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domingo, 26 de novembro de 2017

" As meninas francesas" / Heraldo Pereira



Heraldo Palmeira:

As meninas francesas

Elas destoavam de tudo e todos ao redor, pois não eram ilhas teclando seus individualismos, como ficou comum de se ver. Apenas liam



As meninas francesas deviam ter entre treze e quinze anos. Aguardavam o embarque. Eram quatro. Eram quatro livros. Abertos, sendo devorados.
Os smartphones e outros cacarecos digitais estavam lá, displicentes, espalhados sobre a mesa da lanchonete. Milagrosamente esquecidos, até pouco vigiados.



As meninas francesas destoavam de tudo e todos ao redor, pois não eram ilhas teclando seus individualismos, como ficou comum de se ver. Apenas liam. E, fosse pouco, também conversavam como nos velhos tempos. Ainda por cima, naquele idioma lindo! Comentavam entre elas alguns pontos das próprias leituras, rabiscando as páginas com anotações. Como nos velhos tempos. Eram lindas as meninas daquele jeito!
Sim, elas conversavam animadamente e isso parecia algo estranhíssimo. Senti um sopro suave no coração. As letras pareciam flutuar formando palavras, como um éter que a gente quase consegue ver antes de evaporar.
Aquelas francesinhas não eram ninfetas, não eram lolitas, não pareciam parte desse jogo de sedução. Não tinham sabor de frutas forçadas a amadurecer antes da hora. Não pareciam vítimas da vida cheia de modismos e imposições. Eram apenas meninas embaladas em jeans, camisetas e tênis. Sem batom, sem glamour. Duas delas usando óculos de grau sem qualquer complexo. Sem antecipar o tempo de suas vidas. Apenas liam e conversavam, como sabíamos fazer antes de fingir ter esquecido. Eram lindas! Talvez por isso.
Ao anúncio de voo iminente, juntaram tudo em suas mochilas, mas permaneceram sentadas, entregues aos seus livros. Deixaram para seguir no fim, quando praticamente todos já haviam atravessado o portão rumo à pista. Foram as últimas a entrar no avião, logo depois dos seus adultos de estimação. Lendo, lendo, lendo, lendo. Caminharam pelo corredor até seus assentos e seguiram lendo a viagem inteira.
Na revista de bordo, li a respeito de uma espécie de clube do livro por assinatura. Pensei nas meninas francesas e seus livros, e na leitura como tábua de salvação para a ignorância generalizada que nos mostra seus dentes afiados o tempo inteiro. E que, muito mais do que amedrontar, entristece.
Lembrei do menino no jantar da noite anterior, no restaurante do hotel. Manteve-se cabisbaixo, vidrado no smartphone, enquanto todos os presentes aderiram ao Parabéns pra você a partir da chegada do bolo de aniversário que seus (envergonhados) pais e avós caprichosamente encomendaram.
Para quebrar o constrangimento, fiz um gracejo e convoquei o rapazinho a apagar a velinha. Usei o velho truque de dizer que, se vacilasse, eu mesmo apagaria. O desprezo no olhar que mereci foi tamanho que pensei em soprar e sair à francesa. Imagino que tradução ele encontrou para mim.
O sopro tíbio não teve força para trazer junto o sorriso cobrado pelos parentes para as fotos. Ele apenas apagou, como se apagasse todos os chatos que lhe cercavam fora do seu mundo virtual. Como quem cumpre um compromisso indesejado, sopra um incômodo para longe. Lacônico, distante, quase imantado por aquela telinha maldita.
Pena que eu não tivesse bola de cristal para antecipar o dia seguinte e me sentir salvo pelas meninas francesas e seus livros abertos, sendo devorados. Voltei à realidade com o anúncio do pouso. Saí apressado, mas deu tempo vê-las indo no rumo do embarque internacional.
Imagino que as meninas francesas vararam a noite voando a caminho de casa, lendo, sendo felizes, descobrindo o mundo escondido nas letras que quase flutuavam como um éter que a gente quase vê, antes de virarem palavras para contar histórias. Senti um sopro suave apagando aquela velinha que por pouco não queimou meu coração.
Ainda estou me perguntando se aquilo tudo foi mesmo real, ou se terei sido enganado por alguma holografia no meio da mesmice que nos encerra neste berço esplêndido de coisa nenhuma.
Refiz minhas caminhadas pelas margens do Sena manuseando livros naquelas famosas caixas verdes, sebos quase camelôs onde os buquinistas, especializadíssimos, comercializam raridades impressas, livros, gravuras e cartazes de uma Paris que já não existe, mas parece viva.
Esses comerciantes – simpáticos ou antipáticos como só os parisienses antipáticos conseguem ser – estão lá compondo um dos circuitos mais importantes da cidade. Na margem esquerda, entre Ilha de Saint Louis e Ponte do Carrossel. Na margem direita, entre Hôtel de Ville e Louvre.
Eles que são história em tempo real. Que fazem circular a palavra escrita surrada, já lida, que maravilhou, que foi tocada por tantos. Páginas marcadas a lápis e borracha, rabiscadas, copiadas, roubadas, vivas.
Páginas que passarão pela vida das quatro meninas francesas que passaram como poesia, me dando alento, me olhando por dentro, velando por mim. Sem pressa, como devem ser as verdadeiras meninas. Lindas como o som de um acordeão francês. Lidas como as palavras espalhadas pelas margens do Sena. Vividas no tempo certo, como um sonho bom.

