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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Está difícil viver em paz...pois nos roubaram o sono, a certeza, o sorriso


ELIANE BRUM - 10/12/2012 10h50 - Atualizado em 10/12/2012 10h55
TAMANHO DO TEXTO

Sensação de insegurança?

O que acontece no nosso lado de dentro quando a violência passa a ocupar espaços cada vez mais largos da vida cotidiana

ELIANE BRUM

                                         Nesta primeira segunda-feira de dezembro, percebi com muita clareza que a violência não era mais uma exceção no meu cotidiano, mas algo que atravessava todo o meu dia com uma banalidade persistente e insidiosa. Tenho uma razoável folha corrida como vítima de assaltos e outros crimes ao longo da vida, mas soube de repente que um limite havia sido transposto em algum momento deste ano. Trago essa reflexão para cá, porque a realidade me mostra que não sou a única a ter os dias contaminados nos pequenos gestos.
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista (Foto: ÉPOCA)Percebi de repente que a violência não era mais algo sobre o qual eu pensava ou escrevia – mas algo que havia ganhado um tamanho preocupante não só fora, mas dentro de mim. Eu estava havia minutos demais pesquisando onde levaria uma amiga de infância para jantar, não com base na qualidade ou no preço, mas porque temia expô-la ao risco de um assalto. Quase todos os bares e restaurantes que eu costumava frequentar sofreram arrastões neste ano, até mesmo um japonês que era apenas uma porta, um balcão e umas poucas mesas, levado com muito esforço e lucro escasso pelos proprietários. Surpreendi a mim mesma tentando fazer um cálculo bastante absurdo sobre quais deles teriam mais chance de sofrer um segundo ataque naquela segunda-feira. O que eu estou fazendo?, me questionei a certa altura, ao não me reconhecer nesse ato. E escolhi o que gosto mais.  
Marquei cedo – 19h15 – para sair de casa com claridade, graças ao horário de verão, e voltar quando ainda tivesse algum movimento nas ruas. Coloquei na bolsa apenas o suficiente para pagar o táxi e um cartão para pagar o restaurante. Na hora de sair de casa, meu marido ponderou: “Mas se você levar só o dinheiro do táxi, em caso de assalto os caras vão se irritar e você pode levar um tiro”. Pensei um pouco. Talvez ele tivesse razão. E, ao concordar, de novo me senti esquisita. Peguei o dinheiro que tinha tirado do banco para fazer um pagamento no dia seguinte e coloquei na bolsa, como redução de risco. 
Meu marido carrega na carteira todas as senhas do banco, em código. Quando sofreu um sequestro relâmpago, anos atrás, ele foi levado a um caixa eletrônico e teve a sorte de se lembrar da senha, mesmo com uma arma na cabeça. Como conseguiu lembrar, os assaltantes ficaram com o carro, um Gol, mas deixaram-no ir embora. O episódio deixou nele a marca de um pânico retroativo: e se não tivesse lembrado, o assaltante teria apertado o gatilho? Desde então, ele guarda todas as senhas na carteira.  
Sempre diz que devo fazer o mesmo, mas eu me recuso. E, neste início de noite, tivemos mais uma vez essa discussão. Saí de casa ainda com sol, mas com a sensação de uma sombra no meu lado de dentro. Não tenho carro. Ando de táxi, metrô ou ônibus, conforme o horário e a circunstância. Caminhei um pouco e comecei a descer a Teodoro Sampaio, em Pinheiros, um bairro de classe média de São Paulo. Tentava encontrar um táxi, já esquecida de meus temores. Depois de alguns minutos, um carro parou ao meu lado. O motorista perguntou se eu ia longe. Supus que ele queria saber se a corrida valeria a pena antes de decidir se me levaria, o que me deixou irritada no primeiro instante. Em seguida, porém, descobri que o motivo era outro.  
O taxista explicou que na zona dele tinha toque de recolher – e que ele já estava passando da hora de chegar em casa. Como eu ia a um bairro próximo, na direção da casa dele, aceitou me levar. Entrei no carro de um homem que precisava fazer mais corridas para pagar as contas, mas preferia não arriscar a vida. “Eles me conhecem, moro ali a vida toda, mas acho melhor não facilitar”, explicou. Eram mais ou menos 19h30. Eu tinha atrasado porque minha amiga ligara avisando que estava parada no trânsito. Se eu tivesse saído no horário que pretendia, possivelmente teria testemunhado o espancamento de André Baliera, homossexual agredido por dois homens no cruzamento da Teodoro Sampaio com a Henrique Schaumann, ao voltar para casa depois do trabalho.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Praticar jornalismo é perigoso...


ELIANE BRUM - 08/10/2012 10h42 - Atualizado em 08/10/2012 20h13

Um repórter ameaçado de morte

André Caramante, um dos mais respeitados jornalistas brasileiros na área da segurança pública, foi obrigado a mudar de país e esconder-se. Em entrevista, ele conta o que a situação de exceção vivida por ele e por sua família revela sobre a intrincada relação entre poder e violência

