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terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

"Big Brother Brasília" //João Pereira Coutinho

terça-feira, fevereiro 27, 2018

Big Brother Brasília

JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 27/02

Qualquer forma de política 'carismática' é um perigo brutal para a sobrevivência das democracias liberais

Luciano Huck para presidente? Ele diz que não. Acredito. Mas, se a decisão fosse outra, o Brasil estaria na vanguarda das democracias ocidentais —e Fernando Henrique Cardoso percebeu isso.

Anos atrás, na revista "Foreign Policy", FHC publicou um bom artigo sobre o futuro dos partidos políticos. "Futuro", vírgula: FHC não acreditava que houvesse futuro para os partidos. As tradicionais divisões ideológicas entre esquerda e direita já não tinham o mesmo significado —e a mesma militância.

E, além disso, a desilusão do eleitorado com o "establishment" faria emergir movimentos, grupos, "populistas" (termo meu, não de FHC) capazes de rivalizar com as estruturas decrépitas e assaz rígidas dos partidos. Fernando Henrique foi um visionário.

Claro: existe uma diferença entre mim e FHC. Para ele, essa nova realidade extrapartidária não parece ser um mal em si, sobretudo se os partidos não se souberem recriar para responder aos desafios do presente. O entusiasmo de FHC com Huck demonstra isso: o apresentador "areja", "põe em xeque os partidos", afirmou o ex-presidente.

Para mim, qualquer forma de política "carismática" representa sempre um perigo brutal para a sobrevivência das democracias liberais e das suas instituições. Mas admito que o "espírito do tempo" está mais próximo de FHC.
E mais próximo de Luciano Huck, já agora. Um exemplo: a revista "The Spectator" publicou um ensaio revelador sobre os possíveis candidatos democratas para as eleições norte-americanas de 2020. Não perco tempo com nomes menores. Prefiro avançar para os nomes maiores, que aliás surgem na capa da revista: Oprah Winfrey, Tom Hanks, George Clooney. O que têm os três em comum?

Sim, créditos progressistas imaculados. Mas o essencial não está na ideologia. Está na celebridade: os três são produtos da indústria de entretenimento. Exatamente como Donald Trump. A lógica é fulminante: se Donald Trump foi um produto midiático de sucesso, é preciso responder na mesma moeda.

Essa hipótese arrepia a minha costela platônica —e escrevo "platônica" no sentido próprio do tempo. Se existe uma ideia consensual na história da política moderna é a velha crença de que os melhores devem governar, como Platão defendia na sua "República".

Bem sei que a realidade nem sempre cumpre o ideal. Mas o ideal não existe para ser cumprido. Existe, quando muito, para que a realidade se aproxime dele.
Dito de outra forma: se a política é, ou deve ser, a mais nobre das artes, então espera-se de um governante algumas virtudes que exigem preparação e conhecimento.

Tudo isso está em causa nas "democracias midiáticas" em que vivemos. Não são os melhores que vencem; os melhores são aqueles que vendem. E vendem o quê? Uma imagem que corresponde às preferências voláteis e sentimentais dos consumidores.

Quando os democratas cogitam a hipótese de um George Clooney para a Casa Branca, ninguém perde um minuto para indagar as ideias do senhor. Ideias? Quais ideias? O que interessa é o sorriso, o olhar, o traje e dezenas de outras imbecilidades avulsas. As democracias midiáticas não querem políticos, mas estrelas pop.

E no futuro?

Não pretendo horrorizar ninguém. Mas imagino facilmente dois cenários.

O primeiro seria transformar os partidos políticos em organizações muito semelhantes às agências de modelos. Haveria o "estilista" ideológico --alguém responsável por um programa eleitoral mais ou menos clássico; e, depois, haveria o candidato-modelo para desfilar na "passerelle" dos comícios e dos debates.

O candidato-modelo seria apenas uma máscara, uma marionete do partido, com a única missão de apaixonar as massas. Uma vez eleito, ele continuaria o seu trabalho de fachada, deixando para os comuns mortais a mecânica burocrática do governo.

Outro caminho seria acabar com os partidos e, por exemplo, criar um show televisivo --um "Big Brother Brasília", digamos. Nesse caso, seriam as massas a escolher diretamente o presidente, depois de assistirem às suas proezas em sunga ou biquíni.

