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quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Mais um pouco de Mandela por Ruth de Aquino

Meu encontro com Mandela

Vi quando Mandela pediu para ir à cozinha. Queria encontrar os negros brasileiros

RUTH DE AQUINO
06/12/2013 21h01 - Atualizado em 07/12/2013 10h25
Quando Nelson Mandela visitou pela primeira vez o Brasil, em 1991, recém-libertado após 27 anos de prisão, ainda não era presidente. Mas já era um estadista mundial, um ídolo pop, adorado pelas multidões. Almoçou na Bahia, na casa de Antônio Carlos Magalhães, o Palácio de Ondina. Os pratos eram afro-brasileiros, do vatapá às frutas-de-conde. Os comensais eram brancos, a elite de um país mestiço. Baianas de turbantes serviam acarajés no varandão. Eu estava lá, numa das mesas. Vi quando Mandela pediu para ir à cozinha. Ele queria encontrar os negros brasileiros, o pessoal com a cor de sua pele, em meio a panelões de barro e garrafas de dendê. Na casa grande, ele ansiava pela senzala.
Nelson Mandela visitou Salvador em agosto de 1991 (Foto: Wilson Besnosik/ Arquivo/Ag. A Tarde)
Nelson Mandela visitou Salvador em agosto de 1991 (Foto: Wilson Besnosik/ Arquivo/Ag. A Tarde)
Não era uma provocação a seus anfritriões. Mandela queria só abraçar quem tinha cozinhado para ele. Sorrindo e suando, chegou perto do fogão. Uma fila de cozinheiras e garçons fez festa e cantoria, Mandela ensaiou uns passos de dança e foi envolvido por todos, para desconsolo de seus seguranças. Sorrindo e suando mais ainda, voltou para a companhia dos brancos engravatados. Eu adorava as túnicas coloridas de Mandela em ocasiões oficiais, embora ali estivesse de terno. O mais impressionante, além de suas palavras, de sua história e de seu porte, era o sorriso sereno que dissipava constrangimentos e discórdias.
Não havia túnica justa com ele. Porque não havia rancor. Mandela percebeu rapidamente, ali na Bahia, que o Brasil estava longe de ser uma democracia racial. Não por ódio ou segregação formal. Mas pela falta histórica de representatividade dos mestiços e negros nos altos postos da sociedade, da economia e da política. Pedia aos brancos brasileiros apoio a sua eleição para a Presidência da África do Sul pós-apartheid. Tinha toda a autoridade do mundo para pedir o que fosse. Seu sonho sempre foi a conciliação e a união entre homens e mulheres de boa vontade, de todos os credos e cores.
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Após intensos seis dias no Rio de Janeiro, Brasília, Espírito Santo, São Paulo e Bahia, suas primeiras declarações encantaram os brasileiros. “Quase fomos mortos de tanto amor”, disse Mandela. No Rio, afirmou: “Quando vejo seus rostos, tenho a sensação de estar em casa, porque a mistura da população é como a nossa. E damos as boas-vindas a esse fato, porque a miscigenação enriquece o país”.
Eu tinha uma ligação importante com a África do Sul. Como jornalista, rodei durante duas semanas as principais cidades em 1989, pouco antes de Mandela ser libertado. Fui a Soweto e Crossroads, as “townships” negras. O país vivia a transição do odioso apartheid para as primeiras eleições livres, com voto negro. O presidente branco, Frederik De Klerk, coordenou essa passagem, e isso lhe valeu a honra de partilhar com Mandela o Nobel da Paz tempos depois.
Na minha viagem, a surpresa foi ver de perto a disputa sangrenta entre os negros sul-africanos. Achava impossível que Mandela conseguisse unir zulus e xhosas, apaziguar aquele caldeirão de raiva. Mais negros eram mortos por negros que por brancos. Nada foi impossível para Mandela, por força de seu carisma, caráter e obstinação. 

Ele teve três nomes e três mulheres. Nasceu Rolihlahla Dalibhunga em 1918. Tornou-se Nelson por causa de uma professora de inglês. Protestante, era chamado de Madiba em sua comunidade de língua xhosa. Condenado à prisão perpétua em 1964 pela militância contra o racismo, foi levado secretamente para Robben Island, em isolamento. Rejeitou todos os acordos propostos pelo governo na tentativa de subjugar sua consciência. Dizia que só homens livres podem negociar. Em 6 de maio de 1994, foi eleito presidente. Votava pela primeira vez.

Minha relação com a África do Sul me permitiu trocar palavras com Mandela em Salvador, em 1991. Ele chamou os quitutes baianos de “terrific” (sensacionais): “Uma das razões para que um dia eu volte ao Brasil”. Em Salvador, ele recebeu minhas perguntas e entregou as respostas por escrito no hotel Copacabana Palace, ao se despedir do Brasil. Nessa entrevista, a única em sua visita oficial, disparou uma de suas armas favoritas: a sinceridade.
“Está bem claro”, afirmou, “que sociedades com uma história de racismo brutal, como a escravidão no Brasil, não podem esperar que a solução para o legado dessa discriminação venha tão somente de sua Constituição.” O líder sul-africano também falou sobre as cotas na educação: “Acredito que programas de ação afirmativa para os negros devam começar no pré-escolar e no ensino fundamental, e não só em universidades. Mas (...) essas medidas precisam ser acompanhadas por um avanço econômico das comunidades mais carentes”. Isso foi dito por Mandela, no Brasil, há 22 anos.
Esta semana acabou triste.

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