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domingo, 21 de abril de 2013

"Estou esperançoso com o destino da América Latina", Vargas Llosa

ENTREVISTA - 19/04/2013 22h17 - Atualizado em 19/04/2013 22h17
TAMANHO DO TEXTO

Mario Vargas Llosa: "Dilma não deveria apoiar uma fraude eleitoral"

O escritor peruano diz que a eleição de Nicolás Maduro foi roubada, defende o casamento gay e acha que a Argentina merecia alguém melhor que Cristina Kirchner

JOÃO GABRIEL DE LIMA E LUÍS ANTÔNIO GIRON


PROXIMIDADE Mario Vargas Llosa em São Paulo. “Governos democráticos não devem se tornar cúmplices de governos autoritários” (Foto: Ag. Na Lata/Ed. Globo)
O escritor peruano Mario Vargas Llosa, de 77 anos, ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 2010, voltou ao Brasil, depois de três anos, para dar uma palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento, em São Paulo. Defensor dos princípios liberais e democráticos, Llosa é hoje um dos raros intelectuais públicos militantes. “Estou esperançoso com o destino daAmérica Latina”, diz. “Pela primeira vez, o continente conta com uma esquerda não autoritária e uma direita genuinamente interessada em democracia.” Uma exceção, segundo ele, é o chavismo na Venezuela – tão absurdo que, em sua opinião, daria um romance. 

Como o livro se chamaria? O autor de A festa do bode, ficção sobre o ditador dominicano Rafael Trujillo, responde, bem-humorado: A festa do passarinho. O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, durante a campanha eleitoral, disse em discursos que ouvia a voz de Hugo Chávez no canto dos pássaros. Abrindo várias vezes o sorriso largo que se tornou sua marca, Llosa deu a seguinte entrevista a ÉPOCA. 
ÉPOCA – Como o senhor analisa a eleição na Venezuela, vencida por Nicolás Maduro por uma diferença de pouco mais de 1 ponto percentual?
Mario Vargas Llosa –
 Henrique Capriles ganhou as eleições. O uso da máquina do Estado e de seus meios de comunicação foi tão desproporcional que Nicolás Maduro deveria ter vencido o pleito de forma avassaladora. Não foi assim. Houve praticamente um empate. Isso significa claramente que há uma grande reação do povo venezuelano contra o chavismo, contra o que representa Maduro. Por isso, a possibilidade de fraude é grande. Também por isso, me parece justo fazer a recontagem rigorosa dos votos. Os presidentes da América Latina não deveriam legitimar uma possível fraude eleitoral, indo assistir à entronização de Maduro. Seria um ato de cumplicidade contra o povo venezuelano, que claramente pede a democratização, a abertura, a mudança de política. É um momento importante, talvez fundamental, na história da América Latina.

