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quinta-feira, 30 de novembro de 2017

"Acaba o foro, continua a impunidade" / Valentina de Botas

Valentina de Botas: 

Acaba o foro, continua a impunidade

Como reza a lenda, todos são iguais perante a lei, então que sejam todos iguais perante a lei

Rodrigo Janot saiu da Procuradoria Geral da República, mas a PGR não saiu dele; Raquel Dodge entrou na PGR, mas a PGR não entrou nela e os tuiuiús ainda dão seus saltos para voos desengonçados. Alguns procuradores do MPF comportam-se como títeres com crachá e aposentadoria integral. Os políticos delinquentes, sem surpresa, tentam escapar da polícia. O Brasil é a casa da sogra de cada um deles; e a lei, uma mesa bamba onde todos descansam os pés sujos. Enquanto isso, a discussão psicótica sobre o fim do foro por prerrogativa de função, vulgo foro especial ou privilegiado, ilustra nossa vocação para o acessório evitando o essencial.
A Revista de Direito Público divulgou um estudo, no respectivo site, sobre o foro privilegiado, revelando que há 54.990 autoridades, no Brasil, com direito a ele. O número é alto se comparado a democracias maduras que têm o mesmo instituto, mas democracias maduras não têm o tamanho do Estado brasileiro; então, constatemos que nosso atraso é coerente consigo mesmo. Contudo, creio que, para efeito de eficiência da Justiça, não importa o número de autoridades com foro especial, mas que, em qualquer instância, a morosidade patológica seja abolida para que a prescrição e a consequente impunidade não vigorem.
Nosso sistema de Justiça é caro e dramaticamente ineficaz. Em qualquer instância. Eis nossa tragédia, o monstro cujos olhos este debate de 3ª série C evita que fitemos. Passar 50 mil autoridades do foro privilegiado para a 1ª instância só desloca o vício de lugar, é uma questão acessória à vergonha que nos faz uma nação primitiva em que a impunidade parece a razão de existir do Judiciário na sua inteireza. Qual a diferença, além de nenhuma, o caso de uma autoridade prescrever no STF ou, com o fim do foro, prescrever no caminho pavimentado por recursos, entre a 1ª instância e o STF? Nenhuma.
Capitaneado pelo ministro Barroso, o STF está decidindo o fim do foro privilegiado para políticos; Toffoli pediu vistas porque o Congresso também está mudando a legislação pertinente, mas incluindo o Judiciário (com STF, PGR e tudo o mais). Está errado, mas está certo: se, como reza a lenda, todos são iguais perante a lei, então que sejam todos iguais perante a lei. O bizarro, neste país-estufa de bizarrices com vista para o Atlântico, será ver a coisa chegar, de recurso em recurso, à instância superior cabível. Exatamente como é hoje.
Mas o que importa é o teatral combate-à-impunidade num país onde 92% dos assassinatos ficam impunes sem que Barroso se comova com isso. Claro, pois se a alma de legislador num corpo que não lhe pertence quer a liberdade para um Battisti condenado, fraudou o regimento da Câmara para impedir o impeachment de Dilma, defendeu os embargos infringentes para José Dirceu, lutou pelo perdão a Joesley Batista e pretendeu aplicar “medidas cautelares” incabíveis contra um senador na compulsão de rasgar a CF (livrinho de rara e longínqua referência para Barroso) e, vencido, lacrou numa entrevista que tal decisão “entrará para a antologia dos erros do STF”, atacando este que foi um dos poucos acertos da corte no ano. Felizmente, num STF com Roberto Barroso, há um Gilmar Mendes.
Removam-se dos parlamentares e dos governantes seus gabinetes e seus V.Excia. O que sobra? Homens. Removam-se o crachá, a aposentadoria integral e as benesses dos procuradores. O que sobra? Homens. Removam-se a toga e as prosopopeias dos juízes e ministros dos tribunais. O que sobra? Homens. Então por que diabos uns homens seriam mais puros, de coração desinteressado, do que outros, merecendo uns o tal foro e outros, não? Não se trata de indivíduos, mas do cargo? Então que se resguardem somente os cargos de chefia dos poderes, como determina a PEC que tramita no Congresso. 
Vamos falar a sério sobre impunidade? Há foro especial para 55.200 (92% do total) assassinos que ficam impunes a cada ano no Brasil? Dos 60 mil assassinatos anuais no país, somente 8% são julgados segundo a Associação Brasileira de Criminalística. Não estou negando que os políticos delinquentes desfrutem do quase imobilismo da Justiça, estou dizendo que ele a infecta por inteiro e que ações contra a impunidade só serão frutíferas se considerarem essa realidade. Enquanto bandidos ricos e/ou poderosos contam com brechas legais e recursos jurídicos acionados por advogados caros – lembrando que o Estado gasta uma fortuna com a Defensoria Pública – para alcançar a impunidade, bandidos pobres a obtêm pela inépcia do Estado na apuração dos crimes. A Justiça não apura crimes, esclareço, ela os julga; a polícia e o MP os apuram, por isso uso a expressão “sistema de Justiça” já que a polícia e o MP o integram conceitualmente, digamos.
A Lava Jato é diferente, ainda bem, razão pela qual não é exemplo. Ela é outro mundo com juízes exclusivos e, na comparação do rendimento das instâncias inferiores e o do STF, tem sido esquecido o detalhe relevante: o MPF/PGR levou a LJ para o STF dois anos depois de já instalada em Curitiba. Além disso, Lula não precisou de foro especial para continuar solto, voando em campanha nas asas de medidas menos gravosas e atacando quem o deixou voar. Dallagnol o prendeu num power-point e mudou de calçada, passando a proclamar cotidianamente que os políticos-querem-acabar-com-a-Lava-Jato. Com algum respeito pelos brasileiros que não sofrem de herói-dependência, o procurador reconheceria que não tem o direito de falar isso quem deixou solto o pai do petrolão.
Você não tem problemas com a lei, ganha a vida honestamente e ajuda velhinhas a atravessar a rua mesmo que elas não queiram? Não é o bastante para fazer críticas ao Judiciário e às respectivas “extensões” (MFP, Lava Jato) com suas aposentadorias acima do teto, auxílio-moradia inconstitucional (garantido pelo ministro Luiz Fux, outro habitante da lacrosfera) e demais imoralidades: você será acusado de defender-bandido. E é assim que se pretende poupar o caro e ineficaz Judiciário, com uma multidão de 140 mil funcionários, para extinguir o foro especial somente dos políticos, o que significará a intocabilidade de um poder e a manutenção da impunidade. Não aplaudo esta farsa. Vão indo que eu não vou.