ELIANE BRUM

Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista (Foto: ÉPOCA)Em 14 de julho, André Caramante, repórter da Folha de S.Paulo, assinou uma matéria com o seguinte título: “Ex-chefe da Rota vira político e prega a violência no Facebook”. No texto, de apenas quatro parágrafos, o jornalista denunciava que o coronel reformado da Polícia Militar Paulo Adriano Lopes Lucinda Telhada, candidato a vereador em São Paulo pelo PSDB nas eleições do último domingo, usava sua página no Facebook para “veicular relatos de supostos confrontos com civis”, sempre chamando-os de “vagabundos”. Em reação à matéria, Telhada conclamou seus seguidores no Facebook a enviar mensagens ao jornal contra o repórter, a quem se referia como “notório defensor de bandidos”. A partir daquele momento, redes sociais, blogs e o site da Folha foram infestados por comentários contra Caramante, desde chamá-lo de “péssimo repórter” até defender a sua execução, com frases como “bala nele”. Caramante seguiu trabalhando. No início de setembro, o tom subiu: as ameaças de morte ultrapassaram o território da internet e foram estendidas também à sua família.  
O que aconteceu com o repórter e com o coronel é revelador – e nos obriga a refletir. Hoje, um dos mais respeitados jornalistas do país na área de segurança pública, funcionário de um dos maiores e mais influentes jornais do Brasil, no estado mais rico da nação, está escondido em outro país com sua família desde 12 de setembro para não morrer. Hoje, Coronel Telhada, que comandou a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) até novembro de 2011, comemora a sua vitória nas eleições, ao tornar-se o quinto vereador mais votado, com 89.053 votos e o slogan “Uma nova Rota na política de São Paulo”.
O que isso significa? 
Os 13 anos em que André Caramante cobre a área de segurança pública são marcados pela denúncia séria, resultado de apuração rigorosa, dos abusos cometidos por parte da polícia no estado de São Paulo. A relevância do seu trabalho foi reconhecida duas vezes pelo Prêmio Folha de Jornalismo. Caramante já denunciou sete grupos de extermínio formados por policiais militares e civis, assim como por ex-policiais. Mantém sua própria planilha na qual registra os mortos pela polícia. E faz a denúncia sistemática da figura amplamente difundida da “resistência à prisão” como justificativa para execução, em geral dos suspeitos mais pobres. Por sua competência, Caramante ganhou o respeito da sociedade interessada em uma polícia eficiente, com atuação pautada pelo cumprimento da lei – e o ódio de uma minoria truculenta, os maus policiais, tanto militares quanto civis, e daqueles cujos interesses e projeto de poder estão ligados a eles.
Antes de ser jornalista, Caramante quis ser jogador de futebol. Morador da periferia de São Paulo, comprou a primeira chuteira vendendo papelão. Era “um meia-direita dedicado”, na sua própria avaliação, e usou a chuteira com brio nas peladas de várzea e nas peneiras na Portuguesa, no Novorizontino e no Palmeiras, clubes nos quais chegou a treinar nas categorias de base. A necessidade de ajudar com as despesas da casa o despachou para a arquibancada. Em especial a da Vila Belmiro, por um amor incondicional pelo Santos herdado do pai. 
Aos 11 anos, Caramante começou a trabalhar como camelô, vendendo chocolates e sacolas no Brás, em São Paulo. Mais tarde, aos 17, o estudante de escola pública pagou a faculdade de jornalismo da Uniban com o salário de office-boy e com os vales-transporte que economizava fazendo o serviço a pé. “Não sabia se a faculdade era boa ou ruim, não entendia dessas coisas, apenas sabia o que queria fazer”, conta. “O livro Rota 66, de Caco Barcellos, tinha me mostrado o que era jornalismo.” 
Em seu livro Rota 66 – a história da polícia que mata (Record), Caco Barcellos, um dos grandes nomes do jornalismo brasileiro, hoje na TV Globo, investigou o trabalho da Rota entre as décadas de 1970 e 1990. E provou que ela atuava como um aparelho estatal de extermínio, responsável pela execução de milhares de pessoas. A reação às denúncias obrigou o repórter a passar um período fora do Brasil, devido a ameaças de morte. Duas décadas depois do lançamento do livro que o inspirou, Caramante vive uma situação semelhante.
A notícia de que ele estava vivendo escondido, com a família, vazou na semana passada, em matéria da Revista Imprensa. Até então, Caramante pretendia manter o fato em sigilo. A decisão de esconder-se com a família foi difícil para o repórter que nunca quis virar notícia – e que sempre evitou ser fotografado. Enquanto era alvo único das ameaças de morte, Caramante manteve uma rotina normal. O jornalista só aceitou se mudar para um destino secreto quando sua família passou a ser ameaçada. Mesmo assim, para ele é ponto de honra seguir com seu trabalho de reportagem. Pela internet, envia informações ao jornal com frequência. E segue assinando matérias na área da segurança pública.
Quando um repórter é obrigado a mudar de país e se esconder com a família por fazer bem o seu trabalho e prestar um serviço à população, ao fiscalizar os órgãos de segurança pública, este não é um problema só dele – mas da imprensa, que tem o dever de informar, e da sociedade, que tem o direito de ser informada. É disso que se trata. 
Na entrevista a seguir, feita por email entre sexta-feira e domingo, André Caramante, 34 anos, fala sobre a situação de exceção que ele e sua família estão vivendo, mas principalmente sobre as complexas relaçõesentre violência e poder que a tornaram possível.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

"A escolha de como viver o fim de nossas vidas..." // Eliane Brum


ELIANE BRUM - 03/09/2012 07h53 - Atualizado em 13/09/2012 16h13
TAMANHO DO TEXTO

Você quer ser pessoa ou paciente?

A resolução do Conselho Federal de Medicina nos devolve uma decisão que nunca poderia ter deixado de ser nossa: a escolha de como viver o fim da nossa vida. Como nos alienamos tanto a ponto de permitirmos que chegasse a esse ponto?

