ELIANE BRUM - 03/09/2012 07h53 - Atualizado em 13/09/2012 16h13
Você quer ser pessoa ou paciente?
A resolução do Conselho Federal de Medicina nos devolve uma decisão que nunca poderia ter deixado de ser nossa: a escolha de como viver o fim da nossa vida. Como nos alienamos tanto a ponto de permitirmos que chegasse a esse ponto?
ELIANE BRUM
É um avanço profundo a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), divulgada na semana que passou, que devolve ao paciente a decisão de escolher como quer viver o fim da sua vida. Para relembrar: quem estiver com uma doença crônica ou degenerativa pode escolher se
quer ter sua vida prolongada, à custa do que tem sido chamado de “tratamentos fúteis”, ou quer que respeitem seu tempo de morrer, beneficiado pelos “cuidados paliativos”. Tratamentos fúteis são todos aqueles que apenas adiarão a morte, mas sem dar qualidade para a vida – aumentando e estendendo o sofrimento. Procedimentos como submeter alguém a uma cirurgia quando já não há como curar a doença, ressuscitar quem está em estado terminal e teve parada cardíaca, ligar alguém a aparelhos quando tudo o que se conseguirá é uma existência vegetativa. Cuidados paliativos são tanto físicos quanto psíquicos e envolvem não só médicos, mas uma equipe multidisciplinar. Os profissionais estão lá para amenizar a dor, mas sem espichar nem abreviar a vida. A ideia é respeitar o tempo de morrer e usar o conhecimento científico e também de outras áreas para que se possa viver da melhor maneira possível até o fim. A qualquer momento, qualquer um de nós pode escrever e até registrar em cartório um documento, que pode ser chamado de “testamento vital” ou de “diretiva antecipada de vontade”, no qual determinamos o que permitimos – e o que não permitimos – no caso de sermos levados a um hospital ou precisarmos de cuidados médicos.
Passei a preparar meu testamento vital desde que acompanhei as duas grandes possibilidades do fim de uma vida, anos atrás, quando ela se dá no palco de um hospital. E percebi que, para mim, uma amante do cinema e da literatura de terror nas obras de ficção, não haveria terror maior na vida real do que morrer numa UTI, amarrada a fios, entubada e sozinha. Não mais uma mulher, uma vida em curso, mas um objeto de intervenção médica. Quero morrer sem dor física, ou pelo menos com o mínimo de dor possível, de preferência na minha casa, rodeada por aqueles que eu amo. E espero conseguir viver da melhor forma possível até o fim – o que inclui viver a minha morte com dignidade.
Se a resolução do Conselho Federal de Medicina (leia aqui) é uma boa notícia, vale a pena pensar também sobre o que ela nos diz para além do texto. Uma resolução do CFM não é uma lei, mas uma regulamentação da prática médica feita pelo órgão de classe, responsável por fiscalizar e normatizar o exercício da medicina no país. É importante, sem dúvida que é, mas há muito ainda a lutar para que recuperemos nosso direito de escolha. E podemos começar com a seguinte questão: em que momento delegamos aos médicos a decisão sobre o nosso morrer? Que é, em última instância, uma decisão sobre o nosso viver?
Dando alguns passos para trás, para enxergarmos o quadro maior, poderíamos pensar no quanto é curioso ser preciso uma resolução do CFM para dizer que é aquele que vive e aquele que morre quem tem o direito de escolher sobre a sua vida e a sua morte. Como alguém, nós ou os médicos, fomos capazes de pensar que essa decisão pudesse pertencer a outra pessoa? A que ponto chegamos para que seja preciso que os médicos nos devolvam algo que sempre foi nosso? Como foi que nos alienamos do processo da vida, tanto que aceitamos ser transformados em sujeitos passivos de intervenção e de decisão médica num momento tão crucial de nossa existência?
O fato é que, desde o século XX, a morte tornou-se marginal na nossa sociedade, algo a ser escondido dentro dos hospitais, em ambiente asséptico. E o morrer tornou-se um ato quase obsceno, que nos lembra de nossos limites num momento histórico obcecado pela juventude e pela potência. Nossa crescente impossibilidade de lidar com a certeza da morte produziu pelo menos duas distorções: médicos que abusam do poder e extrapolam limites e pessoas infantilizadas no momento de tomar uma das decisões mais importantes da vida.
Reparem que escolho a palavra “pessoas” – e não “pacientes”, nosso nome a partir do momento em que entramos num hospital, clínica ou consultório médico. Como pessoas, temos uma história, um percurso, uma teia de sentidos. Como pacientes, como a etimologia da palavra nos prova, tanto quanto a prática cotidiana, somos esvaziados de nossos sentidos e de nossa história para nos tornarmos um sujeito passivo. A palavra “paciente” vem do latim patientia, que significa “virtude que consiste em suportar os sofrimentos sem queixa”.
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Somos “pacientes” com relação a um outro, que tem poder sobre nós. E não é obra do acaso que, tanto na posição de doentes quanto na de velhos, médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, assistentes sociais, fisioterapeutas etc seguidamente nos tratam por diminutivos, como se fôssemos crianças pequenas. É difícil quem não tenha vivido ou testemunhado esse tratamento num hospital, clínica ou consultório. Parece apenas trivial, alguns consideram até carinhoso, outros vagamente irritante, mas a escolha das palavras desvela nosso lugar – e também um processo histórico e um embate no campo da ética.