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sexta-feira, 20 de junho de 2014

A globalização dos 'fluidos sexuais' .... / Cristiane Segatto


A Copa da alegria e do sexo

A maior globalização de fluidos corporais que o Brasil já viu

CRISTIANE SEGATTO
19/06/2014 11h02
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Um dia desses um amigo estava passeando pelos bares da Vila Madalena, um dos bairros mais descontraídos de São Paulo. Foi quando ele postou no Facebook uma observação inspirada: “Por aqui está rolando uma grande globalização de fluidos corporais”. 
A Vila Madalena é uma espécie de Ipanema paulistana, sem alguns pequenos “grandes” detalhes: não tem praia nem a alma carioca. Isso não é exatamente um problema. A Vila sempre foi uma festa, mas agora a festa é do mundo.
Uma das maiores concentrações de alegria por metro quadrado na São Paulo da Copa está ali. Nos bares, nas calçadas, nas ruas, nos corpos. O bairro virou a escolha principal dos que querem celebrar com os amigos ou mostrar o que é que a cidade tem a um turista em busca de diversão.
 
Onde há alegria, álcool e juventude (seja ela mental ou biológica) há riscos. É quando as pessoas baixam a guarda e perdem o senso crítico. Aí, meu irmão, o que cair na rede é peixe.
 
E como há peixe nesta Copa. Milhões de brasileiros circularão entre as capitais durante o evento. A quantidade de estrangeiros que já chegaram impressiona: 90 mil no Rio de Janeiro, 79 mil em Brasília, 65 mil em Fortaleza, 63 mil em São Paulo, 62 mil em Belo Horizonte e 27 mil em Cuiabá.
 
A oferta globalizada de companhia para farra, amor ou sexo não tem precedentes no país. Para facilitar a aproximação, até a tecnologia ajuda. Uma usuária do Tinder, o mais famoso aplicativo de celular para quem procura relacionamentos, criou um serviço especial e divertido: o Tinder na Copa .
Ele apresenta uma seleção de estrangeiros que estão dando sopa por aí. Divulga uma ficha com as características de cada um e, graças ao GPS, informa a distância em que os gatos se encontram dos e das interessadas.
 
Paquerar nunca foi tão fácil. Se a troca de calor e fluidos corporais se resume a beijos e abraços ou se vai além é assunto para quatro paredes, mas é inegável que a pegação está rolando solta.
 
Isso não acontece só porque o anfitrião dos jogos é o Brasil. É previsível que exista contato físico (sexual ou não) entre os participantes de grandes eventos mundiais. É gente demais, querendo se divertir demais, bebendo demais e se protegendo pouco. Não foi à toa que, na Copa da África do Sul, o Fundo das Nações Unidas para a Aids (Unaids) lançou uma grande iniciativa de prevenção da doença e combate à discriminação.

Campanha Proteja o Gol se repete agora no Brasil, com o apoio de vários esportistas. Em vídeo, o zagueiro David Luiz explica por que decidiu abraçar a causa. Até o final da Copa, os torcedores e outros interessados podem fazer o teste rápido de detecção da doença em vans localizadas perto dos estádios ou das festas organizadas pela FIFA.
 
Além do teste, as equipes distribuem informação, preservativos masculinos e femininos e gel lubrificante. Em São Paulo, o carro fica estacionado perto da entrada da Fan Fest do Vale do Anhangabaú, no centro da capital. Quem vai à festa ou está de passagem pelo local pode fazer o teste de fluido oral gratuitamente.
 
No dia 13 de junho, a equipe fez 112 testes. Encontrou dois infectados. No dia 16, foram feitas mais 110 avaliações. Cinco pessoas tinham o vírus. O resultado é surpreendente. “A taxa de prevalência do vírus na população geral é de 0,4%”, diz Tania Regina Correa de Souza, técnica do Programa Estadual de DST/Aids. “Lá no Anhangabaú encontramos 5%”.
 
É um índice alto e preocupante, mas a equipe está satisfeita por poder levar o diagnóstico a quem não descobriria a doença de outra forma. Todos os casos positivos foram encaminhados para tratamento. Em São Paulo, a testagem rápida continuará disponível na entrada da Fan Fest nos dias 24, 26 e 28 de junho e no dia 04 de julho. Sempre das 9 às 14 horas.
 