ELIANE BRUM
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista (Foto: ÉPOCA)

É um avanço profundo a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), divulgada na semana que passou, que devolve ao paciente a decisão de escolher como quer viver o fim da sua vida. Para relembrar: quem estiver com uma doença crônica ou degenerativa pode escolher se 
quer ter sua vida prolongada, à custa do que tem sido chamado de “tratamentos fúteis”, ou quer que respeitem seu tempo de morrer, beneficiado pelos “cuidados paliativos”. Tratamentos fúteis são todos aqueles que apenas adiarão a morte, mas sem dar qualidade para a vida – aumentando e estendendo o sofrimento. Procedimentos como submeter alguém a uma cirurgia quando já não há como curar a doença, ressuscitar quem está em estado terminal e teve parada cardíaca, ligar alguém a aparelhos quando tudo o que se conseguirá é uma existência vegetativa. Cuidados paliativos são tanto físicos quanto psíquicos e envolvem não só médicos, mas uma equipe multidisciplinar. Os profissionais estão lá para amenizar a dor, mas sem espichar nem abreviar a vida. A ideia é respeitar o tempo de morrer e usar o conhecimento científico e também de outras áreas para que se possa viver da melhor maneira possível até o fim. A qualquer momento, qualquer um de nós pode escrever e até registrar em cartório um documento, que pode ser chamado de “testamento vital” ou de “diretiva antecipada de vontade”, no qual determinamos o que permitimos – e o que não permitimos – no caso de sermos levados a um hospital ou precisarmos de cuidados médicos. 
Passei a preparar meu testamento vital desde que acompanhei as duas grandes possibilidades do fim de uma vida, anos atrás, quando ela se dá no palco de um hospital. E percebi que, para mim, uma amante do cinema e da literatura de terror nas obras de ficção, não haveria terror maior na vida real do que morrer numa UTI, amarrada a fios, entubada e sozinha. Não mais uma mulher, uma vida em curso, mas um objeto de intervenção médica. Quero morrer sem dor física, ou pelo menos com o mínimo de dor possível, de preferência na minha casa, rodeada por aqueles que eu amo. E espero conseguir viver da melhor forma possível até o fim – o que inclui viver a minha morte com dignidade. 
Se a resolução do Conselho Federal de Medicina (leia aqui) é uma boa notícia, vale a pena pensar também sobre o que ela nos diz para além do texto. Uma resolução do CFM não é uma lei, mas uma regulamentação da prática médica feita pelo órgão de classe, responsável por fiscalizar e normatizar o exercício da medicina no país. É importante, sem dúvida que é, mas há muito ainda a lutar para que recuperemos nosso direito de escolha. E podemos começar com a seguinte questão: em que momento delegamos aos médicos a decisão sobre o nosso morrer? Que é, em última instância, uma decisão sobre o nosso viver? 
Dando alguns passos para trás, para enxergarmos o quadro maior, poderíamos pensar no quanto é curioso ser preciso uma resolução do CFM para dizer que é aquele que vive e aquele que morre quem tem o direito de escolher sobre a sua vida e a sua morte. Como alguém, nós ou os médicos, fomos capazes de pensar que essa decisão pudesse pertencer a outra pessoa? A que ponto chegamos para que seja preciso que os médicos nos devolvam algo que sempre foi nosso? Como foi que nos alienamos do processo da vida, tanto que aceitamos ser transformados em sujeitos passivos de intervenção e de decisão médica num momento tão crucial de nossa existência?  
O fato é que, desde o século XX, a morte tornou-se marginal na nossa sociedade, algo a ser escondido dentro dos hospitais, em ambiente asséptico. E o morrer tornou-se um ato quase obsceno, que nos lembra de nossos limites num momento histórico obcecado pela juventude e pela potência. Nossa crescente impossibilidade de lidar com a certeza da morte produziu pelo menos duas distorções: médicos que abusam do poder e extrapolam limites e pessoas infantilizadas no momento de tomar uma das decisões mais importantes da vida.  
Reparem que escolho a palavra “pessoas” – e não “pacientes”, nosso nome a partir do momento em que entramos num hospital, clínica ou consultório médico. Como pessoas, temos uma história, um percurso, uma teia de sentidos. Como pacientes, como a etimologia da palavra nos prova, tanto quanto a prática cotidiana, somos esvaziados de nossos sentidos e de nossa história para nos tornarmos um sujeito passivo. A palavra “paciente” vem do latim patientia, que significa “virtude que consiste em suportar os sofrimentos sem queixa”.  
Somos “pacientes” com relação a um outro, que tem poder sobre nós. E não é obra do acaso que, tanto na posição de doentes quanto na de velhos, médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, assistentes sociais, fisioterapeutas etc seguidamente nos tratam por diminutivos, como se fôssemos crianças pequenas. É difícil quem não tenha vivido ou testemunhado esse tratamento num hospital, clínica ou consultório. Parece apenas trivial, alguns consideram até carinhoso, outros vagamente irritante, mas a escolha das palavras desvela nosso lugar – e também um processo histórico e um embate no campo da ética.  

sábado, 7 de julho de 2012

"Matando por terras" filme de Adrian Cowell // Eliane Brum


Matando por terras

Pouco antes de morrer, o cineasta Adrian Cowell liberou um documentário com cenas brutais da guerra travada na Amazônia brasileira. Filmada nos anos 80, a obra manteve-se inédita no Brasil por mais de duas décadas para proteger as testemunhas de assassinatos. Nesta semana, o filme será exibido pela primeira vez – e poderemos constatar que o passado continua dolorosamente presente

ELIANE BRUM

Cena 1 – Os homens andam pela floresta. Eles têm pés de andar, machucados pelas raízes, pelo sol, pela chuva, pelo caminho. E velhas espingardas nas mãos. No rosto, a expressão dos que foram lançados uma curva além. São homens desesperados – e homens desesperados não têm nada a perder. Exceto a vida, mas esta eles vão perder de qualquer jeito. Em busca de terra, já não há para onde ir. Exceto mais e mais para dentro. “A gente vai ficar. Se for, a gente só morre mais depressa”, diz um. Ali, eles já morrem depressa demais. É o corpo de um companheiro que vão buscar. Raimundo Piauí, posseiro como eles, sem-terra em busca de terra, apodrece há sete dias na mata. Assassinado por pistoleiros a mando de fazendeiros na guerra cotidiana travada na Amazônia.  
Cena 2 – Ele é só um velho caçador, com uma espingarda de caça quase tão velha quanto ele. Os pistoleiros sabem disso. Mas não importa. Ele está ali, fácil e frágil. E é preciso dar um aviso aos posseiros que lutam pela terra. Os pistoleiros exigem a espingarda. Ele não entrega. Não entrega porque não pode entregar. Sem ela, morrerá de fome no meio da mata. É morrer de um jeito – ou de outro. Ele se vira. Os pistoleiros o abatem pelas costas. Um tiro atinge a sua boca, os dentes se espalham. Ele cai. João Ventinho era o seu nome. Mais um, só mais um ninguém cuja vida jamais será paga na Justiça. 
Cena 3 – O homem corre. Os pistoleiros o perseguem atirando. O homem carrega uma criança nas costas. O menino grita primeiro. As últimas palavras do homem são: “Ô malvadeza”. Os dois corpos tombados na terra. O do posseiro Sebastião Pereira, liderança rural. E o de Clésio, de três anos. Um corpo de menino na mesa do necrotério, vítima de uma guerra que o matou antes que pudesse entendê-la. Uma guerra onde as crianças recebem balas de chumbo.  
Estas cenas reais fazem parte do documentário Matando por terras (52 minutos), que será exibido pela primeira vez no Brasil nesta quinta-feira (5/7), no CineSesc, em São Paulo. Filmado nos anos 80, ele não pôde ser mostrado aqui por mais de duas décadas para não expor as testemunhas dos crimes – e condená-las também à morte.
A guerra da Amazônia (Foto: Divulgação)


Morrendo por terras (Foto: Divulgação)
Adrian Cowell produziu o maior registro audiovisual da Amazônia. Todo o seu acervo foi doado à PUC de Goiás e está disponível para ser acessado: quase 900 mil metros de filme, sete toneladas que se transformaram em 30 documentários. Neste percurso, Adrian conviveu com Orlando Villas-Boas antes mesmo da criação do Parque Indígena do Xingu. Trabalhou também com Apoena Meireles, outro grande sertanista, assassinado em 2004 durante um assalto em Porto Velho (Rondônia). Em meio século, ele filmou um Chico Mendes ainda desconhecido do próprio Brasil – e o seu trabalho ajudou a projetar o líder seringueiro no mundo. 
Adrian filmou tribos isoladas e filmou a destruição. Enquanto ele capturava a vida em um embate de morte, seus personagens tombavam junto com a floresta. Às vezes, antes mesmo do final do filme. Adrian começou a filmar Chico Mendes porque o personagem cuja história planejara contar, Padre Josimo, um religioso negro da Comissão Pastoral da Terra, foi assassinado no Tocantins pouco antes do início das filmagens. E Chico Mendes foi executado ao longo das gravações da série mais famosa de Adrian, A década da destruição, que será exibida na mostra.
O cineasta acreditava que um dia documentaria "A década do meio ambiente", com o fim da devastação da Amazônia. Morreu com seu sonho – mas sua obra teve uma importância crucial para que a preservação da floresta e dos povos da floresta deixasse de ser uma questão de ecologistas para se tornar um problema do mundo. 
Em 1980, Adrian conheceu o cinegrafista brasileiro Vicente Rios e, juntos, filmaram pelos 30 anos seguintes. “Rios e Cowell formaram uma poderosa dupla, como aquelas de pistoleiros do Velho Oeste, retratadas pelos filmes de Sergio Leone”, escreveu o jornalista Felipe Milanez, idealizador e curador da mostra. “Por vezes, andaram literalmente armados de revólver, para o caso de precisarem se defender, como em Serra Pelada, ou então portando uma arma muito mais poderosa: a câmera.” 
Quem quiser conhecer as aventuras vividas pela dupla poderá ouvir da boca do próprio Vicente, na abertura da mostra e em algumas sessões apresentadas por ele. Vicente Rios também exibirá um documentário inédito – Visões da Amazônia. A obra apresenta cenas de bastidores das filmagens e coloca Adrian diante das câmeras, fazendo uma reflexão sobre suas memórias e sua paixão pela floresta. 
Adrian apaixonou-se tanto pela Amazônia e pelo seu povo que deu ao filho um nome que junta mundos: Xingu Cowell. O menino morreu em um acidente de caiaque, aos 18 anos, no mesmo ano em que Adrian começou a filmar Matando por terras, no sul do Pará. O próprio Adrian participaria da mostra de cinema em homenagem à sua obra, mas tombou no meio do gesto. Até o fim, ele acreditou que a floresta poderia ser salva. E lutou por isso.
Em 6 de junho de 2011, Adrian escreveu para o jornalista Felipe Milanez. O cineasta acabara de saber do assassinato de José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo. O casal foi executado a tiros nas proximidades do assentamento onde viviam, em Nova Ipixuna, no sul do Pará. Adrian dizia, com o português que aprendeu enquanto se embrenhava na selva, que o filme “Matando por terras”, ainda inédito, mostraria que os assassinatos registrados por ele, 25 anos atrás, continuavam se repetindo no Brasil de hoje. Foi assim, porque o filme é presente tanto quanto passado, que a versão brasileira foi feita.