domingo, 8 de junho de 2014

Um desencontro com a tecnologia moderna....

07/06/2014
 às 15:00 \ Política & Cia

HERALDO PALMEIRA: a genialidade da tecnologia, com as redes sociais e tudo o mais, jamais será maior que a nossa — e que o afeto, e que a sociabilidade plena. (E confiram o vídeo instigante)

tecnologia
“Renego as tecnologias? Claro que não. Ou não estaríamos aqui, trocando informações e ideias diante de uma tela iluminada. Apenas defendo seu uso coerente, secundário, complementar, pois o papel central jamais deixará de ser nosso” (Ilustração: unplugseries.com)
MUNDO TECNOLÓGICO
Por Heraldo Palmeira*
Bons tempos aqueles em que nos juntávamos em patotas para conversar.
Calçadas e pracinhas eram quase templos de ser feliz.
Também havia lugar para papel, lápis e canetas registrando interesses, bordando bilhetinhos apaixonados.
Até hoje sou viciado em Bic comum e caderneta, para rabiscar minhas pequenas relevâncias. E olhe que sou rapidíssimo nos teclados, herança do curso de datilografia e das máquinas de telex – tecnologias hoje confinadas no dicionário ou na memória dos mais velhos.
Assisti à explosão da comunicação digital que apelidamos de redes sociais, um conjunto de estímulos virtuais sabiamente desenhados para orientar o consumo e a toada. Algo que encanta mais os jovens, naturalmente atraídos para as bugigangas eletrônicas vendidas como panaceias capazes de matar o tédio da vida moderna. Algo que tem apressado desnecessariamente a vida comum.
Vi como fui tratado quase como uma peça de museu quando afirmei peremptoriamente meu interesse comedido por tais “modernidades”. Vi como quase todos discordaram quando eu disse que essa febre era uma boa porta de entrada para neuroses e para o isolamento social. E para doenças que ainda nem conhecemos direito, mas que começam a se manifestar e a preocupar os operadores de saúde, já atônitos e sem a menor ideia de antídotos e de gastos futuros que serão exigidos com tratamentos para as tecnopatias.
Continuo acreditando que é da natureza humana a sociabilidade plena, o afeto, a contemplação, a transformação pelo conhecimento que não dispensa legados, os compartilhamentos presenciais, o dom de ouvir o outro, o prazer imenso da troca de olhares, a extraordinária comunicação contida nos gestos.
Renego as tecnologias? Claro que não. Ou não estaríamos aqui, trocando informações e ideias diante de uma tela iluminada. Apenas defendo seu uso coerente, secundário, complementar, pois o papel central jamais deixará de ser nosso. Não há como fugir do fato de a inteligência artificial ser resultado da inteligência natural, sem possibilidade de ordem inversa.
Quem duvidar pode aguardar sentado até ser apresentado ao conjunto de máquinas capazes de idealizar um cérebro – serve até mesmo um daqueles cérebros de azeitona.
Aposto que a posteridade herdará o fóssil de um crédulo. Sinceramente, não me surpreende ver um vídeo como este que segue abaixo, circulando no mundo digital e pregando contra ele, protagonizado por um jovem.
Não o divulgo como se eu tivesse razão. Apenas feliz por ver que o óbvio está óbvio.
*Heraldo Palmeira é documentarista e produtor musical.
Agora, vejam o vídeo: