No final do ano passado, o governo de Michel Temer suspendeu acertadamente a licitação de alguns itens que abasteceriam a dispensa do avião presidencial, entre eles o sorvete Häagen-Dasz, que fez sucesso mesmo na imprensa séria e levou a esgotosfera àquele gozo primitivo de bárbaros atacando aldeias. Me lembrei de Nelson Rodrigues – “aprendi a ser o máximo possível de mim mesmo” – e fiquei pensando se agora, desperta esta atenção ao que o governo anda fazendo, aprendemos a ser o máximo possível de nós mesmos. Receio que não: a lista do que seria servido no avião presidencial era detalhada, mas, entre o êxtase deformado da esgotosfera e a indignação (um tanto exagerada) do jornalismo independente quanto aos gastos alegadamente supérfluos quando é terminal o estado das contas públicas, esquecemos de celebrar a transparência da divulgação e de reafirmar mais essa diferença entre o governo atual e o regime aberrante legal e tardiamente desposto.
É importante reconhecer a diferença muito menos pelo elogio ao ato elogiável do governo e muito mais para que não a subestimemos e não a percamos no restabelecimento da luz. Talvez essa tardança na escuridão do imundo claustro petista explique menos o incômodo com a luz e mais a incapacidade de nossos olhos reconhecerem presenças inéditas na paisagem iluminada. Ah, Valentina, você está defendendo o governo. E daí? Defendo o que nele é defensável, ou não é nisto que se constitui ser o máximo possível de nós mesmos – cultivar o que presta e dar um jeito no que não presta? Na esfera pública, isso significa distinguir as qualidades de uma administração para que elas permaneçam como memória e aprendizado. Os defeitos também. Nesse sentido, tudo forma um só tesouro que beneficiará a nação se ela souber preservá-lo separando umas e outros. No âmbito privado, talvez qualidades e defeitos sejam indissociáveis, e não dá para negar que certas qualidades alheias são insuportáveis, enquanto alguns defeitos são irresistíveis.
A falta de transparência dos governos petistas foi só mais um sintoma do autoritarismo de Lula e Dilma, convictos de que não deviam satisfações aos brasileiros. Neste episódio com Lina Vieira, a falta de transparência é só um esgar na face aberrante daquele tempo. Hoje, os mesmos jornalistas que publicam a lista da dispensa do “avião de Temer” em tom de denúncia e outras vozes que acusam a compra do Häangen-Dazs jamais cobraram a divulgação das despesas dos cartões corporativos de Rosemary Noronha, por exemplo, e ocuparam-se mais com o “sorvete do Temer” do que com o banimento das câmaras pelo regime delinquente tardiamente deposto.
São setores da sociedade brasileira que ainda buscam o estabelecimento no Brasil do socialismo petista em que integrantes, simpatizantes ou patrocinadores voluntários do regime terão por meio do Estado, a exemplo do governador Fernando Pimentel, o próprio helicóptero para buscar os filhos que beberam demais nas baladas. Até lá, no que depender dos que ainda gritam “golpe” ou “fora, Temer” e continuam calados quanto à delinquência lulopetista que nos desgraçou, o presidente não poderá sequer tomar um ChicaBon simplesinho.
É fundamental que o governante seja importunado pela sociedade, é um direito e mesmo uma obrigação que ela cobre dele eficiência e correção, o que só poderá ser feito com mais acerto se o governo for transparente. Já imaginou se tivesse sido assim nos últimos 13 anos? Com o banimento da transparência e das câmaras por conseguinte, só nos resta a imaginação e não é difícil imaginar que a noite lamaçenta lulopetista teria se resumido ao primeiro mandato de Lula porque o pântano em formação não resistiria à luz do jornalismo independente; da sociedade alerta em relação ao governante e não a si mesma na porção dissidente àquele governante delinquente que, para desidratar essa oposição real, investiu na odiosa clivagem dela mesma em “eles x nós”; das instituições livres do aparelhamento.
Das despesas com a comida do avião presidencial até os empréstimos indevidamente sigilosos do BNDES aos comparsas domésticos e internacionais da súcia, passando pelas reuniões clandestinas de um regime que fez da delinquência o programa de governo, a opacidade da gestão petista só não é clara para quem acha mesmo que um governante não pode comprar determinado sorvete, mas um outro pode tanto se reunir clandestinamente com uma autoridade para constrangê-la a beneficiar um comparsa, quanto esconder que houve a reunião, numa cascata de crimes em que se somam o crime e a ocultação das provas, como Dilma Rousseff fez com Lina Vieira.
Depois de o petismo ruir sob a própria canalhice, as ruínas do claustro sujo ainda querem separar o Brasil do máximo possível que o país pode fazer de si mesmo e resistir a isso inclui lembrar que, hoje, não ouvimos mais o presidente da república acusar jornalistas independentes de cumprirem sua obrigação ou denunciar indeterminados “eles”. Claro que isso não é o melhor que podemos fazer, mas é muito melhor do que os resquícios da escuridão querem ocultar tornando obrigatória a ocultação de qualidades do governo atual como faziam obrigatória a camuflagem das deformações do anterior. Os restos da escuridão, ainda infiltrados nos nossos dias, ambientam os murmúrios de fantasmas fantasiados com andrajos de antigolpistas do golpe inexistente, de protetores da classe pobre esbulhada até em suas aposentadorias, de defensores de valores progressistas por estratégias fascistoides, todos zumbis abatidos pela luz de outro Brasil que sobreviveu.
Sobrevivemos ao regime petista e, embora sobreviver não seja tudo, é muita coisa e talvez tenha sido o máximo possível de nós mesmos naquela escuridão opaca. Imagine agora, com a escuridão translúcida.