sábado, 23 de junho de 2012

O poder de uma imagem, de um órgão que vive escondido

http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/06/por-que-imagem-da-vagina-provoca-horror.html

Por que a imagem da vagina provoca horror?

Diante da origem do mundo, ela deu um grito

ELIANE BRUM  

Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista (Foto: ÉPOCA)
Muitos anos atrás, não sei precisar quantos, deparei-me com o quadro A origem do mundo (L’Origine du Monde, 1866) e me encantei. Nele, o francês Gustave Courbet pinta uma vagina. Cheguei a ela desavisada e fui tomada por uma sensação profunda de beleza. Forte o suficiente para sonhar, deste então, com a compra de uma reprodução, um plano sempre adiado. Quando passei a trabalhar em casa, há dois anos, desejei ainda mais ter o quadro na parede do meu escritório, onde reúno tudo aquilo que me apaixona em um pequeno universo perfeito e só meu. No último aniversário, em maio, meu marido me deu a reprodução de presente. Só na semana passada, porém, o quadro chegou da vidraçaria onde fez escala para receber moldura. Então, algo inusitado aconteceu. 

Ouvi um grito:
- É o fim do mundo!
Eu estava no quarto e saí correndo, alarmada, para ver o que tinha acontecido. Encontrei Emilia, a mulher que limpa nossa casa uma vez por semana, com o rosto tomado por um vermelho sanguíneo, diante de A origem do mundo, que, ainda sem lugar na parede, jazia encostado em um armário.  
- É o fim do mundo! – gritava ela, descontrolada. – Nunca pensei ver algo assim na minha vida! Eliane, que coisa horrível!
Meio atordoada, eu repetia: “Não é o fim do mundo, é o começo!”. E depois, sem saber mais o que fazer para acalmá-la, me saí com essa estupidez: “É arte!”. Como se, por ser “arte”, ela tivesse de ter uma reação mais controlada, quando é exatamente o oposto que se espera. Beirando o desespero diante do desespero dela que eu não conseguia aplacar, apelei: “Mas, Emilia, metade da humanidade tem vagina – e a humanidade inteira saiu de uma vagina! Por que você acha feio?”.
O fato é que, para Emilia, era o fim do mundo – e não o começo. Tentei fazer piada, mas percebi que a perturbação não viraria graça. A questão para ela era séria – e ela só não pedia demissão porque trabalha há 12 anos comigo e temos um vínculo forte. Naquele dia, Emilia despediu-se incomodada e passei a temer que talvez ela não suporte olhar para o quadro a cada quinta-feira.
Por que Emilia, uma mulher adulta, que me conta histórias escabrosas da vida real, se horrorizou com a visão de uma vagina? Por que eu me encantei com a visão de uma vagina? Quando vivo uma experiência de transcendência, em geral eu não quero saber sobre a história da pintura que a produziu, porque temo perder aquilo que é só meu, a sensação única, pessoal e íntima que tive com aquela obra. É uma escolha possivelmente besta, mas faz sentido para mim. Por isso, eu quase nada sabia sobre “A origem do mundo”, para além do fato de que eu a adorava. Só no ano passado, ao ler um pequeno livro sobre um dos grandes nomes da história da psicanálise, o francês Jacques Lacan, soube que ele foi o último dono da pintura. Nos anos 90, sua família doou o quadro para o Museu D’Orsay, em Paris, onde está desde então. 
Graças ao estranhamento de Emilia, transtornada que foi pela experiência artística quando se preparava para passar o pano no chão, fui levada a um percurso inesperado. Descobri que A origem do mundo causa escândalo desde que foi pintada. E agora quem está horrorizada sou eu, mas pela ausência de horror em mim diante do quadro. Por quê? Por que eu não sinto horror? O que há de errado comigo que não sinto horror?, cheguei a me perguntar. De repente, nossas posições, a minha e a de Emilia diante do quadro, inverteram-se. Eu, que não compreendia o horror dela, passei a suspeitar do meu não horror.
Eis uma breve trajetória da obra. A origem do mundo foi encomendada a Courbet, um pintor do realismo, por um diplomata turco chamado Khalil-Bey. Colecionador de imagens eróticas, ele pediu um nu feminino retratado de forma crua. E Courbet lhe entregou um par de coxas abertas, de onde despontava uma vagina após o ato sexual. A obra teria sido instalada no luxuoso banheiro do milionário, atrás de uma cortina que só se abria para revelar o proibido para uns poucos escolhidos. Khalil-Bey teria perdido a pintura em uma dívida de jogo, momento em que a tela passa a viver uma série de peripécias. 
O quadro teve vários donos e, ao que parece, todos o escondiam atrás de uma cortina ou de uma outra pintura. Na II Guerra Mundial, algumas versões afirmam que chegou a ser confiscado pelos nazistas do aristocrata húngaro ao qual pertencia. Em seguida, passou uma temporada nas mãos do Exército Vermelho. Até que, após uma acidentada jornada, em 1954 foi comprado por Lacan e instalado na sua famosa casa de campo.
Até mesmo Lacan, um personagem pródigo em excentricidades e sempre disposto a chocar as suscetibilidades alheias, ocultava o quadro com uma outra pintura, encomendada ao pintor surrealista André Masson com esse objetivo. Como uma porta de correr, esse “véu” retratava uma vagina tão abstrata que só um olhar atento a adivinhava. Apenas visitantes especiais ganhavam o direito de desvelar e acessar a vagina “real”. Segundo Elisabeth Roudinesco, a biógrafa mais notória de Lacan, o psicanalista gostava de surpreender os amigos deslocando o painel. Anunciava então “A origem do mundo”, com a seguinte declaração: “O falo está dentro do quadro”. Boa parte dos intelectuais apresentados à tela ficava, como Emilia, bastante incomodada.
Por quê? 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Pedro e João: a história de dois meninos gays e uma infância devastada... / Eliane Brum