Antídoto
“O Livro dos Insultos”, de H.L. Mencken, fundamental em tempos de semideuses que oprimem meros humanos, da patrulha que nos quer rotulados, de santos que nos entendiam, de perfeitos que nos humilham. Em tempos da feijoada light, da cerveja sem álcool, do café sem cafeína, da vida extraído o nervo, da água puríssima que adoece quem a bebe, enfim dessas coisas que prometem nos levar sãos e salvos para o túmulo. Em tempos da autopiedade que faz tantos acharem que o mundo lhes deve tudo, da coragem dos bandos para odiar em nome do bem, da vergonha ou medo de amar. Em suma, antídoto para esses tempos chatíssimos. Estou lendo pela terceira vez e recomendo vivamente. Tradução e prefácio do excelente Ruy Castro.

sábado, 25 de novembro de 2017

"Minhas providências para meu dia final " ... / Valentina de Botas


Valentina de Botas: Ingmar Bergman e a minha cabeleireira

Se eu puder fazer um último pedido como diz a tradição, pedirei que a coisa seja leve e que não desmanche meu penteado


Mas não estamos agonizando desde que nascemos para viver nossas mil mortes? Abandonamos o que não somos, deixando para trás mais um eu que não vingou. Foi o que pensei quando me perguntaram se tenho medo da morte e o que faria se soubesse, hoje, que este é meu último dia de vida. Falar da morte é mórbido demais para meu gosto. O assunto não me atrai. Não penso nisso e a vida nunca me deixa sem assunto, embora me deixe sem palavras tantas vezes. A idade vem chegando e vemos nosso corpo nos abandonando; para algumas pessoas, a lucidez se depura, para outras, ela se extingue. Como Chico Anísio, não tenho medo, mas pena.
 Não é por nada, não aspiro a ser exceção no ciclo natural de nascer-morrer e sei, claro, que um dia acontecerá – e tudo bem, pois a imortalidade nos mataria de certo modo –, só que, apesar de não ser nenhum broto (e usar essa palavra o comprova), a ampulheta trapaceira e implacável estaria me roubando dezenas de anos dos 100 que tramei viver, como alguns parentes. No centésimo aniversário de uma tia-avó, perguntei-lhe o que fazer para chegar lúcida e saudável (o único modo a ser considerado) àquela idade. Nada, minha filha. Mas ela se foi logo depois e não tenho como lhe perguntar se estou fazendo nada direitinho.
Tá, sem embromação: haveria chegado o último dos meus dias consumados na agenda do Absoluto. O que eu faria? Primeiro, tentar lidar com o atordoamento da notícia. Em alguns segundos, penso no amor. Tudo e todos que amei porque os amantes estão sempre certos (ou vocês nunca ouviram “Amanda Amante”, do Roberto Carlos?) e o que se opõe ao amor parece torná-lo longevo, resistente, teimoso, imortal até. Contudo, penso no amor fraternal também. Talvez usar isso como álibi. Não, a coisa é inegociável. Num mundo ríspido, o amor é emoliente e os amantes se buscam e resgatam um ao outro do fundo do desencanto, sempre aspirando pelo presente vivido a cada instante. Amar é este exercício de viver o presente – e, sem ser pouco, o presente é tudo o que se tem.
O que fazer? Pensei em Deus, em mim e o vazio entre mim e Ele que tentei vencer com uma fé verdadeira, aquela com porções de dúvidas. Lembrei de “O Sétimo Selo”, a obra-prima que acaba de completar 60 anos. Como poucos, Bergman palmilhou esse território do vazio e da dúvida. Embora com passagens de comicidade improvável, como quando a Morte serra um galho de árvore para levar um artista consigo, o filme é grandiloquente demais para quem está lidando com o fato de que terá os olhos amarelos da Morte borrando o último crepúsculo a ser testemunhado e, diferentemente do cavaleiro medieval, Antonius Block, não jogo xadrez tão bem. 