ÉPOCA – A presidente Dilma Rousseffenviou cumprimentos a Maduro pela vitória, logo que saíram os primeiros resultados das eleições. Isso é uma forma de apoio?
Llosa – 
É um ato de cumplicidade com o que está ocorrendo na Venezuela. É lamentável isso partir de um governo democrático. Dilma não deveria apoiar uma fraude eleitoral. Ela não é o único caso. Todos os que fazem isso me parecem igualmente lamentáveis. Deveria haver maior coerência entre a política internacional e a política nacional por parte dos governos democráticos. Os governos que praticam a política chavista, que querem o socialismo autoritário, entendo que se solidarizem com Maduro. Mas governos que praticam internamente a democracia agem de forma absurda quando se tornam cúmplices de governos autoritários, mesmo que seja para aplacar internamente  seus radicais. Felizmente, alguns mostram independência. É positiva a atitude da OEA (Organização dos Estados Americanos), ao pedir a recontagem de votos. E devo felicitar governos como o da Espanha, que não enviarão ninguém para representar o país na posse de Maduro, enquanto não se esclarecer o que aconteceu de fato nessas eleições. 
"Os países chavistas representam o atraso na América Latina. Os países que progridem são os comprometidos com a democracia"
ÉPOCA – O socialismo fascinou muitos escritores na América Latina. O caso mais conhecido é o colombiano Gabriel García Márquez, que apoiou o regime cubano. No caso da Venezuela de Chávez, não apareceram muitos escritores para apoiar o regime. O que mudou?
Llosa –
 Mudou algo muito importante. É a primeira vez que um governo populista e autoritário conta com a oposição de praticamente toda a classe intelectual. As universidades, que costumavam ser radicais na Venezuela, são praticamente todas antichavistas, estão na vanguarda na luta pela democratização. Não conheço um escritor venezuelano importante que não esteja combatendo em favor da democratização. A única exceção é o romancista Luís Britto Garcia. É um sintoma alentador, porque, no passado, a intelectualidade latino-americana cometeu a insensatez de apoiar regimes como Cuba, a ditatura mais longa que o continente já teve em toda a sua história.
O presidente venezuelano Hugo  Chávez (1954-2013). Para Llosa,  ele é uma exceção no continente (Foto: Lynsey Addario/VII Network/Corbis)
ÉPOCA – O senhor foi um desses intelectuais, não? Quais as razões para esse fascínio por Cuba e Fidel Castro?
Llosa – 
Sim, também faço minha autocrítica. Reconheço que, quando jovem, senti um entusiasmo acrítico com o que acontecia. No fim dos anos 1950, quando a América Latina era um continente de regimes militares e osEstados Unidos apareciam como aliados dos ditadores, Cuba parecia representar a alternativa, o progresso, a democracia, a liberdade. Por outro lado, parecia uma revolução que não tinha sido feita pelo stalinismo e o Partido Comunista, e sim por jovens idealistas, socialistas libertários. Estávamos enganados sobre a Revolução Cubana no início. Havia um contexto que explicava esse entusiasmo. É difícil manter a ilusão 54 anos depois. Cuba é uma ditadura que destruiu o espírito crítico, empobreceu selvagemente o país. O país depende hoje da caridade venezuelana. Ao lado da Coreia do Norte, Cuba representa o maior anacronismo de nosso tempo. Esses regimes não são modelos para ninguém. Vivem o final de seus ciclos, como aconteceu com todos os regimes socialistas autoritários do mundo.
ÉPOCA – Há, hoje, vários intelectuais latino-americanos comprometidos com a causa democrática, inclusive em Cuba.
Llosa – 