Um homem adulto narra seu percurso de dor para assumir sua sexualidade. E conta como, para se proteger, participou de atos de bullying na escola contra seu melhor amigo


Da infância, somos todos sobreviventes. Alguns mais do que outros. Esta é a história de um homem em busca de compreender a si mesmo. E de tentar, como adulto, ser diferente do menino pelo poder da narrativa. Esta história é contada aqui porque foi a nossa ignorância – a minha e também a sua – que destroçou a vida dessas duas crianças. E tem destroçado – às vezes em brutal literalidade, com tiros e pancadas – a vida de muitos – demais.
Antes, a história de como nos conhecemos. Ele me enviou o primeiro email no início de dezembro. Um amigo dele acabara de ser assassinado por homofóbicos, e ele tinha se deparado com uma campanha na internet que arregimentava pessoas a se unirem para executar homossexuais. Ele tinha medo de sair de casa. Estava assustado. E também com raiva. Pedia que eu denunciasse a campanha nesta coluna.
Respondi que escrever sobre esse tipo de manifestação era amplificar uma voz de ódio. Afinal, o sonho de quem divulga algo na internet é ser acessado, replicado, comentado, seguido, citado. Em vez disso, propus a ele que me contasse a sua história para – talvez – publicá-la aqui. Contar uma história que nos aproxime é a melhor resposta que podemos dar a quem usa as palavras para aumentar as distâncias.
Desde então, iniciamos uma correspondência. Chequei a sua identidade, mas respeitei sua decisão de ocultar seu nome. Nessa narrativa real, vamos chamá-lo de Pedro. Filho único de uma família de classe média do interior de Minas, Pedro tem 28 anos, é engenheiro ambiental e hoje vive sozinho em Goiânia. Um brasileiro como tantos outros, que trabalha duro e paga seus impostos. Todo ano ele participa da parada gay, mas não é o que se poderia chamar de um militante do movimento. Em Goiânia, assume sua homossexualidade em todos os espaços – e também no trabalho. Mas preferiu se afastar da família a contar que era gay. Neste Natal, como veremos mais adiante, ele fez um pequeno grande gesto.
Aos poucos, ao longo da nossa troca de cartas virtuais, percebi que não se tratava apenas da história de Pedro. Mas da história de Pedro e de João. Quando era criança, o melhor amigo de Pedro era João. E era João quem não conseguia esconder dos colegas de escola que era gay. Pedro posicionou-se ao lado dos mais “fortes”, como tantos de nós a vida toda, e mais ainda na infância. Alinhou-se ao lado dos pequenos machos quando eles tornaram a vida de João um inferno humano. Tão humanamente infernal que ele acabou mudando de cidade no início do ensino médio. Como acontece ainda hoje em muitas escolas, nem professores, nem pais, nem colegas, ninguém fez gesto algum na direção de João. Todos permitiram, por ação ou omissão, que João fosse agredido, acuado, encurralado e, por fim, exilado.
Essa memória assombra Pedro até hoje. Como a maioria de nós, ele queria ter sido mais forte na infância. Não mais “forte” como os pequenos machos, tão atrapalhados com sua sexualidade que precisavam “denunciar” a do outro. Pedro queria ter sido tão forte quanto João, que ousava ser. Se tivessem sido os dois, talvez pudessem ter resistido mais. Mas, por muito tempo, Pedro mal pôde consigo mesmo. E então, quando ele já tinha sua própria vida adulta e independente, um de seus melhores amigos foi assassinado porque era. Gay. E Pedro, de novo, sentiu-se muito impotente.
Contar sua história talvez seja a forma encontrada por Pedro para inverter o curso dessa memória dentro de si. Pronunciar o que virou silêncio sem ser – e por assim ter sido tanto o feriu. A ele e a João, antes que ambos pudessem se defender. Quando pergunto sobre esse círculo que se fecha, Pedro escreve: “Acho que vai me incomodar pelo resto da vida”.
É espantosa a quantidade de dor que pode caber numa vida apenas por causa da ignorância. Da nossa ignorância. A história de Pedro – e também a história de Pedro e de João – é assim.>>>>>