 Nesse jogo, Antonius tenta convencer a Morte de que os homens merecem viver mesmo naquela idade média em que alguma muito ruim sempre estava acontecendo a alguém muito feio. E era fácil ser feio num tempo em que se morria velho aos 30 anos. No jogo de xadrez, o homem tenta lidar com a polpa bruta, a incognoscível, na figuração mais famosa da morte no cinema. Bergman é ainda mais brilhante quando aborda outros vazios e solidões: aqueles entre pais e filhos, entre irmãos, homens e mulheres. Nas relações humanas é que as fraturas internas de cada indivíduo aparecem em feridas que, tantas vezes, são a ponte instável, mas o único meio possível de aproximação. Exemplificam isso a magnitude de “Fanny e Alexander” e a sublime corrosão de “Cenas de um Casamento”.
 Abandono Bergman e vasculho na memória o que disseram poetas, filósofos, etc. Desisto porque ninguém vai morrer a minha morte nem viver meu último dia, portanto tem de ser do meu jeito e, então, constato: não sei. Provavelmente não teria tempo de me refazer do atordoamento da notícia, nem para consertar erros, buscar perdões nem oferecê-los – o que, ademais, perderia toda a importância, se é que ainda resetasse alguma. Dizer certas verdades para uns e outros? Melhor não, pois posso ouvir verdades de que nem desconfiava ou, pior, desconfiava, sim, e ter de partir para a eternidade com um barulho desses. Deixa quieto. Afinal, tudo se relativiza; certezas – aquelas duas ou três remanescentes que eu escondia atrás da lata de biscoito na última prateleira do armário da cozinha – perdem os ossos. Beijar minha filha e dizer-lhe que a amo? Faço isso todos os dias. Contar a ela? Isso me mataria. Contar à minha mãe? Isso a mataria.
Concluo que encaminharia providências práticas, como separar documentos, quanto ao caráter pragmático da vida que segue para os que ficam e, então, decido reagir: vou ligar para a Soraia, minha cabeleireira há mais de 20 anos, e suplicar por um horário assim, em cima da hora. Se a minha urgência não for urgente, não sei o que seria. Fazer as unhas, vestir minha melhor roupa como num rito, abrir aquele vinho guardado na prateleira debaixo da pia, que esperava a ocasião especial que tardou até se tornar desnecessária. Pois eis aí a ocasião: não esperaria sóbria por tal visita intrusa e, enquanto procuro o saca-rolhas como quem busca o passaporte para uma viagem, entoarei minha última oração – fazendo dela mais um lugar do que uma ação – em agradecimento a Deus por tudo, lembrando a Ele que fui o mais fiel que pude à vida entendida como dádiva, eu a celebrei no pouco e no muito; reconheço que a primeira parte foi pedagógica, mas admito que gostei mais da segunda. Agradecerei sobretudo por aquela garrafa de vinho que a Providência adiou. 
Tenho modos, sei que bons anfitriões não recebem visita embriagados, então beberei o bastante somente para amolecer minhas eventuais resistências, simular serenidade e tornar a visita interessante. Se eu puder fazer um último pedido como diz a tradição, pedirei que a coisa seja leve e que não desmanche meu penteado.

sábado, 8 de julho de 2017

!"Certezas escondidas atrás da lata de biscoito " / Valentina de Botas

Valentina de Botas: Flechas contra a Lava Jato e outras notas

O problema não é investigar ou não investigar este ou aquele político, mas decidir contra a lei

Comecemos por onde? Pelo começo não dá mais, pois Janoesley, marqueteiro do PT, impõe a narrativa fraudulenta que deslocou para o governo Temer a gênese e o comando da roubalheira+incompetência que trouxe o país a um momento tão perigoso. Uma espécie de começo posposto pelos fatos borrados, pelo pensamento aplainado. O fim, não sabemos como será, então fiquemos com o impreciso momento presente: Geddel é investigado por atos cometidos no governo Dilma Rousseff e também foi ministro de Lula. Ah, e isso muda o quê? Isso desentorta a informação, torna honesta a crônica dos fatos, ilumina o centro da cena e oferece ao público que assiste abestalhado a coisa como a coisa é. Na chamada grande imprensa, os poucos que fazem tais lembretes sustentam a esperança de o debate ainda respirar, mesmo que acabem agredidos pelo berrante avisando que o combate é a pessoas: o combate ao crime se tornou coadjuvante.

Nauseado-parcial da república
No programa Conexão Roberto D’Ávila, o procurador-parcial da república disse que sentiu náuseas ao ouvir a gravação ilegal da conversa imprópria entre Joesley e Temer. Mas não por ela ser ilegal. Somente com autorização do STF o presidente de qualquer poder da república pode ser gravado. Por isso Teori Zavascki determinou a Sérgio Moro o descarte dos áudios gravados de Lula, aquele em que Dilma foi pega falando do Bessias. Ao contrário de Zavascki, Janot não fica nauseado com uma ilegalidade para combater a ilegalidade que lhe dá náusea. O nauseado-parcial da república não sentiu nada ao ouvir Dilma gravada falando sobre o “papel que o Bessias tá levando, viu, Lula?”; nem com a gravação da tentativa de Mercadante, então ministro de Dilma, de comprar o silêncio do senador Delcídio do Amaral que estava preso; nem quando Monica Moura contou do endereço de e-mail clandestino pelo qual Dilma avisava ao casal marqueteiro os passos da Lava Jato. O que falta para desmascarar o nauseado-parcial da república que tem um antiemético natural para as ilegalidades petistas?

Flechas contra a Lava Jato
“Enquanto houver bambu, lá vai flecha”. Ótimo, que os merecidos alvos sejam alvejados! Mas o súbito arqueiro poderia contar onde guardava tanto bambu enquanto Dilma Rousseff era presidente. Só Pasadena era um extenso bambual e o arqueiro, talvez se imaginando no lugar trágico de Sofia a fazer uma escolha entre poupar Dilma e poupar Dilma, resolveu poupar Dilma. Cumprir a lei não lhe pareceu estímulo suficiente para mandar algumas flechas contra alvos escancarados em vigarices sem fim. Assim, estava o arqueiro posto em sossego, sem ter enxergado um calheiros ou um mercadante a um palmo do arco, quando Joesley Batista apareceu. Alvo fulgurante para flechas flamejantes parido no tremendo bambual cultivado por Lula e Dilma, Joelsey as desviou para Temer, alvo menor, mas isso se arranja transformando-o no chefe da bambuzada. O arqueiro se empolgou para nova escolha de Sofia:  basear uma denúncia contra Temer numa prova ilegal ou basear uma denúncia contra Temer numa prova ilegal? Decidiu basear uma denúncia contra Temer numa prova ilegal. O problema não é investigar ou não investigar este ou aquele político, mas decidir contra a lei. Deixando Joesley livre e mais rico, apresentando uma denúncia contra Temer cujo próprio teor admite a inexistência de provas, Janot talvez não consiga derrubar o presidente, mas cumpriu metade da meta ao desidratá-lo antes das reformas que não serão como seriam e tirou Lula da cova política. As flechas do arqueiro lambão atingiram o país e a própria Lava Jato.

