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terça-feira, 30 de maio de 2017

A Liberdade existe... ?


segunda-feira, maio 29, 2017

Idiotas da tecnologia se julgam livres porque trabalham usando WhatsApp - 

LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 29/05
A primeira vez que ouvi a expressão "cansaço dos materiais", de um amigo engenheiro, me pareceu muito peculiar, uma vez que significa que pontes, cimento, prédios, ferros se cansam. Se eles, que são indestrutíveis, se cansam, que dirá nós.

Achei, com o tempo, que se tratava de uma expressão de rara elegância. Até os átomos ficam de saco cheio de viver na função de ser átomo. Uma ponte cansa de ser ponte, um prédio de ser prédio, uma viga de ferro de ser viga de ferro. Pareceu-me ser este cansaço indício de que exista um Deus. E que os materiais foram feitos também à sua imagem e semelhança. E que não haveria um Deus mais sincero do que um Deus cansado do que criou.

Somos um mundo fadado ao cansaço, mas sem direito a ele. O imperativo do sucesso é a prova de que nosso mundo está condenado. O simples fato de que o normal, esperado e necessário, é o crescimento econômico eterno já nos devia fazer duvidar do que fazemos todo dia.

Você é uma daquelas pessoas que pensam ter resolvido esse problema só porque tem tempo de ir a pé para o trabalho? Ou come sem pressa de manhã porque esse hábito em nada vai alterar sua capacidade de consumo? Bem, se você for uma dessas pessoas, ou é rica ou não tem qualquer possibilidade de sobreviver (e nesse caso não estaria me lendo nesse exato instante, estaria passando fome em algum lugar), ou vive só com muito pouco e jamais deixará de ser só porque faz parte da cultura single (hoje em dia o marketing dá nomes em inglês para justificar seus custos, tipo "cozinhar em casa" virou "comida comfort"), ou seu pai paga pra você não ter pressa de manhã e você fará duas pós-graduações, uma em Nova York e outra em Barcelona.

Não há saída dessa economia non-stop. Quer saber por que não há saída? É fácil descobrir. Venha comigo. Quem pode abrir mão de wi-fi, cultura mobile, Airbnb, aviões cada vez mais seguros, direitos civis cada vez mais definidos, hospitais cada vez mais equipados, exames laboratoriais cada vez mais precisos, Netflix, gente fácil pra fazer sexo sem encher o saco depois, bikes cada vez mais leves, crianças cada vez mais caras e da cidade de Gonçalves como paradigma de gente bacana, tolerante e cool (esse tipo de gente custa muito caro)?

Ninguém abrirá mão dessas coisas, e muitas outras —a lista é interminável e cansativa, então não vou insistir nela.

Nunca houve na Terra uma geração de jovens mais cansada e sem futuro. Claro que falam muito deles como estrelas high-tech. Uma mistura de high-tech com sensibilidade vegana. Pais babam quando bebês colocam os dedinhos na tela do iPhone 7 e sorriem. Como são inteligentes esses pequenos!

Ouço constantemente de jovens que eles são narcisistas, intolerantes com pessoas reais (e tolerantes com rúculas, baleias e crianças na África), ansiosos e arrogantes porque nós lhes legamos um mundo em chamas. Um mercado de trabalho incerto os acompanha há algum tempo. Alguns idiotas da tecnologia acham que o Chatbot fará um mundo melhor graças a sua brilhante inteligência artificial. O novo gozo é com o "algoritmo", mas o que ele vai fazer mesmo é destruir empregos na velocidade da luz. Esses idiotas da tecnologia se julgam mais livres porque trabalham pelo WhatsApp em casa no domingo.

Mas como escapar dessa economia frenética, se o Waze e o Uber são formas de algoritmo, e se sem esses dois as pessoas bacanas não existem? E temos que criar algoritmos cada vez melhores e mais rápidos e mais precisos para termos mais gente superbacana.

Todos os que afirmam ser possível escapar desse frenesi da produção têm um neurônio a menos. Faça um teste e liste o que você considera essencial pra sua vida. Sem mentir, tá? Se pegar um celular na mão, desista de qualquer utopia, você já perdeu a partida porque esse seu celular "cool", provavelmente, depende de salários baixos em algum elo da cadeia produtiva, do contrário ele seria ainda mais caro do que é.