Sim, claro. Recentemente conheci duas mulheres extraordinárias. Uma delas é a cubana Yoani Sánchez, uma mulher inteligente, que converteu seu blog num instrumento de protesto e crítica, sob condições dificílimas. A outra é María Corina Machado, uma deputada de oposição venezuelana, mulher de personalidade extraordinária e grande convicção democrática. Ela fez uma palestra na Argentina sobre o que ocorre na Venezuela. Conclama os democratas de todo o continente a se solidarizarem com o povo venezuelano nesta luta tão heroica – que, ademais, é uma luta por todos nós. Se o chavismo continuar a fazer estragos na Venezuela, todos estamos ameaçados na América Latina.
ÉPOCA – O senhor escreveu no romance Conversa na catedral que as toxinas do autoritarismo demoram a sair do corpo de uma nação. Essas toxinas estão finalmente começando a sair do continente, a América Latina?
Llosa – 
Acredito que sim. Se você compara a situação hoje com a de 15, 20 anos atrás, há um progresso considerável. Temos muito mais governos democráticos que autoritários. Acontece agora um fenômeno: a existência de uma esquerda democrática, pela primeira vez, na América Latina. Antigamente, a esquerda era autoritária, acreditava em governos firmes, em políticas intervencionistas, no Estado empresário e lidava mal com a diversidade. Isso está desaparecendo pouco a pouco. A esquerda está se tornando civilizada. Da mesma forma, a direita também ficou democrática, bem diferente da direita golpista, militarista do passado. A nova esquerda e a nova direita estão dando à América Latina um dinamismo, um progresso que justifica o otimismo. Os países que seguem o chavismo são poucos e representam um atraso em relação ao restante dos países latino-americanos. São os países democráticos que progridem, não só em termos econômicos, como também políticos.
ÉPOCA – No Brasil, os quatro pré-candidatos à Presidência são de partidos que se definem como “esquerda”. Por que a direita desapareceu por aqui?
Llosa –
 É um fenômeno bem latino-americano: ninguém quer ser de direita. No máximo, aceita-se ser de centro-esquerda. Mas não importa tanto as etiquetas que os partidos põem, e sim o que fazem. E o que fazem hoje está mais para centro-direita do que para esquerda.
"Vivi na Inglaterra nos anos de Thatcher. Com ela, o país voltou a ter um protagonismo e uma presença internacional extraordinários"
ÉPOCA – Qual sua impressão sobre o legado da primeira-ministra britânicaMargaret Thatcher, cuja morte recente tem rendido homenagens, mas também protestos?
Llosa – 
Vivi na Inglaterra nos anos de Thatcher. Conheço as obras mais positivas dela. Quando ela subiu ao poder, no fim dos anos 1970, a Inglaterra era um país apagado, mergulhado na mediocridade do socialismo. As empresas eram estatizadas. O Estado crescia de uma maneira cancerosa, perdera o nervo criativo e o dinamismo. O país empobrecia e se mediocrizava. A palavra “decadência” exprimia fielmente a realidade inglesa. A transformação promovida por Thatcher foi extraordinária, com as privatizações realizadas com um critério eminentemente social. As empresas foram obrigadas a competir. Acabaram-se os subsídios, o clientelismo, os privilégios. A economia de mercado obviamente trouxe alguns sacrifícios, mas, ao mesmo tempo, gerou um progresso formidável da economia inglesa. Pela primeira vez em muitos anos, a renda per capita da Inglaterra superou a França. A Inglaterra voltou a ter um protagonismo e uma presença internacional extraordinários.
A primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher (1925-2013). Llosa faz  um balanço positivo de seu governo (Foto: Terry O’Neill/Hulton Archive/Getty Images)
ÉPOCA – Não há nada a criticar em Thatcher? E o apoio ao ditador chileno Augusto Pinochet?
Llosa –
 O apoio a Pinochet foi lamentável. Ela fez isso para agradecer os serviços que a ditadura chilena prestou à Inglaterra durante a Guerra das Malvinas. Também foram lamentáveis os últimos anos do governo de Thatcher, com os ataques à Europa, numa atitude nacionalista exacerbada. Mas, quando fazemos um balanço dos anos Thatcher, o lado positivo é muito maior.