A grandeza de Fernando Henrique Cardoso
FHC quer um gesto de grandeza do presidente e pede que renuncie para abater a Constituição antecipando-se eleições diretas. Não tenho certeza, talvez fosse melhor Temer renunciar, nem por grandeza, e sim porque ou bem um governante governa ou bem se defende, mas que sua eventual renúncia preserve os ditames constitucionais. A fala de FHC é só mais uma tristeza nestes dias tristes contemplar a falta de coragem do nosso último estadista vivo para convidar a alguma sobriedade e ao respeito à Constituição. Ele quer grandeza de Temer. Compreendo. Talvez por passar tanto tempo considerando Dilma Rousseff honrada, FHC não saiba ao certo o que fez da própria grandeza, restando-lhe apelar à alheia.

O que a Harvard Law School não ensina
Aécio e Temer têm foro especial, não estão, portanto, na “jurisdição” de Deltan Dallagnol. Mas o dono de currículo brilhante, lustrado na Havard Law School, militante das redes sociais e procurador do MFP nas horas vagas, tem dedicado posts à prisão/investigação do senador e do presidente. Sobre Lula, que está na jurisdição do blogueiro, nada. Se entendesse como funciona uma democracia, silenciaria sobre quaisquer investigados. A tagarelice panfletária do blogueiro e o fanatismo do militante conspurcam as funções institucionais do procurador num proselitismo incabível que pode melar-a-Lava-Jato; no mínimo, isso toma o tempo e/ou a atenção na busca de provas para condenar a bandidagem. Dallagnol parece ignorar o que os brasileiros imunes à idolatria ao MPF/LJ já sabemos: power-point e politicagem não mandam ninguém para a cadeia.

Um dos meus defeitos
Pensei em comentar o fato de o PSDB ameaçar outra vez abandonar a base do governo. Mas um defeito meu impede que me ocupe desses tucanos: não tenho paciência para maricas.

É a economia, fanáticos
Frustrante para grande parte da grande imprensa anunciar os pequenos sinais positivos da economia – por serem positivos, não por serem pequenos. Apesar do perigoso fundamentalismo de uma porção patética da Lava Jato, apesar do fundamentalismo à esquerda e à direita, apesar das flechas, apesar do berrante tangendo a manada; e o Brasil que presta e trabalha responde bem, mostrando alguma imunidade contra quem se elegeu para o arruinar e contra os que se autoatribuíram a autoritária missão de o salvar.  

Certezas escondidas atrás da lata de biscoito
Como todo indivíduo é discutível, tenho cá meus fatores de indeterminação, mas tento me apegar a algumas certezas na vida, umas três ou quatro – não sei com certeza – que escondo atrás da lata de biscoito na última prateleira do armário da cozinha. Eu as protejo de mim mesma como a noiva esconde do noivo o vestido de casamento. Uma delas é que no mundo há belezas, o mistério é saber tocá-las e por elas deixar-se tocar. Talvez, meu eventual leitor, você pense que estou falando de coisas grandiosas, profundas ou definitivas. Desculpe, não tenho esse alcance. Falo de alguém que o tem, aliás de um texto dele: a resenha de Augusto Nunes, publicada na atual edição da Veja, de Oswaldo Aranha – Uma Fotobiografia, de Pedro Corrêa do Lago. Nestes nossos dias em que a era da covardia vestida de insensatez parece suceder a era da mediocridade sem que esta seja superada, o texto confirma a impressão. Nunes garante que o livro está à altura do grande Oswaldo Aranha, vou conferir assim que puder. A resenha está e é luminosa negação do desencanto que nos tornamos ao mesmo tempo em que o desvela. Só lendo. Toque esta beleza e deixe-se tocar.

terça-feira, 28 de março de 2017

Imperfeições de uma marcha de protestos... /

Valentina de Botas: 

Vinhetas de outono

Brasileiros marcharam por outras vinhetas numa pauta caleidoscópica e os adeptos da súcia tentarão artificializar uma crise que vulnerabilize o governo

No fim de uma dessas adoráveis manhãs inaugurais do outono de luz singular, eu caminhava pela região da Paulista, ia almoçar com amigos que trabalham numa editora para ver a possibilidade de um trabalho, quando ouvi no rádio de um carro que passava acordes únicos, primorosos. A inesperada vinheta de outono fala de um que garoto vivia com a mãe num casebre miserável nos cafundós da Louisiana, era quase analfabeto e tocava guitarra diabolicamente; a mãe profetizou: você será o líder de uma banda, as pessoas virão de longe para te ouvir e teu nome brilhará no letreiro –  Johnny B. Goode esta noite.
No domingo, muitos brasileiros marchariam por outras vinhetas numa pauta caleidoscópica: defesa da Lava Jato, não à lista fechada e ao financiamento público de campanha, fim do foro privilegiado, repúdio à mal denominada anistia do caixa 2, alguma coisa que não entendi sobre o estatuto do desarmamento, reformas “justas” que acabem com “privilégios”. Me parecia contraproducente ir às ruas com essa pauta inconsistente e receava que os adeptos da súcia se aproveitariam da eletricidade para artificializar uma crise que os infle e vulnerabilize o governo que, para eles, sempre será malvado ou ilegítimo se não for um governo deles.
O primeiro sucesso de Chuck Berry, o sensacional construtor do rock falecido há alguns dias e cujo lume reluz em todo pop que presta, não é a minha música preferida dele, mas é ela que navega longe nas pequenas Voyager 1 e 2. Em 1977, elas partiram levando, a quem interessar possam, registros com saudações dos humanos em várias línguas; sons da erupção de um vulcão, do mar e das vozes de animais; e músicas. Lançar ao espaço amostras do que somos testifica nossa solidão existencial na fantasia de não apenas sermos encontrados, mas também compreendidos; pois não é a incompreensão a forma absoluta de solidão?
Essa polarização que cindiu o país atinge as instituições perigosamente, vê-se pela arenga de Gilmar Mendes e Rodrigo Janot. Perante a estridência do debate no qual só não se ouve a razão, simpatizo com a coragem de Mendes em iluminar aspectos relevantes disso-tudo-que-está-aí atropelados pela tônica cega de terra arrasada. Desta vez, abordou o vazamento da lista do Janot, cometido por procuradores obrigados por lei ao sigilo funcional. Ora, o procurador-geral anulara a delação de Leo Pinheiro intempestivamente, pretextando o vazamento havido, e Mendes levantou a possibilidade de anular algumas provas numa situação similar.  Deltan Dallagnol – que identificou o comandante máximo da organização criminosa, deixa-o solto e vem dizer comodamente que “o maior risco à Lava Jato é a sociedade se acomodar” – entrou de sola declarando que a anulação “não tem pé nem cabeça”, sem mostrar onde estão o pé e a cabeça do descarte da delação de Leozinho.
A quem prefere se aproximar da realidade por lente mais simplista e passou a tachar Mendes de tucano e/ou porta-voz dos delatados, lembro que o então vice-presidente do TSE demonstrara a Rodrigo Janot que indícios ligando Dilma ao que ela estava umbilicalmente ligada exigiam uma auditoria nas contas da campanha de 2014. O procurador-geral, que àquela época “não fugia dos círculos de comensais que cortejam desavergonhadamente o poder”, preferiu jantar com Dilma Rousseff em agosto de 2015, desprezou a recomendação de Mendes e exortou “os derrotados a aceitarem o resultado das urnas”. Aparentemente, concluíra que Mendes e os investigadores da Lava Jato tinham disputado as eleições. Despreocupado com “a decrepitude moral” de não investigar o agora eviscerado mecanismo inédito pelo qual o PT nos roubou para pagar a Odebrecht para que ela pagasse a reeleição, Janot acusa Mendes do que ele mesmo fizera. O chilique na desproporcional resposta ao presidente do TSE liquida a razão que o procurador-geral nunca teve, mas também avisa que a coisa já deu: ambos saibam que respeito é bom e os brasileiros gostamos, nós que lhes pagamos o salário não precisamos ser expostos a mais essa baixaria institucional que só ajuda a bandidagem. Tenham algum decoro, senhores, vão trabalhar!