A China venceu. Você compra roupa "cool" feita por mão de obra quase escrava sem culpa porque no Facebook xinga o Trump e acha o Haddad um grande estadista.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

"Dentro Temer" / Reinaldo Azevedo

sexta-feira, dezembro 16, 2016

Agenda do governo Temer avança, apesar da histeria dos porras-loucas - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 16/12

Quantas vezes, leitor, aquele seu amigo que vestiu verde e amarelo e estreou nas ruas gritando "Fora, Dilma" já o encontrou numa festa, no shopping ou no Metrô e reclamou de Michel Temer? A meio-tom, pesaroso, como se tentasse esconder até de si mesmo a decepção, exclama: "Esse Temer é muito devagar!"

Então, meu caro, eu gostaria de tranquilizá-lo um pouco, apesar dos números do Datafolha, que deveriam ser lidos com lupa pelos conservadores, nem sempre instruídos pela lógica elementar.

A desordem institucional, como nos ensina a história, só interessa ao mundo-canismo populista, de esquerda ou de direita.

Seria demasiado escrever aqui que você não deve acreditar na imprensa. Afinal, é este um texto de imprensa. Mais ainda: todas as evidências que vou listar de que temos um bom governo –dadas as circunstâncias (mas quando é que não, né?)– estão noticiadas na... imprensa! É que jornalistas são treinados para caçar contradições, não coerências. Somos todos viciados em bastidores, suspeitas, conspirações palacianas. Às vezes, perdemos a noção do conjunto, apegados demais à miudeza de interiores.
Temer está no governo há menos de quatro meses. Há muito tempo, como diz uma amiga, "o país não via uma agenda que fizesse sentido". Ou que fosse composta de escolhas que caminham numa mesma direção.

E olhem que não me lembro de tão explosiva conjugação de irresponsabilidades oriundas do Judiciário, do Ministério Público, do Legislativo e de setores da imprensa (sim, sempre estamos no meio...). Varões e varoas da República perderam completamente a noção de institucionalidade. Ministros do STF, por exemplo, concedem liminares ilegais com mais ligeireza do que César atravessou o Rubicão. São os Césares de hospício! Procuradores têm a ousadia de convocar as ruas contra o Congresso, exibindo algemas como credenciais políticas. Parlamentares sonham com retaliações...

Ainda assim, nesse pouco tempo, o governo Temer conseguiu:

a - aprovar uma PEC de gastos que, quando menos, impedirá o Brasil de virar um Rio de Janeiro de dimensões continentais:

b - aprovar na Câmara a medida provisória do ensino médio, depois de enfrentar um cipoal de mistificações e desinformação;

c - aprovar a MP do setor elétrico, área especialmente devastada pelo governo de Dilma Rousseff, a dita especialista;

d - aprovar o projeto que desobriga a Petrobras de participar da exploração do pré-sal –e contratos já foram fechados sob os auspícios do novo texto;

e - aprovar a Lei da Governança das Estatais, que é o palco principal da farra;

f - apresentar uma boa proposta de reforma da Previdência, que vai, sim, enfrentar muita resistência;

g - no BNDES, ultima-se o levantamento do estrago petista, e o banco se prepara para retomar financiamentos.

Não é pouca coisa. E por que, lava-jatismo à parte, a sensação de pasmaceira? Uma resposta óbvia: nada disso tem impacto imediato na vida das pessoas. Então não existe uma resposta popular aos atos virtuosos, que possa se impor à eventual má vontade ou cegueira de analistas.


Mas esse não é o fator principal. Olhem o que vai acima. Estamos diante de uma agenda que interessa ao Brasil e aos brasileiros, mas que não é nem "de" nem "da" esquerda. Tampouco traduz o espírito policialesco dos Savonarolas e jacobinos, com seu gosto por fogueiras e guilhotinas. Trata-se de escolhas que dizem respeito ao território da política, não da polícia.

Por isso extremistas de esquerda e de direita gritam: "Fora, Temer!"

Por isso digo: "Dentro, Temer!"

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Um alerta de Contardo Calligaris sobre segundo casamento / Folha de São Paulo

quinta-feira, novembro 03, 2016

Que tal cada um entrevistar os ex-parceiros do outro?  

CONTARDO CALLIGARIS

FOLHA DE SP - 03/11
O filme de Tate Taylor, "A Garota no Trem", é adaptado de um bom romance de Paula Hawkins (Record). É difícil comentar a história sem estragar o prazer dos futuros espectadores. Então apenas apresentarei meus pensamentos na saída do cinema.

1) Poucas coisas são tão chatas quanto o casamento com um parceiro ou uma parceira alcoolistas.

É chato subjetivamente, por razões narcisistas. Quem não bebe é levado a acreditar em uma das duas: a) o outro bebe porque a convivência comigo deve ser insuportável; b) não sei por que o outro bebe, mas, para ele/ela, conviver comigo não é uma razão suficiente para ele/ela ficar sóbrio/a.

É chato objetivamente. Imagine o sexo com alguém que pode adormecer no meio de uma transa. E imagine as catástrofes sociais que a bebedeira do outro pode produzir quando você se aventura a compartilhar a vida social com ele/a.

A própria relação é chata, porque o alcoolista é facilmente ciumento e paranoico. O homem, em particular, está convencido de que ele está lutando contra a adversidade do mundo, enquanto sua companheira (que não bebe) estaria aproveitando a vida (eventualmente com amantes). Com isso, o alcoolista pode se tornar estupidamente violento.

Alguns se imaginam resolver o problema bebendo junto com seu parceiro ou com sua parceira, mas as relações de casais alcoolistas são tempestuosas: a bebedeira do casal nunca consegue ser "coordenada".

Em suma, alcoolismo não condiz com casamento: se beber, não case.

2) Na adolescência, voltando para casa nos fins de tarde de inverno, eu olhava para as janelas acesas, onde aconteciam vidas parecidas com a minha, mas que eu imaginava melhores, cheias de afetos ternos e alegres. Eu permanecia no frio da rua de propósito, para idealizar melhor o aconchego das outras famílias, as vidas supostamente mais plenas que a minha –e, claro, os amores que, atrás daquelas janelas, deviam ser perfeitos, absolutos.

Tive sorte: comecei a imaginar que toda paz aparente escondia um mistério. À luz de lustres e abajures, os outros pareciam felizes, mas, de fato, quais horrores se escondiam na obscuridade dos closets? Conselho: pratique essa pergunta sem moderação.

Idealizar o amor de outros casais não alimenta a esperança, mas o desespero.

3) Geralmente, separações acontecem por boas razões, mas, na hora, a gente se esquece disso.

Ou seja, sabemos que o que tinha a perder já foi perdido –ou talvez nunca tenha existido. Mas lamentamos as separações como se, nelas, sempre estivéssemos perdendo "algo". Qualquer separação produz o fantasma de uma perda.

Talvez a gente se sinta humilhado por ter fracassado na realização de um conto de fadas ou de um sonho de nossos pais: o fato é que, frequentemente, a separação é vivida como um dano irreparável, embora ela seja para ambos uma libertação.

4) Hoje é frequente que as pessoas se casem ou se juntem numerosas vezes ao longo da vida. Um novo casamento é quase sempre visto como a solução dos problemas amorosos anteriores, ou como a compensação dos defeitos do casal anterior. Isso lisonjeia os novos amores: ele ou ela nos "salvam", segundo o caso, da "bruxa" ou do "ogro".

De fato, os casamentos que se sucedem são menos diferentes do que parece –a gente muda pouco, e nossos casais também mudam pouco. Em vez de negar essa realidade (decretando a absoluta novidade de nossa escolha mais recente), seria mais sábio fazer um bom uso da série de nossas uniões e desuniões.

Afinal, quem conhece melhor nosso novo amor é seu parceiro ou sua parceira anterior. E ex-parceiros/as nos conhecem melhor do que nosso novo amor. Portanto, que tal cada um entrevistar os "ex" do outro? Seria um bom jeito de antecipar (quem sabe resolver) problemas antigos que se repetirão, mais cedo ou mais tarde, no novo casamento.

Essa prática tornaria as separações mais civilizadas, porque seria perigoso deixar uma lembrança sinistra em companheiras ou companheiros anteriores.

Sem esperar esse costume ser instituído, note-se que o fato de ter mantido boas relações com seus ou suas "ex" deveria ser considerado um ponto a favor de qualquer "candidato" prospectado.

Na hora de empregar alguém, a gente pede referências aos empregadores anteriores. Por que não fazer o mesmo na hora de casar?

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Conselho gourmet de Pondé : seja simples ...arroz com feijão, ovos estrelados e farofa... e talvez uma galinha empanada e pronto !

Gente 'cult' tende a ser chata e afetada em suas opiniões

 LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 31/10

O mundo pós-moderno em que vivemos é um prato cheio para frescuras. A palavra "frescura" pode soar um pouco estranha para quem não possui um repertório um pouco mais sofisticado em filosofia. Se isso acontece com "frescura", quanto mais com a palavra "desconstruído", que tem em sua história gente chiquérrima, como o filósofo francês Jacques Derrida (1930-2004). Quanto a "pós-moderno", então, nem me fale. Nada é mais chique do que algo ser pós-moderno. Voltaremos já ao que seria "pós-moderno".

Vamos por partes. Dizer que algo é uma "frescura" implica dizer que ela tem um frescor que lhe é peculiar, um certo tom de "novo", "avantgardiste", diria alguém versado em teoria da arte moderna. Portanto, sua raiz está no âmbito da natureza e da arte, ao mesmo tempo! Talvez, lá atrás, encontremos algum fenômeno a ver com mudança de estação do ano. Tal conceito também afeta qualquer teoria da moda.

Um detalhe: "frescura" sempre carrega alguma nuance de afetação. Quando algo ou alguém é "fresco", quer dizer que ele ou ela é um tanto exagerado (afetado) nas suas ações. Os mais velhos diriam: uma nota acima do necessário.


Na sua evolução semântica ("evolução semântica" quer dizer mudança de significado de uma palavra ao longo do tempo), a palavra "frescura" acabou assumindo um sentido próximo a "wannabe". O que quer dizer isso? Simples: "(to) want to be", em inglês, significa "querer ser algo","wannabe" significa "querer ser algo chique que não se é de verdade". Tipo gente que queria ser culta e por isso frequenta lugares "cult" para todo mundo pensar que é culta. Sacou? Conhece alguém assim? Aposto que sim. Gente "cult" tende a ser chata e afetada em suas opiniões.

E "descontruída"? Essa tem a ver com nossa época pós-moderna. Filósofos franceses chiques do final do século 20 se puseram a dizer (Jean-François Lyotard entre eles) que nossa época havia se cansado de "grandes narrativas". Em língua dos mortais, isso quer dizer ficar de saco cheio de muita teoria complicada e que é preciso ler muito para entender e, por isso mesmo, gastar o cérebro demais. Para os pós-modernos tudo é relativo e Shakespeare é igual a alguém batendo tambor repetidas vezes em algum recanto perdido do mundo.

Os pós-modernos começam então a misturar coisas que normalmente não iriam juntas, como bolsa Prada com pijamas no Iguatemi, paletós caros com sandálias Havaianas no Copacabana Palace e, assim, desconstruir tudo o que foi tomado como evidência antes deles. Daí chegamos a "frescuras desconstruídas" de nossa conversa de hoje.

Uma coisa que se adora desconstruir hoje em dia é a comida. Quando todo mundo acha que pode fazer comida gourmet, é melhor você se ater à comida da sua avó. Vou dar um exemplo real que me foi contado por uma amiga, recentemente. Olha só que primor de frescura (comida fresca que quer parecer inteligente e chique).

Um restaurante "top" na França. Num dado momento, é servido a ela uma "espuminha" com uma coisa escura e dura no meio do prato, completamente indecifrável. Mulher educada e com trânsito no mundo sofisticado, fica perplexa diante da dificuldade de identificar tamanha "desconstrução" do que seria muito banal, como carne, peixe, salada ou algo semelhante. Na sua modéstia típica de quem é de fato elegante, pergunta para o inteligente chef o que viria a ser aquilo.

Surpresa! Você não imaginaria a resposta, assumindo que você não seja uma dessas pessoas frescas que acham que comida deve ser inteligente.

A revelação máxima: a coisa escura era uma pedra. Pedra com espuminha. A desconstrução máxima do que seria comida: uma pedra. Nenhum animal come pedra. Mas humanos desconstruídos, sim. Hoje em dia está na moda fazer espuminha de tudo na comida. De todas as cores: vermelho, amarelo, azul, verde, marrom...

A ideia dessa comida desconstruída é que você chupe a pedra molhando ela na espuminha até secar o prato e a pedra. Alguém poderia se perguntar qual o limite da desconstrução gourmet. Que tal baratas africanas com espuminha de fezes seca?

terça-feira, 18 de outubro de 2016

"Desde John Lennon convivemos com a praga das 'celebridades humanitárias' / João Pereira Coutinho

terça-feira, outubro 18, 2016

Desde John Lennon convivemos com a praga das 'celebridades humanitárias' - 

JOÃO PEREIRA COUTINHOResultado de imagem para foto de Bob D

FOLHA DE SP - 18/10

1. Serão precisas mais mulheres na política? A pergunta, confesso, sempre me provocou urticária mental. E as respostas também: sim, diziam os eruditos, e depois não acrescentavam uma única razão válida para defender a "política no feminino" (ou, em casos extremos, "cotas para mulheres" em listas eleitorais ou cargos institucionais).

Havia sempre a palavra "igualdade", um vocábulo poético e nulo. Mas ninguém demonstrava –seriamente, empiricamente– que tipo de contributo extra as mulheres dão à política pelo simples fato de serem mulheres.

Perante esse vazio, eu defendia a minha posição inicial: igualdade de oportunidades, tudo bem; mas é o mérito, e não a anatomia, que as sociedades democráticas devem premiar.


Confesso que tenho de repensar os meus conceitos –por causa da eleição presidencial americana. Segundo informa esta Folha, a revista "The Atlantic" realizou uma enquete sobre Hillary Clinton e Donald Trump. Conclusão: se apenas os homens votassem, Trump seria eleito presidente dos Estados Unidos.

Acontece que as mulheres também votam e são elas que concedem uma maior vantagem para Hillary. Essa vantagem, de acordo com as últimas pesquisas, garante a vitória da donzela por dois dígitos.

Claro que, para sermos rigorosos, o voto feminino estaria sempre com Hillary. Primeiro, porque ela é democrata. Depois, porque é mulher. E, no caso particular de 2016, porque Trump ficou "persona non grata" entre as senhoras depois do "Pussygate".

Seja como for: se Hillary for eleita em novembro, é às mulheres americanas que o mundo deve agradecer.

2. Há mulheres e mulheres. De um lado, elas salvam os Estados Unidos de um destino grotesco; do outro, elas envergonham a restante classe quando andam pela Europa em "missões humanitárias".

Para começar, Pamela Anderson, "atriz", visitou Julian Assange na sua gaiola londrina e mostrou preocupação com a saúde do australiano.

"Muito pálido", disse ela, uma descrição que não me convence: Assange, repito, é australiano; Pamela, relembro, está habituada à pigmentação da série "Baywatch". Não admira que, aos olhos dela, Assange tenha as feições de um cadáver.

De resto, a pergunta fundamental é outra: o que levou Pamela Anderson a visitar Assange na embaixada do Equador? Saber que a "atriz" também é ativista dos direitos dos animais só serve de insulto ao pobre Assange.

Do outro lado do Canal da Mancha, o nome é Lily Allen, "cantora". No campo de refugiados de Calais, na França, a sra. Lily pediu desculpas públicas a um adolescente afegão de 13 anos. "Em nome do meu país", disse ela, com as câmeras a filmar o momento.

A frase é inane por motivos óbvios: a culpa pela tragédia dos refugiados deve ser depositada em Damasco e aos pés do terrorismo islamita, não em Londres. Mas a pergunta fundamental, uma vez mais, é outra: o que levou Lily Allen a visitar um campo de refugiados?

Bem sei que, desde John Lennon, a praga das "celebridades humanitárias" nunca mais nos largou. Falo de pessoas semialfabetizadas que, não contentes com o sucesso artístico, desejam consolar o ego com assuntos mais adultos.

Mas o meu problema com as "celebridades humanitárias" não está na megalomania delas, aliás legítima. Está na atenção igualmente infantil que os jornalistas profissionais concedem aos caprichos dessas crianças.

Será que, naquele dia, em Calais, nenhum jornalista questionou seriamente o que estava ali a fazer?

3. Bob Dylan venceu o Nobel da Literatura e a polêmica instalou-se entre os críticos: mereceu? Não mereceu?

Eu, modestamente, acho que sim –mas a questão que me move é outra: e será que isso interessa? Não, não vou recorrer ao argumento clichê de lembrar a longa lista de autores que não venceram a medalha. Todos conhecemos os casos de Tolstói, Joyce, Nabokov, Borges etc. etc.

Prefiro olhar para o problema do avesso e recordar os que venceram: Carducci, Spittler, Sholokhov, Mo Yan etc. etc. Aqui entre nós: o leitor conhece algum deles? Leu a obra? É capaz de citar de cor algum título memorável?
Em caso negativo, o melhor é escutar um pouco de Bob Dylan. A ideia de que o Nobel confere qualidade e imortalidade a um autor é uma fantasia desmentida pelos fatos.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Não reclame do Big Brother... Já existe o banheiro transparente ! / João Pereira Coutinho

terça-feira, outubro 04, 2016

A civilização só existe pela recusa da transparência totalitária - 

JOÃO PEREIRA COUTINHOResultado de imagem para imagem de banheiro transparente

FOLHA DE SP - 04/10

Li há tempos que já existem banheiros transparentes na via pública. Não brinco. Seria na Ásia? Na China? Talvez, talvez. Mas o meu ponto é outro: qual é o problema de termos um vaso sanitário para uso (nosso) e contemplação (dos outros)?
Os moralistas dirão: é falta de pudor. Ou, melhor ainda, é uma redução da nossa humanidade ao estado mais animalesco. Concordo. Mas os moralistas não entendem que vivemos na "sociedade da transparência"?

Uso essa expressão porque ela é o título de um ensaio –mais um, primoroso– do filósofo Byung-Chul Han. E, a páginas tantas, o professor Han cita Jean-Jacques Rousseau (quem mais?). Escrevia Rousseau as palavras que se seguem: "Só um mandamento da moral pode suplantar todos os outros, a saber, este: nunca faças nem digas seja o que for que o mundo inteiro não possa escutar."

E conclui o genebrino, em antecipação do banheiro transparente: "Eu, pelo meu lado, sempre considerei como sendo o mais digno de apreço de entre os homens esse romano cujo desejo era que a sua casa estivesse construída de maneira a poder ver-se tudo o que nela se passava."

As palavras de Rousseau fazem parte do seu particular programa filosófico: uma crítica radical às mentiras da "civilização" –e uma apologia da vida "autêntica" que existiria no estado da natureza.

Sim, eu sei: Rousseau nunca defendeu um regresso à selva. Mas as suas propostas transportam ainda o aroma selvático de um tempo em que o homem não precisava de "artifícios" (como portas opacas ou papel higiênico, imagino eu) para conhecer a felicidade pura.

Como relembra Byung-Chul Han, Rousseau tinha uma preferência por cidades pequenas, onde "cada um está sempre sob os olhos do público, o censor nato dos costumes dos outros" e onde "a polícia exerce uma vigilância fácil sobre todos".
Arrepiado, leitor? Não esteja. Se o banheiro transparente ainda é um exclusivo asiático, o Ocidente já cultiva há muito os seus próprios banheiros transparentes. Basta olhar para as "redes sociais", onde a maioria gosta de expor a intimidade com a mesma naturalidade com que um animal defeca no mato.

A esse respeito, recordo sempre um amigo que me dizia ter cortado relações com um cunhado porque ele publicara as fotos do filho bebê no Facebook. Fotos do bebê vestido, despido; brincando, dormindo, tomando banho; não sei se havia um penico no portfólio, mas você entende a ideia. O meu amigo considerava o gesto aberrante; o familiar discordava e, mais, nem percebia onde estava o erro.

O nosso mundo é o mundo sonhado por Rousseau. "A polícia exerce uma vigilância oficial sobre todos?" Afirmativo. Vivemos em democracia. Mas o Estado, pelos usos e abusos da tecnologia, sabe mais sobre os cidadãos do que em qualquer outra era histórica. Sabe quanto você ganha ou gasta; com quem vive, com quem fala; para onde viaja, onde fica; e, nas matérias mais íntimas, não é preciso uma polícia política. O cidadão revela voluntariamente o que sobra da sua existência.
Imagino um ex-agente da Pide portuguesa ou da KGB soviética a suspirar de nostalgia: "Tivemos tanto trabalho com vigilâncias, grampos, torturas –e agora tudo isso é grátis!"

Mas não é apenas o Estado que vive dentro do nosso banheiro transparente. "Cada um está sempre sob os olhos do público, o censor nato dos costumes dos outros"?
Afirmativo novamente. Como escreve Byung-Chul Han, a "sociedade da transparência" consegue a proeza de nos transformar em seres vigiados e vigilantes ao mesmo tempo. Não apenas por uma autoridade externa –um Big Brother clássico. Mas porque esse Big Brother, agora, somos nós.

"E qual é o problema?", pergunta o leitor que gosta de publicar fotos dos filhos no Facebook.
O problema é que a nossa civilização só existe pela recusa da transparência totalitária. "A arte é a natureza do homem", dizia Burke.

Traduzindo: aquilo que nos separa dos animais é o artifício, as convenções, até as repressões. É desse artifício que brota a arte, o conhecimento, a sedução, a paz possível.

E é também por causa dessa "cortina" que nos podemos retirar do mundo para dar descanso à vida: a vida que pensa, sente, imagina, planifica.

Rousseau escrevia que o luxo da civilização corrompia o homem.

A "sociedade da transparência" considera que a civilização já é um luxo. O futuro dos banheiros transparentes não terá nem civilização, nem luxo, nem homens.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

"O Complexo de Lindbergh" / Kim Kataguiri

terça-feira, agosto 23, 2016

KIM KATAGUIRI

Resultado de imagem para IMAGEM de cara de pauO Complexo de Lindbergh - 

FOLHA DE SP - 23/08

Lindbergh Farias (PT-RJ) causou um dano imenso ao país. E aqui não me refiro à sua vergonhosa atuação como senador da República, mas ao trauma que deixou em toda uma geração.

Símbolo das manifestações contra o ex-presidente Fernando Collor, o então ativista rapidamente se tornou o queridinho da imprensa. Apesar de, na época, ser do PCdoB e, portanto, defender ideias absolutamente retrógradas, pintaram nele a imagem de uma juventude que renovaria a política, a representação da esperança de um novo país pós-impeachment.

A ascensão política de Lindbergh Farias foi meteórica. De deputado federal para prefeito de Nova Iguaçu (RJ), de prefeito para Senador. Igualmente veloz foi o desgaste de sua imagem. Logo que entrou no Senado, seguiu a política hipócrita de seu partido, o PT, e se aliou ao seu antigo inimigo, Fernando Collor. Mais recentemente, o ex-cara-pintada e o ex-presidente se encontraram na Lava Jato, ambos alvos de inquéritos. O frescor da nova política —que seria trazida por um jovem militante comunista— mostrou ser apenas um bafo da velha politicagem.
Como bem definiu Reinaldo Azevedo, Lindbergh é um cara-pintada que virou cara de pau. Antes, liderava movimentos estudantis pelo impeachment de Collor. Hoje, além de ser aliado dele, diz que impeachment é golpe. Não há decepção maior para aqueles que o apoiaram na época, mas mantiveram a coerência e também tomaram as ruas contra o governo Dilma.

É exatamente por isso que diversas pessoas têm criticado a iniciativa de alguns líderes de movimentos de rua, como Fernando Holiday, do MBL, que está concorrendo à vereança em São Paulo. Quem foi cara-pintada e não superou o trauma Lindbergh crê que não é possível participar de movimentos de rua e atuar na política institucional sem abrir mão de todas as virtudes. Isso, na prática, é criminalizar a política. Se as virtudes e os ideais de uma pessoa não conseguem nem sequer sobreviver a uma eleição, então devemos jogar a democracia no lixo. Essa mentalidade foi genialmente batizada por um colega de movimento de "Complexo de Lindbergh".
"Ah, mas Lindbergh também era honesto, idealista, foi a política que o corrompeu!". Antes de qualquer coisa, é preciso desmentir essa história de que Lindbergh mudou. Em sua essência, ele sempre foi o que é. Já quando protestava contra Collor, era militante do PCdoB e "companheiro" de luta de Lula. Ele sempre defendeu os mesmos ideais. A única diferença é que passou de comunista revolucionário a comunista fisiológico -o que, levando-se em consideração as implicações de ser revolucionário, é um inegável avanço.

Os caras-pintadas que se decepcionaram com Lindbergh não podem ser reféns de um complexo que só beneficia aqueles que só estão na política para que a coisa pública atenda aos seus fins privados -e isso, como sabemos, inclui certos companheiros do partido de "Lindinho". Só será possível mudar se não criminalizarmos a mudança possível.