ÉPOCA – O senhor conheceu Thatcher pessoalmente?
Llosa – 
Encontrei com ela quatro vezes. A primeira foi num jantar promovido por Hugh Thomas, então ministro dela. Durante a conversa, a submetemos a um verdadeiro exame, educado mas severo. No final, quando ela foi embora, um dos presentes, o professor Isaiah Berlin, disse uma frase que resumiu a impressão geral: “Nothing to be ashamed of”. Nada do que possamos nos envergonhar. A segunda vez encontrei-a em seu gabinete em Downing Street. Eu era candidato à Presidência do Peru e lhe perguntei: “Primeira-ministra, se ganhar a eleição, qual seria a decisão mais importante que eu deveria tomar?”. Nunca esqueci a resposta: “Cerque-se de um grupo leal e corajoso. Porque, se você fizer as reformas liberais, a reação será tão feroz que as piores traições virão de seus amigos, não de seus adversários”. E Thatcher sairia do poder não porque a oposição ganhou, e sim por uma traição interna do Partido Conservador, encabeçada por Geoffrey Howe (chefe de gabinete de Thatcher).
ÉPOCA – E os outros dois encontros?
Llosa –
 A terceira vez que a vi foi no México. Ela desmaiara durante uma conferência, estava abatida. Lembro-me do marido dela, Dennis Thatcher, que contraíra uma espécie de horror da América Latina depois daquela excursão. Chamava a todos nós de “mexicanos”. Da última vez que a vi, ela estava já fora do poder. Fui a sua casa acompanhado de cubanos exilados, que queriam convidá-la para fazer uma conferência em Miami. Ela se mostrou simpática e divertida, tomou três uísques. Falou muito, contou piadas. No final, acompanhou a gente até a porta e, como uma menina revolucionária, levantou o braço e disse: “Temos de derrotar Castro!”.
"Os gays sofreram terrivelmente ao longo da história, sobretudo em países machistas como os latinos. A união homossexual é bem-vinda" 
ÉPOCA – O que o senhor pensa do governo argentino?
Llosa –
 A Argentina não merece o governo da senhora Kirchner. É um país que já foi Primeiro Mundo, quando três quartos da Europa pertenciam ao Terceiro Mundo. Foi um país industrial, que teve um sistema educacional fora de série. Foi o primeiro país que acabou com o analfabetismo no mundo – ninguém mais se lembra disso. Como a Argentina pode ter retrocedido dessa maneira? Foi por razões puramente políticas, e isso tem um nome: peronismo. Minha esperança é que venha uma reação das bases. Não há sentido algum a Argentina fazer parte do pelotão dos regimes atrasados, encabeçado por Raúl Castro e Nicolás Maduro. É um anacronismo flagrante, que não faz jus ao país.
A presidente da Argentina, Cristina Kirchner. Ela representa a permanência do peronismo (Foto: AFP)
ÉPOCA – A união civil entre homossexuais tem sido um tema bastante discutido na América Latina. Ela foi aprovada no Uruguai, na Argentina... Llosa – ...e espero que seja aprovada em todos os países da América Latina. É um ato de justiça contra uma minoria perseguida, que sofreu terrivelmente ao longo da história, sobretudo em países machistas como os nossos. Já era hora de haver uma reação positiva para combater esse preconceito absurdo de que são vítimas os homossexuais. Os direitos humanos precisam ser compreendidos na América Latina em toda a sua extensão. O casamento gay é a reparação de uma injustiça. E é bom que figure na agenda política.  
ÉPOCA – O senhor acredita que o papa Francisco, argentino, colaborará com o progresso dos direitos humanos e com as liberdades individuais?
Llosa –
 As primeiras iniciativas do papa têm sido boas. Ele está se aproximando das pessoas e dando mostras de simplicidade e modéstia. Dá a impressão de ser um homem bem-intencionado, consciente de que a Igreja Católica precisa realizar uma política de abertura e modernização. A Igreja tem se tornado anacrônica e assim continuará, se ele não abordar com coragem as reformas necessárias.

ÉPOCA – O que teria de mudar na Igreja Católica?
Llosa –
 Duas reformas seriam importantes. A Igreja teria de abolir o celibato clerical, em parte responsável pelos escândalos de pedofilia que tanto dano trouxeram. E teria de dar acesso à mulher a cargos e responsabilidades eclesiásticos. A Igreja mantém uma discriminação antimoderna.
ÉPOCA – Até que ponto ganhar o Prêmio Nobel foi importante para sua vida? Alguns escritores sentiram-se paralisados criativamente com o Nobel, como o irlandês Samuel Beckett. Isso acontece ao senhor, que criticara o prêmio no passado?
Llosa –
 Ganhar o Nobel foi uma grande surpresa. Estava absolutamente seguro de que nunca me dariam o Nobel. Eu tinha feito todo o necessário para não ganhá-lo, com tudo o que defendo e critico. Olha, o Nobel é uma semana de sonho. A gente vai a Estocolmo para receber o prêmio – e vive uma espécie de realidade divertida, belíssima, simpática. Em seguida, essa semana de sonho dá lugar a um ano de pesadelo. Porque a responsabilidade, as obrigações, as indicações, o assédio dos jornalistas, tudo isso é algo enlouquecedor. É preciso lutar para conseguir algum tempo para poder escrever. É terrível. Estou contente, claro, mas ganhar o Nobel envolve realmente uma pressão terrível. Ganhei, estou feliz, como feliz de ter ganhado outros prêmios ao longo de minha vida, mas já estou velho para ficar vaidoso com um prêmio a menos ou a mais. Continuo a fazer meu trabalho, embora com mais dificuldade, porque a pressão é maior. É importante manter as ilusões e os projetos até o último momento. Lutar contra o tempo. Isso mantém o homem vivo, e isso tenho de sobra.

