Mas não estamos agonizando desde que nascemos para viver nossas mil mortes? Abandonamos o que não somos, deixando para trás mais um eu que não vingou. Foi o que pensei quando me perguntaram se tenho medo da morte e o que faria se soubesse, hoje, que este é meu último dia de vida. Falar da morte é mórbido demais para meu gosto. O assunto não me atrai. Não penso nisso e a vida nunca me deixa sem assunto, embora me deixe sem palavras tantas vezes. A idade vem chegando e vemos nosso corpo nos abandonando; para algumas pessoas, a lucidez se depura, para outras, ela se extingue. Como Chico Anísio, não tenho medo, mas pena.
Não é por nada, não aspiro a ser exceção no ciclo natural de nascer-morrer e sei, claro, que um dia acontecerá – e tudo bem, pois a imortalidade nos mataria de certo modo –, só que, apesar de não ser nenhum broto (e usar essa palavra o comprova), a ampulheta trapaceira e implacável estaria me roubando dezenas de anos dos 100 que tramei viver, como alguns parentes. No centésimo aniversário de uma tia-avó, perguntei-lhe o que fazer para chegar lúcida e saudável (o único modo a ser considerado) àquela idade. Nada, minha filha. Mas ela se foi logo depois e não tenho como lhe perguntar se estou fazendo nada direitinho.
Tá, sem embromação: haveria chegado o último dos meus dias consumados na agenda do Absoluto. O que eu faria? Primeiro, tentar lidar com o atordoamento da notícia. Em alguns segundos, penso no amor. Tudo e todos que amei porque os amantes estão sempre certos (ou vocês nunca ouviram “Amanda Amante”, do Roberto Carlos?) e o que se opõe ao amor parece torná-lo longevo, resistente, teimoso, imortal até. Contudo, penso no amor fraternal também. Talvez usar isso como álibi. Não, a coisa é inegociável. Num mundo ríspido, o amor é emoliente e os amantes se buscam e resgatam um ao outro do fundo do desencanto, sempre aspirando pelo presente vivido a cada instante. Amar é este exercício de viver o presente – e, sem ser pouco, o presente é tudo o que se tem.
O que fazer? Pensei em Deus, em mim e o vazio entre mim e Ele que tentei vencer com uma fé verdadeira, aquela com porções de dúvidas. Lembrei de “O Sétimo Selo”, a obra-prima que acaba de completar 60 anos. Como poucos, Bergman palmilhou esse território do vazio e da dúvida. Embora com passagens de comicidade improvável, como quando a Morte serra um galho de árvore para levar um artista consigo, o filme é grandiloquente demais para quem está lidando com o fato de que terá os olhos amarelos da Morte borrando o último crepúsculo a ser testemunhado e, diferentemente do cavaleiro medieval, Antonius Block, não jogo xadrez tão bem.
Nesse jogo, Antonius tenta convencer a Morte de que os homens merecem viver mesmo naquela idade média em que alguma muito ruim sempre estava acontecendo a alguém muito feio. E era fácil ser feio num tempo em que se morria velho aos 30 anos. No jogo de xadrez, o homem tenta lidar com a polpa bruta, a incognoscível, na figuração mais famosa da morte no cinema. Bergman é ainda mais brilhante quando aborda outros vazios e solidões: aqueles entre pais e filhos, entre irmãos, homens e mulheres. Nas relações humanas é que as fraturas internas de cada indivíduo aparecem em feridas que, tantas vezes, são a ponte instável, mas o único meio possível de aproximação. Exemplificam isso a magnitude de “Fanny e Alexander” e a sublime corrosão de “Cenas de um Casamento”.
Abandono Bergman e vasculho na memória o que disseram poetas, filósofos, etc. Desisto porque ninguém vai morrer a minha morte nem viver meu último dia, portanto tem de ser do meu jeito e, então, constato: não sei. Provavelmente não teria tempo de me refazer do atordoamento da notícia, nem para consertar erros, buscar perdões nem oferecê-los – o que, ademais, perderia toda a importância, se é que ainda resetasse alguma. Dizer certas verdades para uns e outros? Melhor não, pois posso ouvir verdades de que nem desconfiava ou, pior, desconfiava, sim, e ter de partir para a eternidade com um barulho desses. Deixa quieto. Afinal, tudo se relativiza; certezas – aquelas duas ou três remanescentes que eu escondia atrás da lata de biscoito na última prateleira do armário da cozinha – perdem os ossos. Beijar minha filha e dizer-lhe que a amo? Faço isso todos os dias. Contar a ela? Isso me mataria. Contar à minha mãe? Isso a mataria.
Concluo que encaminharia providências práticas, como separar documentos, quanto ao caráter pragmático da vida que segue para os que ficam e, então, decido reagir: vou ligar para a Soraia, minha cabeleireira há mais de 20 anos, e suplicar por um horário assim, em cima da hora. Se a minha urgência não for urgente, não sei o que seria. Fazer as unhas, vestir minha melhor roupa como num rito, abrir aquele vinho guardado na prateleira debaixo da pia, que esperava a ocasião especial que tardou até se tornar desnecessária. Pois eis aí a ocasião: não esperaria sóbria por tal visita intrusa e, enquanto procuro o saca-rolhas como quem busca o passaporte para uma viagem, entoarei minha última oração – fazendo dela mais um lugar do que uma ação – em agradecimento a Deus por tudo, lembrando a Ele que fui o mais fiel que pude à vida entendida como dádiva, eu a celebrei no pouco e no muito; reconheço que a primeira parte foi pedagógica, mas admito que gostei mais da segunda. Agradecerei sobretudo por aquela garrafa de vinho que a Providência adiou.
Tenho modos, sei que bons anfitriões não recebem visita embriagados, então beberei o bastante somente para amolecer minhas eventuais resistências, simular serenidade e tornar a visita interessante. Se eu puder fazer um último pedido como diz a tradição, pedirei que a coisa seja leve e que não desmanche meu penteado.