Hoje, olhamos para Donald Trump ou Oprah Winfrey como excentricidades. Dois nomes que representam o triunfo do entretenimento sobre a política.

Amanhã, quando o dilúvio chegar, ainda vamos olhar para trás e recordar Trump ou Oprah como os últimos grandes estadistas.

João Pereira Coutinho
É escritor português e doutor em ciência política.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

"A internet e as redes sociais estão supervalorizadas e esmagam a 'soberania do ser" / João Pereira Coutinho

Esquerda e direita estão contaminadas pelo vírus do pensamento de grupo 

JOÃO PEREIRA COUTINHO

Image result for lula discursandoFOLHA DE SP - 23/01


Houve um tempo em que também eu debatia política em público. Relembro: um estúdio de TV, alguém de esquerda do outro lado da mesa. O pivô lançava o tema. A pessoa de esquerda corria atrás do osso como um mastim esfomeado.

Quando eu falava, havia um terrível anticlímax. De vez em quando, esforçava-me: dizia algo "de direita", só para não ser despedido na hora. Mas grande parte do tempo ficava contemplando o outro, admirando a sua vitalidade ideológica e o interesse que ele tinha por, sei lá, a política de saneamento básico.

Várias vezes fitava o meu "adversário" (não ria, por favor) e tentava ver se tinha as pupilas dilatadas. "Talvez sejam drogas", pensava, confrontado com aquelas cataratas (verbais). Não eram. Era entusiasmo.

Atenção, atenção: não falo de "entusiasmo" no sentido prosaico da palavra. Um ser humano sem entusiasmos é um cadáver ambulante. Não. Falo no sentido filosófico –aqui, como em quase tudo, David Hume (1711-1776) é o meu mestre.

Dizia ele que existem duas espécies de "falsa religião": a superstição e o entusiasmo.

A primeira instala-se na alma amedrontada do crente perante "males infinitos e desconhecidos", que exigem proteções igualmente fantasiosas.

A segunda revela um sentimento de exaltação (ou de "presunção", para usar o termo de Hume) em que o "entusiasta" ignora a razão ou a moral –e se entrega nos braços do orgulho e da ignorância.

É isso que torna o "entusiasmo" tão perigoso: essa combinação de vaidade e ignorância.

O entusiasmo continua na religião, sem dúvida: não conheço nenhum terrorista islamita que não seja um entusiasta. Mas, sobretudo no século 20, esse "estado de espírito" foi cultivado pelas "religiões seculares" de que falava Raymond Aron.

O comunismo e o nazismo foram formas de "entusiasmo" político (que deram no que deram). As batalhas ideológicas de hoje são novas encarnações de entusiasmo.

Pensei em tudo isso quando assistia ao vídeo do momento: a entrevista de Cathy Newman, no Channel 4, ao filósofo "pop star" Jordan Peterson. Conhecia Peterson de outras andanças: o seu "Maps of Meaning", um tratado sobre o lugar dos mitos na história humana, merece leitura.

No vídeo em questão, Peterson sublinha um pormenor importante das discussões contemporâneas: a "política de identidade" é intrinsecamente autoritária porque imita a mesma "estrutura de crença" dos regimes autoritários. Que crença é essa?

A ideia de que o grupo é mais importante do que o indivíduo. Antigamente, esse grupo podia ser "o proletariado", em nome do qual se cometeram os maiores atropelos. Hoje, Peterson dá como exemplo os "ativistas trans" que policiam a linguagem e o comportamento de terceiros porque julgam falar em nome de todos os "trans".

Não é preciso grande preparação filosófica para vislumbrar a falácia da retórica de grupo. Não existe "o proletariado". Existem trabalhadores vários, com aspirações e limitações particulares. De igual forma, não existem "os trans". Existem indivíduos concretos, que vivem a sua sexualidade de forma diversa.

Infelizmente, o prof. Peterson deixou-se contaminar pelo "entusiasmo" da jornalista e esqueceu-se do outro lado da história: a submissão ao pensamento de grupo não é um exclusivo de "esquerdistas radicais".

Basta escutar a "direita radical" e as suas proclamações contra "os estrangeiros" –e em defesa dos "nacionais", claro– para compreender a grande ironia do debate político atual: esquerda e direita estão contaminadas pelo vírus do pensamento de grupo.

