Sob o eco da repressão militar, o poder civil se retrai na luta contra o crime
É fato testado, comprovado (e lamentado) que nenhum dos governos desde a reinstituição do poder civil no país enfrentou a questão da segurança pública. Por motivos variados: covardia, indiferença, cálculo político e, no caso das autoridades oriundas da esquerda, constrangimento para o exercício do uso da força do Estado contra o crime. Princípio equivocado de rejeição a qualquer tipo de repressão.
Uma visão herdada da ditadura. Obviamente torta, pois não leva em conta que a defesa da liberdade e dos direitos do cidadão implica a preservação da ordem como fator essencial da garantia de ir e vir sem o risco permanente e iminente de morrer. Tal inépcia nos levou ao descalabro atual.
O caos é nacional, mas o Rio de Janeiro viveu peculiaridades. Entre elas, a mais grave foi o acolhimento da bandidagem como parte do cenário de glamour e maravilha da cidade. Conto duas histórias que vi de perto: uma na década dos 90, a outra anos antes de consolidada a redemocratização no Brasil, em 1985. Nenhuma delas de violência pessoal, embora ambas conceitualmente violentas do ponto de vista geral.
Em 31 de dezembro de 1985, o traficante José Carlos dos Reis Encina (chamado “Escadinha”) foi resgatado do presídio da Ilha Grande por comparsas num helicóptero. Na hora, a fuga foi celebrada com aplausos e muito regozijo na redação do Jornal do Brasil, composta na quase totalidade do “pessoal Zona Sul”, os descolados, como um grande feito. A polícia, naquela concepção, era o inimigo a ser combatido e, como foi o caso, ludibriado.
A comemoração assustava a quem não concordava e, por isso, era classificado como “de direita”. Aos de “esquerda” parecia normal, tanto que “Chileno”, pai do bandido Escadinha, era, em 1986, festejado cabo eleitoral do então candidato ao governo do Rio Fernando Gabeira, hoje uma das cabeças mais lúcidas sobre o Brasil e suas novas circunstâncias; tanto que saiu do PT ainda no primeiro governo, quando Luiz Inácio da Silva estava no auge.
Mais de uma década depois, já no governo Fernando Henrique, numa conversa com o general Alberto Cardoso, ele, então chefe do Gabinete de Segurança da Presidência, alertou sobre a existência de “territórios dominados” pelo tráfico no Rio. Isso há quase vinte anos.
Publiquei a conversa com o general, e o mundo caiu. Marcello Alencar reagiu indignado, exigiu do presidente uma atitude, e o general me ligou constrangido: “Mantenho o que disse, mas vou precisar desmentir por exigência do governador”.
Forçado pela circunstância do cargo, o general desmentiu, e a vida prosseguiu. Levou-nos, rendidos, ao lugar de reféns da bandidagem em que hoje nos encontramos. Ambiente do qual qualquer candidato(a) a presidente na próxima eleição está obrigado(a) desde já a dizer como pretende nos livrar. De modo rápido e de maneira nada rasteira, a fim de nos assegurar uma necessária e indispensável consistência no ato coletivo de resistência.
Confira o Tweet de @dw_brasil: https://twitter.com/dw_brasil/status/966726546294796294?ref_src=twcamp%5Eshare%7Ctwsrc%5Eandroid%7Ctwgr%5Edefault%7Ctwcon%5E7090%7Ctwterm%5E2
O debate sobre a China nas capitais no Ocidente está passando por uma transformação sem precedentes. Os otimistas com as consequências da ascensão da China — os chamados panda huggers, que dominaram o debate público desde a década de 1990 — estão perdendo espaço para os China hawks,para os quais o Ocidente precisa adotar uma estratégia de defesa muito mais dura contra a crescente influência chinesa.
Duas publicações recentes simbolizam essa mudança. Na Alemanha, o relatórioAuthoritarian Advance: Responding to China’s Growing Political Influence in Europe ("Avanço Autoritário: Respondendo à Influência Política Crescente da China na Europa", em tradução livre), publicado pela MERICS e pela GPPi, dois importantes think tanks em Berlim, argumenta que as tentativas de Pequim de influenciar a política europeia e a promoção dos ideais autoritários chineses"representam um desafio significativo para a democracia liberal, bem como os valores e interesses da Europa".
