, e tão influente que um deles foi o ministro Toffoli. (Eis o homem aqui, outra vez.)
Ao sustentar que o casal Nardoni foi vítima de um “justiçamento”, Bastos ignora o trabalho do promotor Francisco Cembranelli, cuja peça de acusação é considerada, por consenso, um clássico em matéria de competência e rigor jurídico. Dá a entender que os sete membros do júri foram robôs incapazes de decidir por vontade própria. Mais que tudo, ao sustentar que os assassinos foram condenados pelo noticiário, omite a única causa real da sentença que receberam — o fato de terem matado com as próprias mãos uma criança de 5 anos. Enfim, como fecho de sua visão do mundo, Bastos louvou, num artigo para a Folha de S.Paulo, a máxima segundo a qual “o acusado é sempre um oprimido”. Tais propósitos são apenas um despropósito. Infelizmente, são também admirados e reproduzidos, cada vez mais, por juristas, astros do ambiente universitário, intelec­tuais, artistas, legisladores, lideranças políticas e por aí afora. Suas ações, somadas, colocaram o país numa marcha da insensatez — ao construírem ano após ano, tijolo por tijolo, o triunfo da impunidade na sociedade brasileira de hoje.
ABERRAÇÃO IRRELEVANTE