Pelo meio, perde-se a importância (e a primazia) do indivíduo –essa ficção pequeno-burguesa, como diziam nazistas ou comunistas, e que as mentes autoritárias sempre tentaram calar ou destruir.

E como se chegou até aqui?

Em artigo recente para o "The Millions", Sarah LaBrie acusa a internet (e as "redes sociais") de produzir as manadas que esmagam a "soberania do ser". É um bom ponto de partida –mas não de chegada: a internet deu voz e potenciou as manadas; mas elas sempre existiram no longo cortejo da história.

Como dizia David Hume, onde existe vaidade e ignorância, existe entusiasmo. E a alma dos homens sempre foi fraca: entre a solidão do individualismo e a pertença aos entusiasmos da tribo, o macaco eterno não hesita.


terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Sobre feminismo, sobre homens, etc /

Imagem relacionadaFeminismo de hoje é tão reacionário quanto o machismo neandertal 

 JOÃO PEREIRA COUTINHO


FOLHA DE SP - 02/01



Passei as festividades natalinas lendo Camille Paglia. Não sei se é pecado. Talvez seja. Mas que alegria –e que prazer!– ler uma feminista com atividade cerebral completa, que não se limita a defender a dignidade das mulheres –mas a dos homens também.

O título da sua coletânea de ensaios –"Free Women, Free Men: Sex, Gender, Feminism" (libertem mulheres, libertem homens: sexo, gênero e feminismo)– diz tudo: queremos uma sociedade de mulheres e homens livres –ou uma farsa infantil onde as mulheres são tratadas como espécies protegidas e os homens como selvagens inimputáveis?

O feminismo de Paglia, que provoca horrores mil nas "neofeministas", pode parecer demasiado severo para a sensibilidade histérica dos nossos dias. Mas subscrevo esse feminismo, não apenas por razões intelectuais –mas pessoais.

Cresci entre mulheres. Vivo entre elas. E quando relembro as mulheres da minha vida todas elas parecem encarnar o ideal de Paglia. Independentes. Irônicas. Corajosas. Que, sem surpresas, sempre gostaram de partilhar o espaço com homens adultos, dignos, refinados.

Para Paglia, o novo feminismo abandonou esse imperativo de exigência para que as mulheres sejam "amazonas", ou seja, senhoras da sua liberdade. Transformou as mulheres em seres débeis e vulneráveis, que devem ser constantemente protegidas de um mundo hostil e predatório.

Nota importante: Paglia não nega que o mundo é hostil e predatório. Sempre foi, sempre será. Ela apenas reafirma que as mulheres devem aprender a lidar com isso, não a retirar-se da arena como seres assustadiços.

Infelizmente, a voz de Camille Paglia foi abafada pela cultura da vitimização reinante. A Europa, nesse quesito, é terra devastada.

Leio na imprensa que a virada do ano em Berlim teve, pela primeira vez, uma "zona segura" para as mulheres. Em 2016, centenas foram abusadas por homens de "aparência árabe e norte-africana". Em 2017, houve uma espécie de "resort" para as espécies femininas que se sintam ameaçadas –e com a presença permanente da Cruz Vermelha.

Pode parecer piada. Ou cenário de guerra. Não é. As autoridades do país entenderam que a melhor forma de proteger as senhoras é pela segregação social (como nos países islâmicos). Será preciso elaborar sobre a aberração?

O papel de uma sociedade política civilizada não passa pela separação dos sexos. Passa pela garantia de segurança e ordem para todos. E de punição exemplar para os criminosos, independentemente da etnia, religião ou tara privada.

Será que a única coisa que o feminismo do século 21 tem para oferecer às mulheres é uma jaula? E não será essa oferta um insulto e uma degradação das próprias mulheres?

Mas a Alemanha não é caso isolado. Na Suécia, há uma nova lei a caminho para punir a violação. O premiê Stefan Löfven fala em "reforma histórica" –e eu tremo: relações sexuais, só com "consentimento explícito". Mas de que "consentimento" falamos? Verbal? Gestual? Só vejo uma forma de produzir uma prova de inocência irrefutável: um documento escrito.

Imagino: dois amantes, em momento de excitação. Subitamente, um deles para o andamento da dança e entrega um formulário para ser preenchido e assinado pela donzela arfante.

Dizer que isso é um dramático "turn-off" é um eufemismo. Mas não é um eufemismo declarar que uma lei dessas, mesmo na versão oral ("sim, declaro solenemente que tens a minha autorização para contatos fálico-vaginais"), é uma caricatura grotesca da intimidade entre adultos.

Será que a única coisa que o feminismo do século 21 tem para oferecer às mulheres é um papel e uma lapiseira?

Não tenho filhas. Se tivesse, Camille Paglia seria leitura obrigatória. Só para que elas aprendessem que as mulheres não são vítimas naturais de um mundo que existe para as amedrontar ou violar.

As mulheres devem ser mulheres: livres, independentes, conscientes do seu poder sexual, capazes de avaliar os riscos (e os homens) sem a mão paternalista de outras mulheres (ou de outros homens) que gostam de defender as suas "honras".

"Defender a honra?" Precisamente. O feminismo contemporâneo é tão reacionário como o machismo neandertal: ambos tratam as mulheres com a mesma condescendência. Ambos olham para as mulheres como o "sexo fraco".


É o eterno retorno

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

"Nossa sobrevivência depende das ficções que criamos sobre quem somos"


joão pereira coutinho
Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.

Nossa sobrevivência depende das ficções que criamos sobre quem somos

O ano termina e a imprensa faz os seus balanços: filmeslivrosdiscosPeças de teatro. Peças de lingerie. É um simpático ritual.
Não fujo à responsabilidade: o meu filme de 2017 foi filmado em 2014. Mas isso interessa? Não interessa. Quem perde tempo com pormenores cronológicos arrisca-se a ignorar "Força Maior", o inteligente e subversivo filme de Ruben Östlund que só agora assisti.
Imagine a leitora que era casada com um homem rico, bonitão, atlético. Imagine a leitora que a família resolvia passar férias em resort de ski onde só os abastados podem entrar. Depois de tudo isso, imagine também –atenção: vem aí o "spoiler"– que presenciava uma avalanche de neve no elegante terraço do hotel.
Ângelo Abu/Folhapress
Primeiro, a beleza do fenômeno, captada pelo onipresente celular. Depois, a avalanche chegando cada vez mais perto, estranhamente perto, perigosamente perto.
Até o momento em que há pânico entre os hóspedes, gritos, fugas apressadas –e o maridão rico, lindo, atlético decide instintivamente fugir, deixando para trás a leitora e os dois filhos.
Felizmente, foi apenas um medo infundado –a neve ficou ainda longe do terraço. Mas podemos dizer, para usar a linguagem moderna, que a relação está com problemas?
Poder, podemos. Mas a vida continua e, no fim das contas, ninguém é perfeito –certo?

Errado, responde Ruben Östlund. Sobretudo quando o maridão regressa para a família, fazendo de conta que nada se passou. Mas nós sabemos, a mulher sabe, que tudo se passou naqueles segundos. Uma quebra de masculinidade, digamos; o maridão rico, lindo, atlético revelou a sua covardia.
"Força Maior", como o título indica, é um tratado sobre as forças maiores que definem as nossas vidas. Superficialmente, temos a força maior da natureza, que, de vez em quando, esmaga as vaidades humanas com esplendorosa brutalidade.


Mas o que interessa para Östlund não são as forças "exteriores"; são, antes, as forças "interiores", primitivas, instintivas que a civilização reprimiu (obrigado, dr. Sigmund) mas que nunca nos abandonam completamente.

No início, a família representa essa civilização com todos os símbolos do conforto "burguês": cartão de crédito generoso, roupa sofisticada para brincar na neve, até escovas de dente elétricas para eliminar as cáries com maior eficácia. Mas basta um soluço da natureza para que a fêmea proteja as crias –e o macho desapareça para salvar a pele.

Visualmente, esse contraste entre "civilização" e "estado de natureza" é reforçado pelos espaços centrais da narrativa: de um lado, o hotel de luxo; do outro, a paisagem gélida, desértica, quase lunar.
Mas o melhor do filme não está apenas nesse momento fugaz em que o animal humano, medroso, visceral, suplanta o ser civilizado. Está na pequena fenda que ele abre entre o casal. Sim, eles tentam ignorar, depois dialogar, depois fazer piada, depois enterrar o assunto com uma trégua racional.
Só que a fenda nunca desaparece; a mulher nunca se esquece –e o maridão começa a minguar aos nossos olhos, aos olhos da família, aos seus próprios olhos, até ser um farrapo de homem em busca de redenção.


Essa redenção surge por obra e graça da mulher, que oferece ao marido uma nova máscara de bravura. Só então percebemos como a nossa sobrevivência depende das ficções que criamos sobre as pessoas que somos. Sem essas mentiras piedosas, poucos suportariam a imagem crua da mais básica bestialidade.

E se o leitor pensa que jamais, em tempo algum, imitaria o amedrontado homem que abandonou mulher e filhos, cuidado: ignorar o animal que habita em nós é a forma mais imediata de nos comportarmos como ele.
*
P.S. Na coluna da semana passada, falei de Gore Vidal como um dos maiores ensaístas do século 20. Alguns leitores pediram bibliografia sobre o assunto. Aconselho três livros para saborear o talento do homem.
O primeiro é "United States", volume colossal com 40 anos de meditações sobre política, artes e assuntos pessoais. Os outros dois são os volumes de memórias "Palimpsest" e "Point to Point Navigation".
Sobre William Buckley, a sua nêmesis ideológica, recomendo "Miles Gone By" –a autobiografia de um conservador americano que ficaria horrorizado com o estado a que os republicanos chegaram.

domingo, 3 de dezembro de 2017

"Se a arte não desculpa o crime, o crime não inculpa a arte ..." / João Pereira Coutinho

joão pereira coutinho
Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.

Se a arte não desculpa o crime, o crime não inculpa a arte 

Angelo Abu/Folhapress
Acabo de assistir ao último longa de Noah Baumbach, "The Meyerowitz Stories (New and Selected)", na Netflix. O filme vale pelo roteiro, pelos atores, pela inteligência diletante de Baumbach.
Mas vale, sobretudo, pelo papel de Dustin Hoffman como o patriarca da família —Harold, um escultor egocêntrico, temperamental, pedante, arrogante, amoral (a lista não tem fim).
Terminei o filme levitando —e depois, de regresso à realidade, descubro: duas atrizes acusam Dustin Hoffman de assédio sexual.
Pergunto: será que a conduta do cidadão Dustin afeta o gênio do ator Hoffman?
A minha resposta é negativa —e concordo com a posição de Hélio Schwartsman nesta Folha. "Pessoas ruins podem fazer coisas boas", escreve o colunista com a sua habitual lucidez. E eu gostaria de sublinhar a palavra "coisas".
Não é preciso subirmos aos patamares metafísicos da arte para comprovarmos a divisão das águas. Eu também seria capaz de comprar uma cadeira bela a um carpinteiro eticamente grotesco.
Admito que possam existir limites. Para citar um caso amplamente glosado, será possível elogiar a arquitetura das câmaras de gás de Auschwitz?
Não creio. É como se a memória da tragédia materializada naquela construção impedisse qualquer juízo extramoral. Mas eu também não seria capaz de comprar a cadeira bela se o carpinteiro a tivesse usado para matar a família inteira.
Quando o objeto vem manchado com as cores da infâmia, não há beleza que o salve.
Dito de outra forma: a cadeira, se estivesse limpa, ficaria bem na minha sala; o carpinteiro, se não fosse inocente, ficaria bem na prisão.
E o que é válido para o carpinteiro, é válido para Roman Polanski : é perfeitamente possível imaginar os filmes de Polanski na tela —e o diretor na cadeia.
Todos conhecemos a história: na década de 1970, Polanski violou uma menor nos Estados Unidos.
Após acordo judicial, a acusação baixou o chicote para relações sexuais com menor. Polanski aceitou, confessou —e fugiu para a Europa.
Será legítimo admirar os seus filmes apesar do crime?
Ou as feministas que pedem boicote a uma mostra do diretor em Paris têm razão?
O raciocínio mantém-se: depende de que filmes falamos.
Se, por absurdo, Polanski tivesse filmado o seu próprio crime —ou, para não sermos tão brutais, se os seus filmes fossem exortações a esses crimes, não haveria nenhuma consideração artística autônoma.
Mas os filmes de Polanski pertencem a outra esfera. Se a arte não desculpa o crime, o crime não inculpa a arte.
Anos atrás, ainda sobre o caso Polanski, o jornal "The New York Times" organizou um debate com vários autores e acadêmicos. Para saber, no fim das contas, se a divisão entre o homem e a obra deve ser respeitada.
Relembraram-se fatos óbvios: olhamos para a história da arte e alguns dos maiores criadores eram seres moralmente questionáveis.
Do Renascimento (que Vasari relata no seu indiscreto "Vidas de Artistas") à presente modernidade (Wagner, Picasso, Pound etc.), nem sempre as grandes obras foram produzidas por santos e beatos. Mas quem relembra isso ao passear pelo Louvre, ao escutar os "Niebelungos", ao ler os "Cantos"?
Aliás, o verbo correto não é relembrar; é conhecer.
No debate promovido pelo "Times", o roteirista Damon Lindelof foi direto ao ponto: 200 anos depois, o consumidor de cultura desconhece o lado lunar de muitos autores que admira.
Daqui a 200 anos, pergunta ele, será que as gerações futuras vão assistir a "Annie Hall" com o pensamento perturbante de que Woody Allen casou com a filha?
Boa piada. Boa pergunta. Boa resposta.
Talvez a melhor forma de resolvermos as tensões presentes entre a arte e a biografia do criador seja imaginar esse mundo futuro, onde não estaremos nós nem as nossas confusões e histerias transitórias.
Longe de mim desvalorizar os crimes dos indivíduos. Repito: esses crimes não têm perdão. Mas a grande arte é sempre perdoada.
Quando os bisnetos dos meus bisnetos encontrarem Dustin Hoffman em "The Meyerowitz Stories (New and Selected)", tudo que terão na frente é o talento imenso de um ator eterno. 

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

"Liberdade de expressão também significa liberdade para ser imbecil" / João Pereira Coutnho

joão pereira coutinho
Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.

Liberdade de expressão também significa liberdade para ser imbecil

Sakchai Lalit - 25.set.2001/Associated Press
Homem tailandês vende camisetas com o rosto de Osama bin Laden, em 2001
Homem tailandês vende camisetas com o rosto de Osama bin Laden, em 2001
Usar uma camiseta de futebol com o nome "Bin Laden" gravado nas costas dá direito a prisão?
Na França, dá. Leio no "The Daily Telegraph" que Chakib Limane, 34, foi condenado a seis meses de cadeia pela proeza. Nas palavras do próprio, ele usava a camiseta durante o jogging "só por brincadeira".
Mas não foi o jogging o verdadeiro crime, o que seria compreensível. Foi, segundo o tribunal, a "apologia do terrorismo" que ele espalhava pelas ruas.
Pior: o nosso Chakib não tinha apenas camisetas "Bin Laden". Também tinha vestuário com os nomes de Mullah Omar, o reputado líder Talibã, e Ali, o Químico, o famoso bombista iraquiano.
Manifestamente, Chakib Limane tinha uma queda por torcionários. Mas, pergunto, ter uma preferência por torcionários deve ser punido com a prisão?
Duvido. Terrorismo é coisa séria e nunca marchei com o rebanho que procura "compreender", leia-se "desculpar", as atrocidades islamitas. Não há compreensão nem desculpa para a morte indiscriminada de civis.
Mas é preciso distinguir a mera estupidez de danos objetivos. Quando alguém tenta "compreender", leia-se "desculpar", o terrorismo islamita, isso é um sintoma de estupidez (no mínimo) ou de psicopatia intelectual (no máximo). Mas essas simpatias não devem ser criminalizadas, exceto se se converterem em exortações diretas à matança.
Se usar camisetas com criminosos célebres fosse punido com prisão, desconfio que não haveria espaço nos presídios para todos os adolescentes que ostentam Che Guevara com orgulho. Liberdade de expressão também significa liberdade para ser imbecil.
Mas o caso francês não é apenas uma questão de liberdade de expressão. Todos os estudos apontam para o mesmo cenário: as prisões da Europa são vespeiros de formação terrorista.
O mesmo "Daily Telegraph", aliás, informa que o Ministério da Justiça britânico está alarmado com o número de publicações jihadistas confiscadas no seu sistema prisional. "Não é possível tolerar uma situação em que as pessoas entram na prisão como criminosos e saem terroristas", afirmou o governo de Sua Majestade.
Na França, a mesma coisa: 50% da população prisional (no mínimo) é muçulmana, qualquer coisa como 20 a 30 mil pessoas (não há número seguros, apenas estimativas). Mesmo que só uma ínfima parte se radicalize, é o suficiente para repetir os atentados de Paris ou Nice.
Se as autoridades franceses desconfiavam do "jogger" Chakib Limane, o melhor era deixá-lo à solta —e mantê-lo sob vigilância. A prisão, para certos casos, não é um castigo. É uma universidade —e um início de carreira. 

terça-feira, 24 de outubro de 2017

"Um país onde Alexandre Frota é modelo conservador merece estudo "

terça-feira, outubro 24, 2017

Um país onde Alexandre Frota é modelo conservador merece estudo 

JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 24/10


É uma triste verdade: Henry David Thoreau (1817-1862) é cada vez mais o meu herói. A verdade é triste porque nunca fui um libertário. Mas o contexto determina o meu texto: como lidar com o fanatismo e a imbecilidade que esquerda e direita vomitam todos os dias?
Pela fuga. Pelo isolamento. Pela vida no bosque, onde os animais são mais civilizados do que a espécie humana em geral.

Nesta semana, em duas revistas diferentes ("The Economist" e "The Spectator"), contemplei o estado a que chegaram as universidades anglo-saxônicas, tomadas de assalto por meninos semiletrados que gostam de censurar as opiniões que consideram ofensivas.

O problema é que essas crianças têm uma saúde mental assaz frágil. Resultado: tudo é ofensivo para elas. Até a chuva que cai, imagino eu. Um mundo de silêncio seria o ideal —o silêncio de um cemitério, embora a palavra "cemitério", pela sua evocação da morte, possa ser um insulto desnecessário para quem acredita na eternidade da juventude. As minhas desculpas antecipadas.

A "The Economist", mais otimista, diz que o mundo não está perdido: nas universidades, sempre houve batalhas ideológicas contra ideias polêmicas. Certo. Mas a mesma revista informa que 20% dos estudantes universitários defendem a violência contra palestrantes controversos.

Mais: em Yale, 42% dos estudantes (e 71% dos estudantes conservadores) preferem não emitir opinião sobre política, raça, religião ou gênero.

Só a Universidade de Chicago se salva do dilúvio. Por quê? Porque decidiu aprovar uma declaração onde se recusa a proteger os estudantes de ideias ou opiniões que os mesmos considerem ofensivas. Para Chicago, não é permitido cancelar palestras ou criar "espaços seguros" para que as crianças se sintam, enfim, seguras.

Sem surpresa, não há praticamente incidentes na Universidade de Chicago, prova definitiva de que a covardia das universidades é a razão primeira para haver problemas.

Na "The Spectator", a escritora Lionel Shriver, uma progressista "old school", relembra outros números: 38% dos britânicos e 70% dos alemães defendem que o governo deve proibir discursos ofensivos para as minorias. A típica receita autoritária: por favor, Estado, exerce a tua censura para que eu não conviva com aquilo de que não gosto.

O Estado agradece —e cresce em autoridade e poder. Um clássico.

Tudo isso são loucuras esquerdistas? Seriam, sim, se uma certa direita não fosse igual.

Nas últimas semanas, tenho acompanhado as polêmicas "artísticas" brasileiras. Confesso que rio. Muito e alto. Um país onde Alexandre Frota é uma referência ideológica "conservadora" deveria ser caso de estudo internacional.

Mas uma parte da direita brasileira também tem o seu interesse. Deixemos a questão da "pedofilia" para psiquiatras: não é preciso ter lido Freud para perceber que aqueles que veem "pedofilia" quando uma criança toca no braço de um artista pelado em pleno museu estão a falar mais dos seus fantasmas do que da realidade propriamente dita.

O que me impressionou foi ver essa direita a pedir mais Estado, mais intervenção do Estado, mais censura do Estado —e não, como seria de esperar, mais responsabilidade individual, ou familiar, na forma como se educam os menores.

Se isso é a direita, eu prefiro a esquerda. Entre a cópia e o original, eu sempre preferi o original.
Corrijo: eu não prefiro ninguém. Só o bosque, embora os meus amigos aconselhem prudência. Longe da civilização, eu não duraria 24 horas.

Talvez eles tenham razão. E eu, suspirando por ar limpo e alguma companhia, sinto uma estranha admiração pelos pensadores utópicos do século 19.