Nos Estados Unidos, Kurt Campbell e Ely Ratner, dois ex-diplomatas de alto escalão, publicaram na revista Foreign Affairs o artigo The China Reckoning: How Beijing Defied American Expectations ("Fazendo um balanço: como Pequim desafiou as expectativas dos EUA", em tradução livre). Nele, os autores argumentam que a política dos EUA em relação à China desde a Segunda Guerra Mundial foi irremediavelmente ingênua e que Pequim acabou levando vantagem sobre Washington.
Na Austrália, o governo endureceu as regras para investimentos estrangeiros em terras agrícolas e infraestrutura energética, em resposta à crescente influência econômica chinesa e à divulgação de dados sobre doações eleitorais de empresários ligados ao governo chinês antes das eleições em 2016. Em um gesto dramático, o primeiro-ministro australiano criticou a China (o maior parceiro comercial da Austrália e o maior investidor no país) por sua interferência. Na televisão australiana, invocou, em mandarim, um famoso slogan chinês associado a Mao Tse Tung para declarar que o povo australiano "se levantará" contra a intromissão em seus assuntos domésticos. Veremos discursos e medidas parecidas de governos no Ocidente ao longo dos próximos anos, como o banimento de financiamento político estrangeiro, aumento do monitoramento de investimentos chineses(sobretudo em áreas sensíveis, como infraestrutura e mídia), e maior ênfase em cibersegurança para evitar ingerência externa, como visto nos Estados Unidos durante as eleições de 2016.
O crescente papel econômico da China também é uma realidade irrefutável no Brasil. Dependemos cada vez mais da demanda chinesa de commodities, e a China em breve se tornará o maior investidor no Brasil, dando-lhe influência econômica e política sem precedentes. O Brasil tem pouca escolha além de operar dentro dessas restrições estruturais. A questão não é aceitar ou rejeitar essa realidade de crescente dependência, mas como gerenciá-la para que ela beneficie os nossos interesses estratégicos.
As crescentes tensões entre China e o Ocidente terão um grande impacto sobre a ordem global, e o Brasil pode tirar lições importantes dos episódios descritos acima, se o país aprender a navegar nesse novo ambiente geopolítico fortemente influenciado por Pequim. No entanto, em uma recente reunião, em Brasília, entre especialistas em China, participantes do governo, do mundo acadêmico e do setor privado concordaram abertamente que o Brasil não tinha uma estratégia clara em relação ao novo cenário. Isso ocorre em parte porque os desafios domésticos atualmente reduzem a margem de manobra do Brasil no domínio da política externa. No entanto, uma razão mais preocupante é que a natureza fundamental dos laços Brasil-China hoje é uma das mais profundas assimetrias do conhecimento: a China sabe muito sobre o Brasil, enquanto o Brasil sabe muito pouco sobre a China.
Pequim investe sistematicamente na formação de uma elite de analistas com uma compreensão sofisticada do Brasil — incluindo metas precisas sobre quantos chineses devem aprender português. O Brasil, por sua vez, não possui uma estratégia comparável. De quantos sinólogos o país precisará nas próximas décadas? Quantos estudantes brasileiros devem ter passado pelo menos um semestre em universidades chinesas? Qual o número desejável de turistas chineses no Brasil em médio prazo?
Essa assimetria já tem consequências. Hoje em dia, é comum que um ministério em Brasília descubra que um interlocutor chinês interessado em um grande projeto de infraestrutura já esteve, paralelamente, em contato com o Itamaraty, o Planalto, agências reguladoras e vários governadores estaduais para alcançar seus objetivos, sem que houvesse algum tipo de coordenação entre as entidades brasileiras. Isso permite que os investidores chineses operem no Brasil e busquem negócios de forma que um investidor brasileiro na China jamais poderia.
