Postagem em destaque

Uma crônica que tem perdão, indulto, desafio, crítica, poder...

Mostrando postagens com marcador linguística. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador linguística. Mostrar todas as postagens

domingo, 21 de agosto de 2016

"Um linguista que preste está consciente de que é preciso tirar as palavras dessa assepsia (dicionário) e sujá-las com o humano, deixando-as livres na língua para, só então, avaliar a adequação e inadequação delas..."


Valentina de Botas: Negligente com a 

língua e o país, Dilma Rousseff inaugurou o 

populismo de gênero

A essa farsante, não basta ser presidente, isso qualquer uma pode ser: ela é 'presidenta”

Por: Augusto Nunes  

Língua é mais do que dicionário e, ao contrário do que diz o senso comum, ele é submetido por ela. Não sou linguista como o leitor que veio ensinar o saber infértil dele, sou somente formada em Linguística, o que não é suficiente para me fazer linguista. Mas me lembro das aulas de Lexicografia e Lexicologia, na USP, em que a grande e querida mestra Maria Aparecida Barbosa esclarecia que os lexicógrafos coletam na fala viva, aquela em uso, o conjunto lexicológico que povoa o dicionário.
A lexicografia, belíssima ciência rigorosa e complexa com epistemologia e objeto próprios, não inventa nem impõe o léxico: ela o revela encarcerado e inerte na exatidão frígida do dicionário. Um linguista que preste está consciente de que é preciso tirar as palavras dessa assepsia e sujá-las com o humano, deixando-as livres na língua para, só então, avaliar a adequação e inadequação delas.
Para satisfação do leitor que não aprendeu nada com o saber, “presidenta” existe, o vocábulo embolorado jaz em qualquer dicionário da língua portuguesa; ninguém negou isso e o linguista sabujo supor que um jornalista com 40 anos de textos perfeitos ou que todos os incontáveis leitores dele ignoram isso não só rasteja entre patética sonsice e tristonha arrogância, mas também entre a chatice e o ridículo. A questão nunca foi de correção lexical, mas de mistificação, prática adorada por todo governante populista e autoritário.
O candidato a linguista oficial do reino extinto afirmou que “falo como linguista”; não, lamento, mas estudei alguns dos maiores e melhores linguistas brasileiros, li por dever e prazer linhagens de linguistas, e nenhum dissocia a correção no uso de uma palavra do uso dessa palavra – a liberdade que ela respira na língua submetida ao contexto, circunstâncias, motivações, afetos, razões, etc., do falante.
Nessa perspectiva, o lexicalmente correto “presidenta” é usado por Dilma Rousseff para inaugurar o populismo de gênero; a mulherzinha negligente com a língua e o país se valeu do insuportável politicamente que fantasia de assertividade o que é só canalhice – felizmente, esse assédio ao pensamento surgiu depois da invenção do humor, do sexo, do amor e da literatura ou seríamos uma espécie ainda mais tristonha no que temos de tristes – para adotar o vocábulo extemporâneo como mais uma forma de desviar a atenção do embuste real e grotesco em que se configurou enquanto construía uma projeção mítica e mistificada de si mesma.
À combatente de uma ditadura para instaurar outra; à supergerente que passava as madrugadas examinando projetos, mas alega que não sabia dos detalhes de Pasadena; à mulher que verga, mas não quebra porque é mais divertido quebrar um país; à governante que defendia o diálogo com o Estado Islâmico, mas não falava com o Congresso; a essa farsante, enfim, não basta ser presidente, isso qualquer um ou uma pode ser: ela é “presidenta”.
Em junho de 2013, num evento da CUT no Rio Grande do Sul, Dilma declarou que tinha nascido em todos os estados da federação e que “uma presidente tem de ser nascida e criada em todos os estados da Federação”. Claro, sabemos que isso é uma estultice tão colossal que nem chega a ser mais uma mentira da usina lulopetista, mesmo Dilma e o PT sabem que sabemos. Mas e daí? A vigarice desse discurso aposta não na mentira de partida, mas na de chegada: na resultante do extrato das falas de Dilma que vão preenchendo a estrutura mistificadora tão bem-sucedida com o jeca.  Assim é a máquina de mentira que consegue parir uma Dilma em cada estado, costurando esse ser grotesco pan/suprabrasileiro.
Era a metástase do cinismo petista replicando a mistificação, a estrutura que forjou o perfil soteriológico do líder deles. Assim como o jeca, revestido da mitologia que inventou um passado para ele, Dilma ganhou um projeto para a própria figura mítica. Portanto, nascer em todos os estados brasileiros atribui-lhe uma espécie de ubiquidade ontológica aristotélica, como se (e apesar de), tendo cada uma das naturalidades brasileiras, as 26 particularidades fizessem da presidente o ser cuja natureza fosse a mais genérica, ampla, integral, abrangente, completa e plenamente brasileira.
Autoritária como toda figura erigida na mentira, manipuladora como todo populista e de dentro do seu raquitismo intelectual e moral, na confluência de suas 26 reencarnações simultâneas geridas pelo único neurônio, jamais renunciará à construção mistificadora para compreender o Brasil e tornar-se tudo o que não é: apenas uma brasileira decente e, então, uma presidente decente.
Sugiro ao leitor-linguista-de-uma-palavra-só levar o conhecimento dele para tomar sol, exercitá-lo ao ar livre das ilusões a que o saber induz quando sabemos sem aprender, que o areje com dúvidas e incertezas porque é para isso que o conhecimento serve, pois, como dizia Clarice Lispector, a nossa ignorância (o que não sabemos) é o nosso melhor lado; e pare de culpar os dicionários.