Com uma diferença: imagino uma comunidade de adultos, e não de autômatos, onde as pessoas discutem livremente; usam as palavras sem medo das patrulhas; educam os filhos sem mendigar o chicote do Estado; e até, Deus me livre, flertam com mulheres (ou homens) sem temerem acusações de machismo, assédio ou violência psicológica.

Seria uma espécie de reserva natural, digamos, onde se entra e de onde se sai voluntariamente —e longe desse berçário onde esquerdas e direitas gritam e fazem birra na mesma linguagem infantil.
Com sorte, as patrulhas acabariam por se destruir mutuamente —e nós, os sobreviventes, poderíamos sair da reserva e fazer o que mais interessa: começar de novo.

sábado, 14 de outubro de 2017

"Os indivíduos valem pelos seus atos, não pelas suas palavras""

joão pereira coutinho
Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.

Os indivíduos valem pelos seus atos, não pelas suas palavras

Yann Coatsaliou - 23.mai.2017/AFP
O produtor Harvey Weinstein no 70º Festival de Cannes, na França
O produtor Harvey Weinstein no 70º Festival de Cannes, na França
NOVA YORK - É um conselho elementar: os indivíduos valem pelos seus atos, não pelas suas palavras. Qualquer um é capaz de uma retórica competente. E seria possível escolher dois ou três discursos políticos de grandes criminosos da história –discursos sobre a liberdade, a igualdade, a fraternidade– sem revelar o essencial sobre as suas condutas miseráveis.
Mas os atos, sobretudo quando praticados anonimamente, são a verdadeira revelação de caráter.
Um caso exemplar é o de Harvey Weinstein. Cheguei a Nova York alguns dias atrás. Pensava eu que as notícias seriam Donald Trump de manhã à noite. Erro. Trump desapareceu dos radares e a mídia só fala de Weinstein.
Apresentações: Harvey Weinstein é um dos mais conhecidos e reconhecidos produtores de cinema atuais. Sem falar do resto: democrata "convicto" e um ilustre apoiante e doador do Partido Democrata.
Problema: Weinstein terá cometido uma série de assédios sexuais contra atrizes e outro pessoal que trabalhava para a sua produtora –a poderosa Miramax. Angelina Jolie ou Mira Sorvino estão na longa lista das alegadas vítimas. Sabemos que Weinstein celebrou 8 acordos extrajudiciais para esconder os crimes. Há também acusações de violação– três, para sermos exatos.
E a "The New Yorker", dois dias atrás, liberou uma gravação onde Weinstein mostra os seus dotes "predatórios" com uma modelo italiana.
Perante isso, que fez o nosso Harvey? Escreveu uma carta para o "The New York Times", jornal que iniciou as denúncias, e que deveria ser estudada como uma obra-prima da hipocrisia progressista.
Para começar, Harvey Weinstein afirma que lamenta os seus comportamentos; mas atira com as culpas para a contra-cultura das décadas de 1960 e 1970, onde se formou e deformou. Os assédios, no fundo, não foram dele; foram dos "hippies" que lhe ensinaram o mantra "faça amor, não guerra", mesmo que esse amor envolva uma certa dose de ameaças e brutalidades.
Mas o momento esplendoroso da carta acontece quando o produtor promete, perante as massas "liberais", que reforçará o seu combate à National Rifle Association –e que doará 5 milhões de dólares para apoiar mulheres diretoras.
O "The Wall Street Journal", em editorial, resumiu com propriedade o raciocínio que existe na cabeça de Weinstein: "Se eu relembrar ao ilustre público que apoio as causas certas, serei perdoado pelos meus pecadilhos. Donald Trump não tem salvação quando agarra as mulheres pela genitália; mas eu, combatendo a cultura das armas e batalhando pela igualdade dos sexos, terei a absolvição dos otários."
Infelizmente para Weinstein, os otários não parecem disponíveis para semelhante bondade. Mesmo os otários –como Matt Damon, por exemplo– acusados de terem protegido o produtor no passado. Como? Pressionando jornalistas para não publicarem as denúncias.
Confesso: não sei se as acusações são verdadeiras ou falsas. E, aqui entre nós, não tenho uma curiosidade mórbida pelo assunto. Deixemos para a justiça o que é da justiça.
Mas também confesso que existe alguma ironia quando vemos um moralista devorado em público pela fúria de outros moralistas.