O começo: ou como Pedro expôs João para que não o descobrissem 


“Nasci numa cidade do interior de Minas com 80 mil habitantes. Pequena, conservadora, cheia de falsos moralismos. Desde muito cedo eu percebi minha orientação sexual. Desde criança achava os meninos mais interessantes do que as meninas. Sempre pensei que no órgão sexual feminino faltava alguma coisa. E tinha curiosidade para ver o órgão sexual dos meus amigos. Mas nunca fui muito sexualizado na infância e nem mesmo na adolescência. Talvez evitasse a sexualidade pela consciência da minha orientação sexual.
Ainda no colégio, eu era uma pessoa extrovertida e comunicativa, mas quando percebi que havia algo de diferente, tornei-me recluso. Sempre estudei no mesmo colégio, com a mesma turma. Desde o início, tinha um colega que conseguia disfarçar menos sua homossexualidade e, para continuar pertencendo ao grupo, eu participava de ataques de bullying homofóbico. Estes eram os momentos nos quais eu me sentia pior.
João sempre estudou na mesma turma que eu. Éramos muito amigos na infância, nossas mães eram amigas e ambos éramos filhos únicos. Ele frequentou a minha casa e eu a dele, brincamos muito na infância, éramos os melhores amigos. Apesar de ser um ano mais velho do que eu, João não aparentava, porque sempre foi muito sensível e delicado. O fator ‘não jogar bola’ influencia muito o que as crianças pensam quanto à sexualidade de outra. E João não jogava.
É engraçado. Nunca trocamos uma palavra sequer em relação ao sexo. Ao menos, não que eu me lembre. Jogávamos muito videogame juntos, e geralmente ele passava pela manhã em minha casa para irmos ao colégio. Não sei bem explicar como, mas nossa relação e encontros foram tornando-se esparsos, até que nos tornamos meros colegas de sala. Ele passou a ser um garoto solitário, menos risonho. Aproximou-se mais das garotas e adquiriu ‘trejeitos’, que talvez sempre tenha tido, mas que somente com o amadurecimento e a consciência do mundo eu e os outros garotos começamos a perceber.
Eu tinha 12 ou 13 anos nessa época. Acho que, por pertencer a uma família que preserva bastante as tradições mineiras, na qual era comum escutar comentários homofóbicos e até mesmo racistas, eu tinha o preconceito internalizado de que a homossexualidade era algo errado. E é muito estranho ser ‘errado’. Eu não tinha com quem conversar, eu não tinha com quem dividir meus desejos. E acho que foi a fase na qual eu tive mais medo na minha vida. Era um medo de tudo, um medo de mim.
Adquiri repulsa por alguém que eu imaginava ser a pessoa que mais se assemelhava a mim. Julgava-o sujo. Era como se o distanciamento que criei com ele disfarçasse a minha sujeira. Não sei bem ao certo, mas em virtude de suas maneiras mais delicadas, nós, os meninos, simplesmente deixamos de conviver com ele. Não sei como surgiram os primeiros episódios de bullying. Mas, aos poucos ele começou a ser motivo de chacota na sala e, em pouco tempo, de todo o colégio.
Crianças e adolescentes têm uma maldade que eu não entendo. Todos os dias escrevíamos no quadro seu apelido: “João viadinho”. A situação de bullying era clara. Ele sofria muito, era perceptível. Quando cruzávamos com ele, ríamos e imitávamos trejeitos femininos. Os meninos da sala não o tocavam, pois, caso isso ocorresse, pegariam ‘viadice’. Imagino o quanto isso foi dolorido para ele.
Logo, ele começou a permanecer todo o recreio dentro da sala de aula. E as agressões passaram do campo das palavras para o físico. Em suas tentativas de revide, ele levava tapas, socos e pontapés. Eu não cheguei a fazer isso. Mas, os outros garotos, sim. Quando ele passava pelo corredor, próximo ao grupinho dos ‘machos’, além de um ‘E aí, viadinho?’, ele levava sempre uns bons tapas, e sempre havia algum engraçadinho para sair rebolando atrás dele. Eu nunca o olhava nos olhos. Sentia muita vergonha.
É uma dinâmica estranha. Você tem que pertencer a um grupo, e ser diferente te exclui. Hoje, entendo que muita daquela repulsa estava relacionada a um certo grau de atração que eu sentia por ele. E aquilo para mim era errado. Os professores nunca tomaram nenhuma atitude. Ninguém nunca tomou nenhuma atitude. Escutei trechos de uma conversa de minha mãe com a mãe dele em relação à sua sexualidade, mas não consegui entender muito e não fui capaz de tocar no assunto. Até hoje não consigo compreender como fui capaz de ter feito tudo aquilo. Sei que fui muito covarde. Porque, no fundo, eu sabia pelo que ele estava passando. E nunca lhe estendi a mão.   >>>>
Quando você se descobre gay – o que faz você se sentir diferente da maioria –, isso faz com que, de uma maneira inconsciente, você lute para ser igual. É uma resistência interna, uma forma estranha de luta entre o ‘você aparente’ e o ‘você real’. Eu tinha aversão ao meu corpo, a toda e qualquer coisa relacionada à sexualidade. Qualquer programa de TV, livro ou texto que se referisse à sexualidade me causava pânico. Eu não passei pela fase comum aos adolescentes, na qual a masturbação é uma atividade comum. Eu sentia medo, pois era nessas ocasiões que eu tinha a certeza de que realmente era homossexual.
Não é somente seu ciclo social que é quebrado através da fase de reclusão. Dentro de você é como se o fator sexualidade também fosse rejeitado. Sexo assusta. O que não se aceita é melhor que fique escondido. Acho que senti repulsa por João ao perceber que alguém tinha uma aceitação maior consigo mesmo do que a que eu tinha para comigo. Eu conseguia reprimir, então era difícil aceitar que aquela pessoa não conseguisse.
Eu nunca o defendi. Tinha medo de que toda aquela repulsa se voltasse contra mim. João saiu da escola e da cidade no final do primeiro ano do ensino médio. Mudou-se para Uberlândia (MG). Nesse meio tempo, acho que até mesmo por um grande peso na consciência, foi a minha vez de me afastar. Tranquei-me no quarto e não queria sair de lá.” 