Qualquer estratégia coerente do Brasil para lidar com a China deve começar por investir fortemente para superar essa assimetria de conhecimento. Isso envolve programas de intercâmbio em larga escala para estimular a formação de sinólogos, investimento público para pesquisas independentes sobre a China e, possivelmente, o desenvolvimento, dentro da carreira diplomática, de um segmento de profissionais exclusivamente dedicados àquele país.
Gerenciado adequadamente, o relacionamento bilateral pode trazer muitos benefícios. A ascensão chinesa oferece oportunidades para aproveitar suas imensas reservas financeiras para as prioridades brasileiras de investimento — acima de tudo, para modernizar a infraestrutura do Brasil, um grande obstáculo à competitividade do país no mercado global. É evidente que isso também requer estabelecer regras claras para evitar problemas semelhantes aos apontados pelo primeiro-ministro australiano. Porém, se o Brasil alcançar uma compreensão profunda da China — não só no Ministério das Relações Exteriores, mas também em universidades, ONGs, empresas, governos estaduais e municipais — o país poderá extrair o melhor de um mundo em que os chineses têm papel central.
No terceiro dia de aula na PUC São Paulo, Michele Alves ouviu uma professora de Direito Civil dizer aos alunos que não se preparassem para as provas apenas com base nos pequenos resumos que estão no início dos livros acadêmicos porque "até a filha da empregada que faz Direito na 'Uniesquina' estuda por sinopse".
Michele, que é filha de empregada doméstica, saiu da sala para chorar no banheiro. Ligou para a mãe, Celma, de 40 anos, que chorou junto com ela. Durante as lágrimas compartilhadas, Michele quis desistir da faculdade. A mãe não deixou e a convenceu a resistir.
Cinco anos depois, Michele, de 23 anos, decidiu contar essa história diante de um auditório lotado no Citibank Hall. O discurso, gravado em vídeo, viralizou na internet e, desde a formatura, Michele diz ter recebido muitas mensagens de agradecimento, apoio e também de ódio por ter compartilhado as dificuldades e o preconceito enfrentado pelos bolsistas de famílias pobres com pouco estudo que conseguem chegar à faculdade.
"O discurso foi escrito por mim, mas essa história não é só minha", disse à BBC Brasil, por telefone, repetindo trecho do discurso no qual falou em nome dos bolsistas formandos da PUC São Paulo, os "filhos e filhas do gari, da faxineira, do pedreiro, do motorista e da mãe solteira".
Muita gente a aplaudiu de pé na noite da formatura. Mas ela mesma diz que muitos ficaram incomodados.
A agora recém-formada em Direito não citou o nome da professora no discurso nem fala quem é, mas diz ter ficado sabendo que ela estava na cerimônia.
"Nem sei se ela tem consciência do que fez. Mas o que professor diz na sala de aula tem um impacto muito grande, eu nunca esqueci. Marcou minha vida", contou, ponderando que teve "professores maravilhosos também".
Depois das lágrimas, as palavras da professora a fizeram tentar motivar amigos e vizinhos. "Passei a dizer às pessoas que não podem desistir, que têm que ocupar os espaços".
Filha de mãe solteira, Michele nasceu na Bahia e foi a primeira da família a entrar na faculdade. Quando conseguiu a vaga, tinha notícia apenas de uns primos distantes que fizeram curso superior.
Em 2007, quando tinha 12 anos, ela saiu da zona rural de Macaúbas (BA) com a mãe para fazer um tratamento médico em São Paulo. "Tive uma depressão saindo da infância", contou. A irmã dela e o avô deixaram a Bahia meses depois para se juntar a elas.
Hoje ela vive com eles e com o padrasto em Itapevi, na região metropolitana de São Paulo. Trabalha em um escritório com direito administrativo e constitucional.
Apesar de admitir que vive um momento de incerteza, Michele diz estar decidida a inspirar alunos de escola pública. "Estão me convidando para falar em escolas públicas e eu vou com prazer".
Michele estudou a vida toda em escola pública. Fez um cursinho popular e ganhou uma bolsa para fazer outro e perseguir o sonho de entrar na faculdade, ainda que a família achasse que era "loucura e coisa de rico".