Aqui os locais da campanha nas demais capitais durante o Mundial. E aqui um guia do Ministério da Saúde com respostas às principais dúvidas sobre o HIV e a aids.
 
Grandes eventos como a Copa são uma ótima oportunidade de levar esclarecimento e cuidado a quem não se sente à vontade para procurar os serviços de saúde. O ideal seria que todas as pessoas fizessem o teste de HIV ao menos uma vez na vida. Essa é a meta dos programas de prevenção no país e no mundo.  
 
Apesar de todos os avanços que o Brasil conquistou na luta contra o vírus, a transmissão se mantém. Em 1998, foram registrados 15 novos casos a cada 100 mil habitantes. Em 2011, essa taxa subiu para 20,2 novos casos. São mais de 30 mortos de aids por dia no país.
  
A situação melhorou no Sudeste, mas piorou em todas as outras regiões. No Norte, no Nordeste e no Sul, morrem hoje mais pessoas de aids que no início dos anos 1990, quando não existiam medicamentos contra o vírus.
 
Muitos brasileiros não aderem às campanhas de prevenção. Convencer os jovens a usar preservativos é especialmente difícil, porque eles não acompanharam o sofrimento e a morte de ídolos, como acontecia no início da epidemia.
 
Os jovens precisam perceber que é possível viver com aids, mas essa é uma vida cheia de contingências. As drogas contra o HIV são tóxicas. Podem causar efeitos colaterais, como má distribuição de gordura corporal, elevação dos níveis de colesterol e triglicérides, diabetes e falência do fígado. O preconceito diminuiu, mas ainda dói. E muito.
 
Não pretendo estragar a festa de ninguém, mas é importante pensar nisso durante e depois do Mundial. Proteja seu gol para que o legado da Copa seja só o da alegria.
  (Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)


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domingo, 1 de setembro de 2013

A Psicofobia pode virar crime.../ Cristiane Segatto

A psicofobia e o peso das palavras

O preconceito contra quem sofre de transtornos mentais pode virar crime

CRISTIANE SEGATTO


30/08/2013 17h54 - Atualizado em 30/08/2013 17h58






Pouco antes de morrer, em março do ano assado, o humorista Chico Anysio decidiu entrar na luta contra o preconceito que cerca as doenças mentais. Ele sofria de depressão e, num sábado à tarde, recebeu em casa o médico Antonio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), para gravar um depoimento.

Durante a conversa, Chico fez um comentário e uma sugestão:
– Antigamente existiam carros usados. Agora chamam de “seminovos”. As coisas hoje têm esses nomes. Crie um nome para o preconceito.
O conselho do comunicador não foi esquecido. Muitas reuniões depois, a ABP lançou o termo bia”. Atualmente ele é adotado para designar atitudes preconceituosas e discriminatórias contra as deficiências e os transtornos mentais. O uso da palavra se disseminou. Uma busca rápida no Google aponta 16 mil textos em que ela é citada.
A psicofobia pode virar crime. O senador Paulo Davim (PV-RN) propôs uma emenda para incluir esse tipo de preconceito no projeto de lei de reforma do Código Penal Brasileiro. Vários senadores, entre eles Aécio Neves (PSDB-MG), apoiam a proposta.
Cerca de 23 milhões de pessoas (12% da população) necessitam de algum atendimento em saúde mental no Brasil, segundo uma estimativa conservadora da Organização Mundial da Saúde. Quem sofre de depressão, transtorno bipolar, esquizofrenia, transtorno obsessivo-compulsivo, entre outras doenças, sabe que o preconceito se manifesta de formas variadas e perversas.
Com medo de ofender os pacientes, médicos deixam de encaminhá-los ao psiquiatra. Os pacientes que recebem encaminhamento desistem de procurar o especialista por medo do diagnóstico e da discriminação que ele e a família passarão a sofrer. 
O estigma destrói a autoestima dos doentes. Eles deixam de procurar emprego ou de lutar por assistência adequada. Estima-se que no Brasil 58% dos casos de esquizofrenia não recebem tratamento.
Muita gente acredita que os doentes mentais são violentos. As notícias sobre crimes ajudam a perpetuar essa crença. “93% das pessoas com doença mental não são violentas, mas isso nunca é notícia”, diz o professor Wagner Gattaz, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Pouco depois do chamado Massacre do Realengo, quando um ex-aluno entrou numa escola no Rio de Janeiro, matou 12 adolescentes, feriu outros 12 e se matou (leia mais aqui e aqui), os pacientes de Gattaz passaram a relatar ainda mais dificuldades.
“Eles diziam que a família estava com medo, que os amigos passaram a evitá-los e que deixaram de conseguir emprego porque as pessoas achavam que eles poderiam passar fogo em todo mundo a qualquer momento”, diz Gattaz.