Pedro se esconde – até de si mesmo 
“No segundo ano do ensino médio, minha consciência da orientação sexual . É como se perdêssemos um período da vida social e buscássemos nos livros um afago.”
Pedro tenta fugir – mas não há fuga de si mesmo 
“Passei em três universidades federais. A minha escolha foi pela UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto), e priva pelo tradicionalismo, convivendo em repúblicas com cerca de 15 homens. Todos, ao menos aos olhos da comunidade universitária, heterossexuais.
 Bem no início do curso, eu presenciei uma cena que me trancou ainda mais dentro do armário: um dos moradores de uma república vizinha à minha, líder estudantil, influente no meio acadêmico, foi flagrado contando à empregada da casa que tinha um caso com outro estudante. s últimos quatro anos. Foi muito estranho ver as coisas dele jogadas no chão da famosa Rua Direita.
Eu era um adolescente exemplar. Nunca tinha bebido, nunca tinha usado drogas. Era virgem, nunca beijara ninguém. Nessa época, comecei a viver em uma história inventada. Para me inserir em um grupo, eu comecei a usar um disfarce. O ‘porra-louca’ heterossexual. Beijava meninas, mas tinha muito medo de que alguma delas quisesse algo mais. Comecei a beber muito e a ser usuário de maconha e, mais tarde, de cocaína. Era uma fuga, era um jeito de ser querido por um grupo, era uma forma de estar inserido. Era ser comum. E assim foi durante cinco anos. Anos lentos, intermináveis.

Uma colega de sala foi a primeira pessoa que soube de minha homossexualidade, já no final do curso. Foi uma explosão. Era como se eu estivesse tirando o maior peso do mundo de minhas costas. Só consegui dizer: ‘Sou gay’. E comecei a chorar sem parar. Era um misto de medo da reação e de alívio indescritível. Pela primeira vez eu tirava a minha máscara para um outro ser humano.
Formei-me na universidade em 2006, com 22 para 23 anos. Era virgem, escolado no submundo do álcool e das drogas. Antes de me mudar de Ouro Preto, reuni todos os 15 rapazes que moravam comigo na república. Eu não queria sair daquela casa tendo omitido quem eu realmente era. Nessa reunião, completamente drogado, eu vomitei, com certa raiva de mim e de tudo, que eu era gay e que aquilo era o mínimo que eu podia fazer por pessoas com as quais eu convivi.
Logo após um silêncio, nada convencional, eu presenciei as mais distintas reações. De ódio a apoio. Há pessoas com as quais nunca mais troquei palavras. Mas também recebi um carinho que eu não imaginava que fosse possível. Descobri que, apesar dos revezes, eu encontraria pessoas que não encaravam aquilo como aberração. Acho que aquele momento foi fundamental para que eu pudesse encarar a vida. Eu nunca tinha encostado em um homem, eu nunca tinha tido uma relação verdadeira. Na verdade, acho que toda a minha felicidade era falsa.”
 Pedro tira a máscara – arranca-se de si 

Em casa, escovei os dentes diversas vezes. Como se aquilo pudesse apagar m E foi a primeira vez que tivemos uma relação sexual. Era também a primeira relação sexual da minha vida.”

Pedro descobre que não o perdoam por ser 
“Mesmo trabalhando para um órgão que, a princípio, deveria privar pelo 
Já perdi a conta de quantos amigos, em Goiânia ou em Uberlândia, já sofreram agressões na rua por serem gays. Ao tentar denunciá-las, as vítimas foram ridicularizadas, e os agressores liberados. Eu não tenho mais coragem de procurar a polícia para denunciar qualquer forma de preconceito. Vivemos no nosso mundinho, disfarçados. Vivemos num ‘gayto’.”
 
Pedro aproxima-se dos pais – que não sabem (ou fingem não saber) que é 
“Distanciei-me dos meus pais há muito tempo. E continuei cada vez mais distante. Morando há três anos e meio em Goiânia, eles nunca tinham vindo me visitar. Neste final de ano, pela primeira vez, eu convidei-os a passar o Natal na minha casa. E eles vieram. Acho que minha pequena atitude abriu uma brecha para novamente possuir uma família, possuir um colo de mãe.
 ali fosse algo que tivesse o poder de torná-los extremamente infelizes."
O meio: ou como Pedro reencontra João no gesto possível 
 “Eu era só um menino, mas foi com João que senti remorso pela primeir
a  comentários maldosos de minha mãe, com suas amigas. Eu sentia raiva. 
João tornou-se arquiteto. Quando me mudei para Uberlândia, vivíamos na mesma cidade e ainda hoje temos alguns amigos comuns. Mas nunca dividimos uma roda de amigos. É um somatório de minha vergonha e da sua mágoa. Para alguns dos amigos em comum, eu contei toda a história. Segundo eles, ele nunca mencionou o assunto. 
 João havia se mudado para a Austrália. Não sei se um dia voltarei a vê-lo”.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras)