Um surto etnológico
30 de abril de 2014 | 2h 07
Roberto Damatta - O Estado de S.Paulo
Um escritor advertia que o personagem central de um texto é o leitor. Sigo o conselho e explico o meu título: surto significa arrebatamento, transporte, rapto. Etnológico diz respeito ao estudo de sociedades tidas como "selvagens" ou "primitivas" porque não tinham escrita, desconheciam uma tecnologia onipotentemente destrutiva, sua sabedoria estava na cabeça de um punhado de idosos e, eis um escândalo: não cobriam seus corpos.
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Discutiu-se se tinham alma e imaginou-se que habitavam uma variante do Éden, mas a convivência - essa rotina que transforma presidentes em donos de quitanda e deputados em canalhas logo mostrou que os "primitivos" eram humanos como nós e, como dizia Mark Twain, não pode haver nada pior do que ser um homem.
Surtado, perambulei pelas minhas notas de campo, escritas entre 1961 e a primeira quadra de 1970, quando vivi intermitentemente nas aldeias dos povos gaviões e apinaiés, falantes da língua jê. Na estação atual da minha vida, senti saudade de mim mesmo e fui em busca dos meus 20 e poucos anos, quando tinha uma letra bonita; e não havia experimentado sofrimento, morte e perigo. Sabia de sua existência, mas essas coisas não tocavam meu coração (que era maior do que o mundo) nem os planos de marcar a profissão que abracei com entusiasmo inocente e alucinado.
Queria descobrir se eu havia deixado passar em branco aquilo que meus colegas mais jovens haviam elaborado debaixo da liderança intelectual de Eduardo Viveiros de Castro, a quem eu dedico essa pequena memória.
Viveiros de Castro é um raro mestre pensador. Num ensaio de grande alcance intelectual, ele formulou uma relação que havia passado despercebida, a saber: no universo dos indígenas americanos, o denominador comum entre os seres vivos não era a natureza, mas a cultura.
Para nós, a humanidade é o centro definitivo e absoluto de consciência e vontade, mas não é assim entre os índios. Para eles, ser humano é um modo de ser entre outros. Talvez seja o mais visível, mas não é o mais central ou definitivo como dizem as cosmologias mais conhecidas e mais influentes, as quais asseveram que o ato final da criação são os humanos. Entre os ameríndios não há sete dias que culminam no Homem. Há uma multidão de narrativas reveladoras que as diferenças entre homens, bichos e plantas não é de substância.
Vejam o contraste. Do nosso ponto de vista, a sociedade humana é a herdeira de toda a criação. Homens, animais e plantas se unem pela sua "natureza" física. No mais, são radicalmente diferenciados, pois foi apenas a humanidade que recebeu o sopro divino.
Entre os "índios", porém, a humanidade é um modo de ser, estar e perceber, entre outros. Eduardo Viveiros de Castro cunhou o conceito de "perspectivismo" para designar esses outros modos de enxergar a vida. Os mortos, os animais, as plantas e os fenômenos naturais seriam outras formas ou possibilidades de vivenciar a subjetividade que não seria algo exclusivo do humano.
Neste sentido, os mitos não são criações destinadas a explicar o inexplicável. São testemunhos de que somos parte de um imenso todo capaz de se comunicar o qual, em momentos memoráveis, se dividiu em entidades com uma aparência diferenciada, mas todas dotadas da capacidade de comunicação. Como pode adivinhar o leitor, tal reencontro se faz por meio de rituais ou em situações especiais - acima de tudo quando o ser (seja humano ou bicho) passa por um estado de extremada individualidade e solidão.
Consultando e lendo minhas notas de décadas passadas, colhidas na obstinação dos meus verdes anos, encontro muitas informações sobre animais. Esses atores fundamentais dos mitos que logram ou são logrados por algum humano e que, os meus professores nativos, repetiam para ouvidos moucos que eles eram iguais a nós e nos doaram o que sabemos.
Hoje, graças ao trabalho de Tania S. Lima, Aparecida Vilaça e Carlos Fausto - revejo meus dados e descubro como sol e lua, as estrelas, o sapo, os morcegos, o beija-flor e outros bichos são como nós e nós como eles. Eis um universo absolutamente relacional. Nele, ninguém tem o direito de ultrapassar um certo limite porque não há limites, mas modos de ser. Quanto a nós, que inventamos e legitimamos a "civilização" através da tecnologia (do uso dos talheres à bomba atômica), há muito vazamos todas as fronteiras.
Afinal, somos inventores e compradores de automóveis e, pior que isso, de refinarias.
(Se o surto continuar, eu continuo na próxima semana.)
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