ÉPOCA – No livro A anatomia de um instante, o escritor espanhol Javier Cercas esmiúça um único acontecimento histórico num livro, o golpe militar contra o presidente Adolfo Suárez em 1981. Existe um tema da história atual que, a seu ver, daria um livro?
Llosa –
 Eu escolheria esta transição à democracia que acontece na Venezuela. A rejeição do populismo autoritário terá um enorme significado, não apenas para a Venezuela e os países semivassalos da Venezuela – casos de Nicarágua, Bolívia e Equador –, mas também para toda a América Latina. Isso dará um grande impulso à democracia. É um momento nevrálgico, que merece uma reportagem a respeito, como a de Cercas sobre o golpe na Espanha.

ÉPOCA – Não poderia ser um romance, como A festa do bode, que o senhor escreveu sobre a República Dominicana?
Llosa –
 Poderia, só que o título seria A festa do passarinho.  

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

"Falta-me cinismo para a política", disse Yoani Sánchez à revista Época


ENTREVISTA - 23/02/2013 10h50 - Atualizado em 23/02/2013 10h50
TAMANHO DO TEXTO

Yoani Sánchez: "Escutar o outro é básico para a democracia"

A dissidente cubana diz ter "pena" dos militantes que tentaram impedi-la de falar em sua visita ao Brasil e defende uma investigação sobre os protestos

JULIANO MACHADO

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DE CARA LIMPA Yoani Sánchez posa para foto em São Paulo. Sua aparência despojada gerou comentários no Brasil, especialmente seu cabelo, segundo ela uma expressão de liberdade (Foto: Filipe Redondo/ÉPOCA)A conversa com a blogueira cubana Yoani Sánchez, de 37 anos, começa com uma brincadeira: “Aqui posso falar tranquila, não?” Depois de cinco anos de frustrados pedidos ao governo comunista para viajar ao exterior, Yoani escolheu o Brasil para iniciar seu giro de cerca de 80 dias por mais de dez países da América Latina e Europa. Na estada de uma semana por aqui, foi hostilizada diversas vezes por manifestantes de grupos de esquerda, que tentaram impedi-la de falar ou responder as suas perguntas. A exibição de um documentário em que é o tópico central, em Feira de Santana, Bahia, e o relançamento de seu livro De Cuba, com carinho (Editora Contexto), em São Paulo, foram interrompidos por causa da balbúrdia. A ÉPOCA, Yoani cobrou uma investigação sobre esses episódios e disse suspeitar da influência direta do regime cubano na organização dos protestos. Ela falou também sobre seu futuro numa possível Cuba democrática e por que não sonha ser presidente de seu país. “Falta-me cinismo para a política.” Mas também falou de temas amenos, como seu longuíssimo cabelo, que definiu como "livre e selvagem como eu".


ÉPOCA– E por que o Brasil como primeiro destino?
Yoani – 
Porque gosto de ser desafiada (risos). Durante os anos em que me foi negado sair de Cuba, vieram do Brasil as maiores manifestações de apoio, inclusive nos momentos em que já tinha perdido as esperanças. Tinha de vir ao Brasil primeiro para receber o abraço dessas pessoas.
ÉPOCA– Não é irônico o fato de que este mesmo Brasil que apoiou tanto sua vinda também a hostilizou?
Yoani –
 Nunca pensei em encontrar um país homogêneo racial, cultural ou religiosamente, muito menos ideologicamente. Não esperava um país em que todos pensassem igual.
ÉPOCA– Mas a senhora imaginava ser recebida como foi?
Yoani –
 Imaginava. Dias antes de viajar, vários blogs oficialistas de Cuba, quase sempre anônimos, já advertiam que me dariam uma resposta contundente no Brasil. Talvez para vocês seja algo pouco comum alguém ser impedido de falar num evento público, mas para mim não é. Desde pequena, testemunho manifestações de ódio em Cuba. Me dá um pouco de pena dessas pessoas (os manifestantes brasileiros). Elas têm muito poucos argumentos. Estava muito aberta ao debate, mas o que encontrei do outro lado foi o extremismo, com gritos e palavras de ordem. Foi um ódio excessivo. Muitos deles nem sequer me conheciam ou leram meus textos. Repetem clichês que não se ajustam à realidade.
ÉPOCA - E a sensação de ter sido escoltada pela Polícia Legislativa no caminho para a Câmara dos Deputados?
Yoani - 
Foi a primeira vez que passei por isso. E ocorreu com uma cidadã pequenininha, que não tem nenhuma importância, como o governo cubano diz. É paradoxal. Se não sou nada importante, por que me proteger tanto? Estamos falando de uma pessoa que nunca militou por nenhum grupo político, nunca agrediu ou matou ninguém, mas apenas põe suas ideias em um blog. É realmente sintomático, como prova da força que tem a palavra.
ÉPOCA – Alguns manifestantes eram ligados ao PT, o partido da presidente Dilma Rousseff. O governo brasileiro deveria emitir uma posição sobre esse episódio?
Yoani – 
Quero evitar me envolver em temas partidários ou sugerir aos brasileiros o que têm de fazer. Mas não há dúvida de que os fatos ocorridos deveriam ser investigados. Os militantes do PT precisam de uma explicação sobre por que alguns colegas impediram atos como a exibição de um filme ou o lançamento de um livro. Se eu militasse num partido e ocorresse algo assim, pediria explicações. Vale a pena investigar, porque não acho que as razões sejam apenas o rechaço a meus textos. Evidentemente, havia alguém atiçando os ódios. É preciso saber quem, o quê, a que distância e de onde é essa entidade que está fazendo isso.
ÉPOCA– Quem é essa entidade?
Yoani –
 Não tenho nenhuma prova. Mas tudo tem o signo muito marcante do tipo de ação que faz o governo do meu país contra os dissidentes.
ÉPOCA– Seria alguma iniciativa da embaixada de Cuba no Brasil?
Yoani – 
Como disse, não tenho provas, mas não acharia estranho. Em Feira de Santana, todos os manifestantes tinham o mesmo documento, impresso da mesma forma. É claramente um sinal de que alguém lhes entregou. E os pontos desse documento se parecem assombrosamente com aqueles com que o oficialismo me ataca.
ÉPOCA– Que pontos?
Yoani –
 Meu suposto vínculo com a CIA, que já é quase uma piada. Outro são os questionamentos sobre o sequestro que sofri em 2009 (ela afirma ter sido agredida e levada de carro por agentes do governo). É o mesmo roteiro de ataques que costumo receber em Cuba. Já estou acostumada a isso e não me traz danos emocionais, mas me incomoda não me darem o direito de me explicar. Sou uma pessoa da palavra. Essas perguntas são feitas para que eu não as responda. São para me difamar.
Evidentemente havia alguém atiçando os ódios. tudo tem
o signo marcante do tipo
de ação que faz o governo
do meu país contra os dissidentes
 