Não nos damos conta, mas uma das formas mais eficientes de perpetuar o preconceito contra os doentes mentais é aplicar termos da psiquiatria fora do contexto. Quem nunca fez isso?
A imprensa é mestre na arte do uso metafórico da palavra esquizofrenia. Os portadores dessa doença apresentam períodos em que têm dificuldade para distinguir o real do imaginado. Podem ocorrer mudanças na forma de pensar e sentir, com prejuízo das relações afetivas e do desempenho profissional e social.
Esquizofrenia é isso, mas na linguagem corrente passou a designar todas as mazelas da política, da economia e as esquisitices da cultura pop. Faltou palavra? Tascamos um esquizofrênico e todo mundo entende o que queremos dizer.
Uma amostra dessa prática foi reunida num interessante estudo sobre o estigma da esquizofrenia na mídia, assinado por Francisco Bevilacqua Guarniero, Ruth Helena Bellinghini e Wagner Gattaz.
O uso metafórico da palavra “esquizofrenia” e, principalmente, “esquizofrênico (a)”, nos sentidos de “absurdo”, “incoerente” e “contraditório” é recorrente.
Nas colunas de política, são esquizofrênicos: o governo, o Judiciário, as relações Brasil-Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a Comunidade Europeia.
Nas colunas de economia, esquizofrênicas são a política cambial e a política econômica.
Nas editorias de artes e espetáculos, quase tudo é classificado como esquizofrênico(a):
• O Festival de Cinema de Gramado
• O show da cantora Cyndi Lauper (que passa de “clássicos a platitudes pop”)
• O ritmo do musical Evita
• Batman 
• O ator (que se despe de si mesmo para vestir um personagem, segundo a atriz Bruna Lombardi)
• A infelicidade de hoje (segundo o cineasta e colunista Arnaldo Jabor)
• Rose, a vizinha do personagem Charlie Harper na série Two and a Half Man
• A cantora Madonna (que na adolescência não se decidia entre ser freira e popstar, segundo ela mesma)
• O jornal The New York Times (por cobrar pelo acesso online, mas distribuir conteúdo gratuitamente nas redes sociais)
Seria divertido se não fosse trágico. A assistência à saúde mental no Brasil vive uma crise profunda. ÉPOCA contou isso aqui. Há uma luta ideológica entre os psiquiatras e parte dos psicólogos. As famílias estão desesperadas. Falta acesso a medicamentos, ambulatórios e leitos psiquiátricos para internar os pacientes nos momentos de crise. Apenas 2% dos gastos do SUS são destinados à saúde mental.
Mudar isso tudo depende de mobilização, dinheiro e disposição para a luta política. Combater o estigma não custa nada e depende da vontade individual. Um bom começo é pensar nas palavras que escolhemos e repetimos. Elas têm peso e consequência.
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Paixão por um bipolar.... // Cristiane Segatto


CRISTIANE SEGATTO - 22/02/2013 13h23 - Atualizado em 22/02/2013 13h25
TAMANHO DO TEXTO