Meus amigos se desculparam por não terem nada para mim, brindei ao outono e àquela luz, a Chuck Berry e ao país. Dois deles iriam à manifestação, acham que político-é-tudo-igual e estão revoltados com a possibilidade da lista fechada. Mas se são-todos-iguais, tanto faz lista fechada ou aberta, certo? A renovação política será progressiva e consistente se fizermos a reforma política-eleitoral com voto distrital e financiamento privado. Todos os delatados devem ser investigados e responder pelo que fizeram, mas lamentarei se se provar algo contra os tucanos citados porque os considero os melhores administradores na história recente.
Por favor, sem essa de que Fernando Henrique Cardoso preparou o terreno para a escória petista. Num trabalho hercúleo (leia os “Diários da Presidência”), FHC preparou o país para a modernidade. Os crimes de Lula e Dilma são gozosa escolha de Lula e Dilma; a percepção contrária é miragem que iguala quem ergueu o Brasil a quem o afundou. Me pergunto quando a lucidez a dissolverá demonstrando que a ocasião não faz o ladrão, mas este é que a faz; que o criador e a criatura abjetos delinquem independentemente da ocasião. Ora, a dupla abjeta instalava o petrolão enquanto se investigava o mensalão. Teria a investigação preparado terreno para o petrolão? Francamente.
Repudio o financiamento público de campanha, mas o privado está vetado pela cegueira ideologizada do STF. Quanto à lista ser fechada ou aberta, cabe perguntar qual a cor do cavalo branco de Napoleão. A lista, aberta ou fechada, será sempre a dos caciques. Numa, eles decidem os candidatos que poderão ser votados, noutra também. Ah, mas na aberta o eleitor escolhe diretamente em quem votar. É? Pelo coeficiente eleitoral, só 34 dos 511 deputados federais se elegeram com votos próprios, os outros 477 não seduziram o eleitor, mas os campeões de voto de cada partido cuja votação ultrapassou o coeficiente têm o excedente transferido aos correligionários e até para partidos coligados. Assim, elegemos, com a lista aberta, candidatos e partidos nos quais não votamos. Portanto, a lista fechada, que traz, sim, o nome dos candidatos – ao contrário do que dizem os incendiários da desinformação – e na ordem em que os votos do partido serão distribuídos, confirma o que a aberta não evita: a cor do cavalo branco de Napoleão é branca.
Importa, sim, a defesa da Lava Jato porque, depois de Lula e Dilma agirem objetivamente para obstruir a justiça, ambos permanecem chafurdando na liberdade – e nem têm foro privilegiado! –, assim como o bandido-com-blog Eduardo Guimarães que admitiu a Sérgio Moro ter feito o mesmo. Será que a  lei está prevalecendo ao deixar soltos os comandantes da nossa ruína tramando voltar para concluir o desmanche do país? Eis a ameaça à Lava Jato, ao que ela nos deu e à trilha árdua que começamos a abrir para longe do abismo a que o PT nos trouxe.
Na despedida, confirmei que não iria à manifestação. O que você vai fazer, quanto a trabalho, querida Valentina? Johnny B. Goode costumava se sentar debaixo de uma árvore perto da linha do trem para tocar guitarra e os passantes se admiravam – esse garoto toca mesmo. Sigo tocando minha guitarra, sem sonhar com o estrelato como Johnny e, enquanto é outono, aprecio esta luz e a minha música preferida do gênio que foi morar nas estrelas. Quer ouvir? 

