Postagem em destaque

Uma crônica que tem perdão, indulto, desafio, crítica, poder...

Mostrando postagens com marcador no cabelo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador no cabelo. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Você acha que o Brasil tem jeito... ? (5)

No cabelo, só gumex

Foram editadas várias leis definindo o teto salarial. Caíram quando arranjaram-se gambiarras para furar o limite
Gumex (Foto: Arquivo Google)
Carlos Alberto Sardenberg, O Globo
O presidente Michel Temer saiu-se com esta: “Nós lamentavelmente no Brasil temos um certo desprezo pela Constituição”.
Se fosse só pela Constituição, até que não haveria problema. Estaríamos respeitando as leis, decretos e portarias — regras que obedeceriam à letra e ao espírito da Constituição. Logo, esta, indiretamente, estaria sendo cumprida.
O presidente acha que é mais ou menos assim. Disse que a lei ordinária é apenas percebida, que um decreto do governo atrai muita atenção e que a portaria, essa sim, “é sempre obedecida”.
Digamos que o pessoal é mais atento às portarias, mas não por respeito, e sim por conveniência. As portarias sempre tratam de assuntos específicos, que interessam diretamente às pessoas. Mas como no caso das outras normas, a tendência é arranjar um jeito de escapar da regra que desagrada ou atrapalha.
Nos tempos recentes, de crises, essa tendência intensificou-se. Chegou até o Supremo Tribunal Federal, quando a presidente da Corte, Cármen Lúcia, decidiu que o governo do Rio não precisaria cumprir nem a Lei de Responsabilidade Fiscal nem contratos juridicamente perfeitos.
O caso se resume assim: o governo do Rio deve à União. Não pagou. Pela lei e pelos contratos, o governo federal tem não a opção, mas a obrigação de bloquear verbas destinadas ao Rio para cobrir o valor não pago.
Alegou o governo do Rio que estava em situação calamitosa, de modo que tinha o direito de permanecer inadimplente e não sofrer qualquer consequência por isso. A ministra concordou.
De maneira que ficamos assim: o governo do Rio quebrou porque gastou além da conta e, sobretudo, ilegalmente. Sim, isso mesmo, desrespeitou os limites de gastos fixados na Lei de Responsabilidade Fiscal. Diz o governo atual que não podia prever a crise. Conversa. Podia, sim. Além do mais, continuou gastando por conta mesmo quando as receitas já caíam. Logo, é culpado.
Ao dispensar o governo fluminense dos efeitos da inadimplência, a ministra caiu numa contradição insanável: uma administração que está em crise, porque gastou e se endividou irresponsavelmente e de modo ilegal, fica autorizada a gastar mais e tomar novos empréstimos.
Seria como perdoar o pessoal do caixa dois e autorizar novos caixas para as próximas eleições. Aliás, é o que deseja encaminhar o senador Edison Lobão, presidente da Comissão de Constituição e Justiça.
E assim vai: policial militar, pela Constituição, não pode fazer greve. Faz e fica por isso mesmo. Não é só o caso do Espírito Santo. Bombeiros do Rio já fizeram greve, conseguiram o que queriam e foram anistiados.
Mulheres de PMs ocupam a entrada dos quartéis. Ilegal. Qual seria a resposta legal? O governo do ES deveria ir aos tribunais, obter um mandado e retirar as mulheres. Havia risco de choques violentos? Nem isso. Ontem de manhã, apenas duas senhoras estavam sentadas em frente ao principal quartel de Vitória. E sabem qual a liminar obtida? As mulheres serão multadas.
E mesmo que houvesse risco de resistência das mulheres, a ordem legal teria de ser cumprida. Assim como ocupações de escolas são ilegais e deveriam ser reprimidas, sempre com mandado legal. Mas alguém se lembra de algum ocupante, líder estudantil ou dos professores chamado a responder pelos seus atos nos tribunais?
É até estranho que não tenham pipocado greves de PMs por toda a parte.
PMs alegam que ganham mal e, por isso, têm o direito de desrespeitar as leis. Repararam que é a mesma lógica do governo do Rio? Como gastou mais do que tinha, tem o direito de pedir mais dinheiro a Brasília mesmo que o gasto tenha sido ilegal.
Mas os PMs e outras categorias têm razão quando alegam que aparece dinheiro para os salários mais altos e para benefícios do pessoal de cima.
Verdade. E com a mesma lógica de driblar a lei pelos interesses pessoais ou corporativos. Exemplo: juízes, promotores, funcionários do alto escalão e políticos acham que têm todo o direito de ganhar salários e vantagens acima do teto legal.
Aqui, aliás, é um desrespeito em série. Já foram editadas várias leis definindo o teto salarial. E que caíram quando os interessados arranjaram gambiarras para furar o limite. Quando isso acontece, em vez de se aplicar a lei e cortar vencimentos, os interessados criam outro teto, incorporando as gambiarras.
Os romanos disseram bem: dura lex sed lex. Mas como lembram os mais antigos, aqui ficou assim: dura lex sed lex, no cabelo só gumex.
De farra, claro. Mas uma pesquisa da Fundação Getulio Vargas, de 2014, mostrou que 81% dos entrevistados consideravam fácil desobedecer à lei, sendo por isso preferível recorrer ao jeitinho.
Pois é.
Carlos Alberto Sardenberg é jornalista