Apaixonada por um bipolar

A história de cinema de uma leitora bem real

CRISTIANE SEGATTO
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CRISTIANE SEGATTO  Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo. Para falar com ela, o e-mail de contato é cristianes@edglobo. (Foto: ÉPOCA)
Há duas semanas escrevi sobre a banalização dos transtornos mentais e a sensação de impotência das famílias que convivem com doenças psiquiátricas. Não é de hoje que esse assunto me toca e me inspira. A saúde mental, no Brasil, é uma das áreas mais desassistidas. Uma de nossas maiores fragilidades. Tivemos a oportunidade de discutir a respeito nesta reportagemnesta colunanesta outra e em vários textos recentes. 
O último foi motivado pelo sucesso do filme O lado bom da vida, que concorre ao Oscar em oito categorias. Tem poucas chances, segundo os entendidos de cinema. Mas a comédia romântica tem seu valor.
Para uma leitora de Brasília, que conhece o transtorno bipolar bem de perto, o valor é inestimável. Jovem, bonita, funcionária pública, ela se apaixonou por um rapaz que sofre de transtorno bipolar e vive numa cidadezinha do Rio Grande do Sul.  
A pedido dela, preservo a identidade do casal, mas não poderia deixar de dividir com você o relato de amor escrito por essa mulher. Hoje esta coluna é dela. É dela, para ela e para todos os que precisam de cuidado e compreensão. Pelos meus cálculos, algo como 100% da espécie humana. 
A arte sempre imita a vida, não é mesmo? 
Logo no início de O lado bom da vida, reconheci a cena em que o paciente recebe alta de um hospital psiquiátrico. Não poderia ser mais autêntica. Foi exatamente assim com um jovem gaúcho, diagnosticado com transtorno afetivo bipolar do humor, a cada saída de uma de suas várias internações em unidades psiquiátricas do Rio Grande do Sul.  
Os pais de um bipolar sofrem com a ideia de sua internação. Até se conscientizarem de que, no meio de uma crise, isso é o melhor que se tem a fazer. Muitas vezes os pais solicitam a alta antes do término do tratamento, o que pode provocar novas e mais fortes crises.  
Na saída, quase sempre outro paciente pede uma carona. O diálogo que se instala pode ser tão cômico quanto o do filme. Se ao mesmo tempo não fosse tão triste... 
E.A.B, 25 anos é tão bonitão quanto o ator Bradley Cooper, que faz o paciente bipolar. A carreira de modelo e o sonho de ser ator em São Paulo foram interrompidos há quatro anos.  
A crise foi desencadeada pelo stress das dificuldades que a carreira impõe para um jovem simpático, inteligente, generoso, romântico e gentil do interior do Rio Grande do Sul. Além disso, houve a traição da namorada, com quem morava na época.  
Durante a exibição do filme, enquanto as pessoas gargalhavam com Pat, o personagem de Bradley Cooper, eu não conseguia conter minhas lágrimas.  
Conheci E.A.B numa rede social. Sou a “Tiffany” (a personagem da atriz Jenniffer Lawrence) da vida real. Reservada, misteriosa, sensível, complicada, um tanto instável emocionalmente. Sem rumo na vida, por problemas afetivos. Com histórico de uso de medicamentos igualmente controlados.  
Acabei conquistando a atenção de E.A.B.  
Assim nos referíamos um ao outro: “Duas almas perdidas que se cruzaram por algum motivo.”. Como no filme, tudo começou como um romance desencontrado, com idas e vindas de uma cidade para outra. Cenas de brigas, términos e voltas. E ainda a certeza de que nenhum seria capaz de viver sem o outro. 
Ele tem um histórico de perdas pessoais desde a infância. O pai morreu de repente, de parada cardíaca. A irmã, aos 14 anos. Lidar com isso é muito difícil até para quem não tem uma condição psicológica sensível como ele. 
Atualmente, depois de várias internações, E.A.B trancou a faculdade de Administração e vive com sua mãe, uma mulher admiravelmente forte. Mora numa cidade muito pequena no interior do Rio Grande do Sul. É estigmatizado, não consegue uma oportunidade de trabalho.
O bullying engessou a vida dele. Quando era criança, publicaram fotos dele. Diziam que era o menino feio que queria ser modelo. Talvez esse tenha sido o estopim. Essa é a conclusão tirada por ele mesmo. Em minha opinião e na de sua mãe coruja, não existe homem com sorriso mais bonito.
Diante do destaque internacional dado ao filme “O lado bom da vida” e aproveitando que alguns jovens acham que ser bipolar é “da hora”, é importante que nos seja dada a oportunidade de ampliar o conhecimento público sobre esse transtorno incapacitante que não recebe a devida atenção da legislação brasileira.
O preconceito e a ignorância prejudicam a recuperação do paciente. Quem toma regularmente a medicação (lítio e outros estabilizadores de humor) e recebe o devido acompanhamento psicoterapêutico, pode voltar a ter uma vida normal, trabalhar e produzir. Além de amar como qualquer outra pessoa. 
Qual é a sua opinião? Conhece alguém que vive uma situação semelhante? Conte pra gente. Queremos ouvir sua história. Sempre. 
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)