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

"Fantasmas murmuram nos restos da escuridão" / Valentina de Botas

Valentina de Botas: 

Fantasmas murmuram nos restos da escuridão

A falta de transparência dos governos do PT foi só mais um sintoma do autoritarismo de Lula e Dilma, convictos de que não deviam satisfações aos brasileiros

No final do ano passado, o governo de Michel Temer suspendeu acertadamente a licitação de alguns itens que abasteceriam a dispensa do avião presidencial, entre eles o sorvete Häagen-Dasz, que fez sucesso mesmo na imprensa séria e levou a esgotosfera àquele gozo primitivo de bárbaros atacando aldeias. Me lembrei de Nelson Rodrigues – “aprendi a ser o máximo possível de mim mesmo” – e fiquei pensando se agora, desperta esta atenção ao que o governo anda fazendo, aprendemos a ser o máximo possível de nós mesmos. Receio que não: a lista do que seria servido no avião presidencial era detalhada, mas, entre o êxtase deformado da esgotosfera e a indignação (um tanto exagerada) do jornalismo independente quanto aos gastos alegadamente supérfluos quando é terminal o estado das contas públicas, esquecemos de celebrar a transparência da divulgação e de reafirmar mais essa diferença entre o governo atual e o regime aberrante legal e tardiamente desposto.
É importante reconhecer a diferença muito menos pelo elogio ao ato elogiável do governo e muito mais para que não a subestimemos e não a percamos no restabelecimento da luz. Talvez essa tardança na escuridão do imundo claustro petista explique menos o incômodo com a luz e mais a incapacidade de nossos olhos reconhecerem presenças inéditas na paisagem iluminada. Ah, Valentina, você está defendendo o governo. E daí? Defendo o que nele é defensável, ou não é nisto que se constitui ser o máximo possível de nós mesmos – cultivar o que presta e dar um jeito no que não presta? Na esfera pública, isso significa distinguir as qualidades de uma administração para que elas permaneçam como memória e aprendizado. Os defeitos também. Nesse sentido, tudo forma um só tesouro que beneficiará a nação se ela souber preservá-lo separando umas e outros. No âmbito privado, talvez qualidades e defeitos sejam indissociáveis, e não dá para negar que certas qualidades alheias são insuportáveis, enquanto alguns defeitos são irresistíveis.
A falta de transparência dos governos petistas foi só mais um sintoma do autoritarismo de Lula e Dilma, convictos de que não deviam satisfações aos brasileiros. Neste episódio com Lina Vieira, a falta de transparência é só um esgar na face aberrante daquele tempo. Hoje, os mesmos jornalistas que publicam a lista da dispensa do “avião de Temer” em tom de denúncia e outras vozes que acusam a compra do Häangen-Dazs jamais cobraram a divulgação das despesas dos cartões corporativos de Rosemary Noronha, por exemplo, e ocuparam-se mais com o “sorvete do Temer” do que com o banimento das câmaras pelo regime delinquente tardiamente deposto.
São setores da sociedade brasileira que ainda buscam o estabelecimento no Brasil do socialismo petista em que integrantes, simpatizantes ou patrocinadores voluntários do regime terão por meio do Estado, a exemplo do governador Fernando Pimentel, o próprio helicóptero para buscar os filhos que beberam demais nas baladas. Até lá, no que depender dos que ainda gritam “golpe” ou “fora, Temer” e continuam calados quanto à delinquência lulopetista que nos desgraçou, o presidente não poderá sequer tomar um ChicaBon simplesinho.
É fundamental que o governante seja importunado pela sociedade, é um direito e mesmo uma obrigação que ela cobre dele eficiência e correção, o que só poderá ser feito com mais acerto se o governo for transparente. Já imaginou se tivesse sido assim nos últimos 13 anos? Com o banimento da transparência e das câmaras por conseguinte, só nos resta a imaginação e não é difícil imaginar que a noite lamaçenta lulopetista teria se resumido ao primeiro mandato de Lula porque o pântano em formação não resistiria à luz do jornalismo independente; da sociedade alerta em relação ao governante e não a si mesma na porção dissidente àquele governante delinquente que, para desidratar essa oposição real, investiu na odiosa clivagem dela mesma em “eles x nós”; das instituições livres do aparelhamento.
Das despesas com a comida do avião presidencial até os empréstimos indevidamente sigilosos do BNDES aos comparsas domésticos e internacionais da súcia, passando pelas reuniões clandestinas de um regime que fez da delinquência o programa de governo, a opacidade da gestão petista só não é clara para quem acha mesmo que um governante não pode comprar determinado sorvete, mas um outro pode tanto se reunir clandestinamente com uma autoridade para constrangê-la a beneficiar um comparsa, quanto esconder que houve a reunião, numa cascata de crimes em que se somam o crime e a ocultação das provas, como Dilma Rousseff fez com Lina Vieira.
Depois de o petismo ruir sob a própria canalhice, as ruínas do claustro sujo ainda querem separar o Brasil do máximo possível que o país pode fazer de si mesmo e resistir a isso inclui lembrar que, hoje, não ouvimos mais o presidente da república acusar jornalistas independentes de cumprirem sua obrigação ou denunciar indeterminados “eles”. Claro que isso não é o melhor que podemos fazer, mas é muito melhor do que os resquícios da escuridão querem ocultar tornando obrigatória a ocultação de qualidades do governo atual como faziam obrigatória a camuflagem das deformações do anterior. Os restos da escuridão, ainda infiltrados nos nossos dias, ambientam os murmúrios de fantasmas fantasiados com andrajos de antigolpistas do golpe inexistente, de protetores da classe pobre esbulhada até em suas aposentadorias, de defensores de valores progressistas por estratégias fascistoides, todos zumbis abatidos pela luz de outro Brasil que sobreviveu.
Sobrevivemos ao regime petista e, embora sobreviver não seja tudo, é muita coisa e talvez tenha sido o máximo possível de nós mesmos naquela escuridão opaca. Imagine agora, com a escuridão translúcida.