ÉPOCA– Um militante disse num debate na TV que não houve coerção em Feira de Santana porque não houve violência física. O que a senhora acha desse raciocínio?
Yoani –
 Em minha chegada ao Brasil, no aeroporto do Recife, uma pessoa chegou a puxar meu cabelo. Em Feira de Santana não houve violência física contra mim, graças à intervenção dos organizadores, que me cercaram e me colocaram numa sala até que os ânimos serenassem. Mas o clima ali era de linchamento. A questão não é se houve agressão ou não. Impediram uma pessoa de se expressar. Isso, sim, é coerção, algo muito autoritário. Escutar o outro é um princípio básico da democracia e da convivência pacífica. A lógica foi: “Não estou de acordo com você. Cale-se”.
ÉPOCA – Tanto ativistas da esquerda como parlamentares de partidos da oposição se aproveitaram sua figura para defender seus interesses. Isso a incomoda?
Yoani – 
Não. A vida é aproveitar-se do outro. O governo de Cuba se aproveita de mim para dizer ao mundo que há uma democracia, porque Yoani Sánchez pode escrever em seu blog. Prefiro a manipulação por dizer algo do que por não dizer nada. Se minha opinião serve a alguém, podem tomar minhas palavras sem problema. Sou open source, dou licença gratuita para todos. O que não faço é me alinhar ao pensamento de um partido. Na saída da Câmara, um jornalista me perguntou se eu sabia que alguns deputados que me receberam eram muito conservadoras em temas como o casamento gay. Fui madrinha do primeiro casal gay de Cuba, mas uma das minhas filosofias de vida é a transversalidade. Quero ter contato com todas as forças políticas. Sou uma pessoa de conciliação. Não houve mais gente do PT na Câmara porque não quiseram ir. O embaixador cubano (Carlos Zamora) também foi convidado, mas não foi.
ÉPOCA - Sua visita mudará o “silêncio cúmplice” do Brasil ante a ditadura cubana, usando um termo que a senhora escreveu em seu blog?
Yoani - 
Não quero ter a pretensão de pensar que a simples vinda de uma cidadã a um país enorme como o Brasil mudará a política externa. Mas todas as pessoas que me encontraram nas ruas por aqui me trataram com muito carinho e palavras de estímulo: “Siga”, “resista”, “leio seu blog”, “abaixo a ditadura”. Fora os extremistas que desejam sustentar um cenário utópico de Cuba, tenho a sensação de que o povo brasileiro sabe que Cuba é um Estado sem direitos para os cidadãos. Se um povo começa a mudar sua opinião sobre um assunto de fora, a política exterior terá que mudar um dia.
ÉPOCA– A senhora ficou conhecida por lutar pelo seu direito de viajar ao exterior. Isso conseguido, seu discurso será mais concentrado agora na queda do regime? Quais são seus próximos passos?
Yoani –
 Creio na evolução. Não posso ser a mesma Yoani de 2007 (ano em que lançou o blog Generación Y). Pretendo abrir um jornal em Cuba com os recursos que conseguirei levantar nas viagens por vários países. Ainda não é possível de maneira legal, mas tratarei de achar brechas para conseguir. Não abandonarei o blog, que é minha terapia particular. Mas claro que preciso mudar o discurso, não ficar somente na denúncia, mas sim propor soluções. Minha proposta principal se resume a despenalizar a dissidência. Cobrar que o governo tenha o compromisso de que nenhum cidadão será punido por expressar qualquer ideia. Conheço muitos economistas, sociólogos, gente que quer ajudar a melhorar o país, mas tem medo de passar pela mesma situação de Yoani Sánchez ou dos prisioneiros da Primavera Negra (como ficou conhecido o movimento de repressão do regime em 2003, que resultou na prisão de 75 pessoas). Se houver isso, as propostas aflorarão.
ÉPOCA– A ditadura não durará para sempre, e um dia haverá eleições livres em Cuba. A senhora pensa em se candidatar à Presidência quando isso ocorrer?
Yoani – 
Não tenho a menor vontade. Quando uma figura se destaca em Cuba, nos acostumamos a depositar nela todos os desejos de mudança, quase como uma entidade messiânica. Isso nos fez entregar nosso destino nas mãos de Fidel Castro. Não gostaria que isso se repetisse na Cuba do futuro. Prefiro que o governante do país com que sonho seja um administrador sem nenhum carisma, que não tenha a auréola do salvador da pátria. Não tenho intenção de me candidatar porque tenho uma responsabilidade maior como jornalista. Quero ser incômoda para este governo e para o próximo. Tenho tanto a fazer que não dá para embarcar em uma carreira política.
ÉPOCA – Mas seus admiradores no exterior esperam por isso...
Yoani - 
Muita gente já me abordou sobre isso, sim, mas nunca estive interessada. Não é que digo “não” agora e “sim” depois. Falta-me cinismo para a política. Eu seria um desastre. Nas primeiras duas semanas, diria tudo tão honestamente que isso me causaria todos os problemas do mundo. Que outros se ocupem da política com minúscula. Vou me preocupar com a política com maiúscula.
ÉPOCA - A senhora se incomoda de não ser muito conhecida em Cuba?
Yoani -