O Direito, contudo, não foi a primeira opção de Michele. Achava que a nota de corte era alta demais para ela. Primeiro ela foi para PUC Campinas cursar Ciências Sociais. Mas, durante o primeiro semestre, viu despertar o interesse por temas mais alinhados ao estudo do Estado. Um professor acabou a estimulando a mudar de curso.
Ela acabou passando para a PUC São Paulo e para a Universidade Federal do Rio. Preferiu ficar perto da família.
Sem dinheiro para o lanche
O choque ao pisar no campus da PUC na capital paulista, diz Michele, foi muito grande. "Por causa da burocracia, entrei um mês depois de as aulas terem começado. Mas era completamente diferente", recorda, dizendo no curso de Ciências Sociais em Campinas era muito menos elitizado e o número de bolsistas era muito maior.
No começo, não fez nenhum amigo no Direito - se relacionava com bolsistas de outros cursos, em especial da Economia. Ouvia os colegas de sala falando de viagens à Europa, de festas de R$ 300. "E eu mal tinha dinheiro para comprar o lanche".
Não tinha também roupa social para ir às aulas que exigiam traje específico nem para as entrevistas de estágio. "Devo muito à família para quem minha mãe trabalhou, porque eles doaram algumas roupas."
A mãe de Michele trabalhou a vida toda na casa da mesma senhora, que morreu no ano passado. Agora, ela está com o irmão da antiga patroa. "Eles sempre foram muito bons pra gente."
Quando conheceu os bolsistas de Direito, diz que vida ficou melhor. Eles doavam livros, tinham dicas de estágios que eram menos rigorosos para selecionar candidatos que determinados escritórios e não exigiam, por exemplo, nível avançado de inglês - que segundo ela é, talvez, um das maiores dificuldades para os bolsistas.
Ao longo do curso, conseguiu estágios que pagavam melhor que o salário da mãe ou a aposentadoria do avô. Conseguiu até fazer intercâmbio, graças a uma bolsa, na Universidade Católica da Argentina.
Estranhos
Michele admite que ela era mais radical e mais fechada no começo do curso. "Não conseguia chegar perto das pessoas que não tinham a mesma realidade que eu. Eu era tão estranha para eles quanto eles eram para mim", disse.
Com o tempo ela conta que aprendeu a "mudar o nível de radicalidade". "Tem hora que tem que ser mais incisivo", diz, acrescentando que, além de encontrar tom adequado, o mais importante é encontrar a hora certa de falar verdades.
A formatura foi um desses momentos. Diz que a participação dos bolsistas foi negociada com a comissão que organizou o evento. Ganharam ingressos e o direito de fazer um discurso.
"Não esperava reação positiva por parte dos colegas. Tem gente falando que 90% aplaudiu de pé, e não acho que foi tudo isso. Eu fiquei tão atordoada que não observei. Mas sei que muita gente se sentiu incomodada, que virou tema de debate em família."
Valsa
Michele discursou e foi ao baile também. Dançou valsa com a mãe que, segundo ela, ficou muito assustada com o barulho que as palavras de Michele estão fazendo as redes sociais a ponto de pedir à filha para "dar um tempo" e parar de ler todos os comentários que tem recebido.
Além dos elogios e cumprimentos, Michele tem lido na internet comentários que, de certa forma, reproduzem o discurso preconceituoso e discriminador similar ao que enfrentou durante os anos de faculdade.
Em relação aos colegas, pondera que não sabe se as recorrentes "piadas sobre pobres e as críticas sobre as esmolas do governo", para citar as palavras que usou no discurso, eram conscientes. "Muitas daquelas pessoas não tiveram contato com pessoas como eu, com uma história de luta social, não tiveram a mesma realidade", diz, dando o beneficio da dúvida aos que estudaram com ela.
Mas Michele rejeita o papel de vítima: "Fui protagonista".
E o futuro? Para Michele, ainda é incerto. Ela gosta do trabalho que faz no escritório de advocacia, mas pensa em tentar ser defensora pública. No entanto, diz que não tem condições de parar de trabalhar para estudar para o concurso.