 Não sou a pessoa indicada para falar disso, pois pareceria um ato de imodéstia. Mas cada vez que saio às ruas do meu país, seja em Havana ou em um pequeno povoado, muita gente me reconhece. Como? Pela forma como a informação se difunde em Cuba. Há o fenômeno das antenas parabólicas ilegais, que transmitem emissoras da Flórida, do México, onde veiculam reportagens sobre mim. Mas minha intenção não é ser conhecida. Não sou política, não busco apoio popular. A fama é efeito colateral, não resultado do meu trabalho. Não sou uma pop star nem quero competir em popularidade com as novelas brasileiras, transmitidas três vezes por noite na televisão cubana. Sobre eu não ser conhecida, é preciso ir a Cuba e perguntar.
ÉPOCA - Sobre as novelas brasileiras, a senhora já escreveu que elas têm uma influência grande na população ao mostrar situações em que um personagem sai da miséria e realiza seus sonhos. As novelas daqui já fizeram mais que nosso governo para despertar a consciência do povo cubano?
Yoani - 
Acho que são melhores embaixadoras da liberdade. Mas as novelas têm um duplo papel contraditório. Se por um lado trazem informação e oxigênio para mostrar aos cubanos que há outras realidades e não somos o paraíso, por outro funciona como um sonífero. Muita gente compra caixas com novelas inteiras no mercado informal e fica o dia inteiro na frente da TV.
ÉPOCA - A senhora disse que “falta dureza” do Brasil quanto aos direitos humanos em Cuba. Essa é questão mais delicada envolvendo a relação dos dois países?
Yoani -
 O governo brasileiro encampou a luta contra o embargo americano a Cuba, mas nosso maior problema não é o conflito entre Cuba e Estados Unidos, mas o conflito Cuba e seus cidadãos. Recomendaria, muito humildemente, complementar a política externa para Cuba com a questão da ausência de liberdade de expressão, de associação. Senão, parece apenas um assunto de xadrez político. Se estão pressionando pelo fim do embargo, muito bem, mas por que não pressionar pelo fim do bloqueio que o governo impõe a nós mesmos?
ÉPOCA - Que impressão a senhora levará do Brasil?
Yoani - 
Fabuloso. Encontrei muita pluralidade. Confirmei a frase que um amigo me disse: “Os brasileiros são como os cubanos, mas livres. Todos os rostos que vi me lembram os de Cuba, e também a gestualidade. Mas, ao falar com os brasileiros, me espantei com a naturalidade com que falavam de temas políticos. No aeroporto do Recife, fiquei em um escritório à espera do carro para me levar dali porque os manifestantes poderiam bloquear minha passagem. Ali, uma controladora de voo falou de corrupção e falta de transparência no Brasil de uma forma que seria impensável em Cuba. Lá, nós murmuramos. Se vamos falar de Fidel Castro em local público, fazemos um gesto de alguém barbudo. Se o assunto é Raúl Castro, puxamos os olhos, por causa de seus traços achinesados. Ninguém fala em voz alta de política.
ÉPOCA - As pessoas no Brasil estão falando sobre seu cabelo. Li um post antigo no seu blog sobre o fato de que sua irmã ria da senhora por causa do seu “cabelo de brasileira”, pois parecia com a da cantora Maria Bethânia.
Yoani - 
Sim. Quando era menina, minha mãe dizia meio de brincadeira, meio sério. Era a época em Cuba, no início dos anos 80, que se ouvia muito a música brasileira, como Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento. Me parecia muito bonito os cabelos que eles tinham, um cabelo livre. Deixo crescer meu cabelo, que é bastante selvagem. Mas não há uma razão especial. Já tive todos os tipos possíveis de cabelo. Uma vez tive o cabelo raspado, durante dois anos da minha vida.
ÉPOCA - Quando?
Yoani -
 De 1992 a 1994.
ÉPOCA - Mas por quê?
Yoani -
 Bom, primeiro porque era a época de Sinéad O’Connor (cantora irlandesa que tinha o cabelo raspado) e estava na moda. Mas também naqueles anos em Cuba havia uma crise material, econômica e financeira tão forte que comprar xampu ou conseguir xampu para o cabelo era quase impossível. Sob essa condição de colapso material, surgiram por todos os lados muitas epidemias de piolho. Bom, então decidi raspar o cabelo para evitar todos esses problemas, a compra de xampu e a aplicação (de remédios) para os piolhos. Foi muito difícil, porque na rua as pessoas gritavam muitas coisas para mim.
ÉPOCA - O quê, por exemplo?
Yoani -
 Me chamavam de lésbica. Porque era uma época que em Cuba não estavam acostumados com o cabelo raspado. Me agrediam muito verbalmente. E um belo dia deixei o cabelo crescer e...
ÉPOCA - Aqui perguntam “por que ela não corta o cabelo”?
Yoani - 
Já me perguntaram se eu tinha uma promessa... Não, não é isso. Ele é livre e selvagem como eu. Não há cuidados especiais. Não me penteio muito. Não me maquio. Não tenho tempo para isso. Não pinto as unhas. Ele (o cabelo) está aí e tem seu espaço. Eu tenho o meu. Nós nos respeitamos (risos).
ÉPOCA - A senhora não é uma pessoa muito vaidosa, neste sentido?
Yoani - 
A minha vaidade se reflete em outra coisa. Mais que a vaidade física, não passo minha vida vendo as coisas que não escolhi, compreende? São coisas que não selecionei para a minha vida. Uma é o meu corpo. Veio assim...