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quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

A carta de 104 (!) advogados é um marco de falta de Ética e de falta de princípios profissionais ... de direitos

Ora, sejamos marxistas -

EUGÊNIO BUCCI

ESTADÃO - 21/01

Na semana passada, 105 advogados, vários deles com clientes indiciados na Operação Lava Jato, divulgaram um manifesto contra o juiz Sergio Moro. Em sua “carta aberta em repúdio ao regime de superação episódica de direitos e garantias verificado na Operação Lava Jato”, acusaram promotores, policiais, juízes e “a mídia” de “menoscabo à presunção de inocência”. Despertaram a ironia de articulistas, o repúdio de integrantes do Ministério Público, o desprezo silencioso de outros advogados e o aplauso público ou discreto de dirigentes do PT.

Uma vez mais ficou explícita a unidade disciplinada entre o discurso dos causídicos que defendem os interesses dos empreiteiros tornados réus e o discurso dos petistas de alta patente, que, quando defendem o governo (pois de vez em quando o atacam), alegam tratar-se de um governo de esquerda. As diferenças ideológicas que havia entre os dois discursos – o do PT e o das empreiteiras – desapareceram como enxurrada engolida pela boca de lobo. As megaconstrutoras de ultradireita, viciadas em dinheiro público, e o partido nascido à esquerda, das greves do ABC, já foram antípodas. Agora cantam em dueto. São duas mãos que se lavam em águas enlameadas.

Descartada por absurda a hipótese de que as empreiteiras se tenham convertido ao socialismo utópico, façamos a pergunta inevitável: esse partido é mesmo de esquerda? Será de esquerda o dueto entre o PT que não gostava do capital e o capital que não gosta de concorrência? Será uma “aliança tática”? Será que, no imaginário da nomenklatura, a perfeita simbiose se justifica para combater “inimigos de classe” mais “reacionários” e mais fatais, como repórteres mal remunerados, delegados de polícia e magistrados de primeira instância? Será que, comparados ao reportariado, os empreiteiros são assim tão “progressistas”? Serão eles os mais fiéis “companheiros de viagem” na marcha rumo ao fim da exploração do homem pelo homem?

Falemos sério. O mais provável não é nada disso. O mais provável é o mais horrível. Já não é o lobby das construtoras que se apressa a socorrer o caixa eleitoral dos companheiros, mas a máquina dos ex-sindicalistas que adere a um modo de produção parasitário (um híbrido promíscuo entre a acumulação primitiva e o capitalismo de Estado), ao qual dá sustentação reverencial, como quem ampara a galinha dos ovos de ouro (ou como quem venera um totem).

Aquilo que a olhos otimistas não passa de desvios infelizes a manchar a trajetória de uma organização partidária combativa talvez não seja apenas isso, quer dizer, talvez não seja meramente uma sucessão de incidentes desabonadores, mas a manifestação de um caráter histórico que até outro dia se ocultara. Aquilo a que damos o nome genérico de corrupção não seria, enfim, um deslize criminal episódico, mas uma determinante estrutural; não seria uma traição da política, mas a mais acabada expressão da política de colaboração de classe entre uma legenda de retórica trabalhista e uma burguesia inculta e retrógrada. Não, não estamos falando de uma colaboração de classe qualquer, mas de um pacto sem lei no qual a rapinagem do erário, em lugar de evento excepcional, é o método.

Em resumo: o que tem o aspecto de desvio não é bem um desvio, um ato que escapou do campo da ação política, mas a realização material da política, a política em sua matéria mais irredutível.

Se for verdadeira essa hipótese, os sinais do discurso petista estão todos invertidos. O encadeamento dos governos que aí estão há 13 anos, que esse discurso insiste ser de esquerda, seria o oposto. Não terá sido para tornar viável uma agenda de inclusão social que alguns se deixaram aliciar pelo capital selvagem. O que parece ter acontecido é o contrário: foi para tornar viável um modelo de poder que passava pela subtração prolongada – deslocando o centro do Estado para uma órbita estranha ao interesse público – que se fez necessário acenar com benefícios aos eleitores pobres. Os tais programas de distribuição de renda e de combate à pobreza não teriam sido uma política pública inclusiva, mas uma concessão equivalente ao custo de manutenção do modelo.

Não que políticas públicas de combate à pobreza constituam um vício em si mesmas. Elas são justas e dramaticamente necessárias no Brasil. O que fez delas uma manobra oportunista, ineficaz e infértil não foi o seu conteúdo, mas o caráter do modelo de poder que as acionou. Elas não traduziram uma estratégia de resgate dos pobres, mas de instrumentalização deles.

É triste. O PT não é Itabira ou Orlândia, mas se reduz aos poucos a uma fotografia na parede. Como dói. A verdade que se vai decantando na imagem machuca os olhos. Haverá futuro? Não é provável, a menos que as vozes vivas que ainda resistem nas cercanias do partido enunciem respostas públicas, destemidas, objetivas e materiais sobre sua tragédia ética e sua farsa.

Em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx lembra que a primeira revolução (burguesa) de Napoleão libertou os camponeses da semisservidão e os transformou em pequenos proprietários de terra. Não por solidariedade, mas porque o poder por trás das guerras napoleônicas dependia de varrer o feudalismo (a servidão) para patrocinar o capitalismo. Poucos anos depois do que parecia ter sido uma conquista, os tais pequenos proprietários se deram mal. Marx anota: “A forma ‘napoleônica’ de propriedade, que no princípio do século 19 constituía a condição para libertação e enriquecimento do camponês francês, desenvolveu-se no decorrer desse século na lei da sua escravização e pauperização”.

A estrela do PT chegou a reluzir como a via de promoção dos desassistidos, mas não os libertou da pobreza. O projeto de classe parece que foi outro. Os empreiteiros, que não são marxistas, sabem muito bem por quê.


segunda-feira, 13 de maio de 2013

Luto da independência e da transparência no currículo da TV Cultura ... ou mais do mesmo

A TV Cultura sobreviverá a 2014?

tv_cultura.jpg (200×160)A Fundação Padre Anchieta só tem um caminho: propor uma revolução interna de transparência, baseada em parâmetros públicos

13 de maio de 2013 | 2h 06 

Eugênio Bucci - O Estado de S.Paulo

A Fundação Padre Anchieta, que controla a TV Cultura e a Rádio Cultura de São Paulo, acaba de ser pendurada num ponto de interrogação do tamanho de sua própria história. A pergunta, a terrível pergunta que pôs em suspenso (e em suspense) o futuro da instituição é a seguinte: conseguirá a Cultura se conduzir como instituição verdadeiramente pública, independente do governo, ou será posta de uma vez por todas a serviço dos interesses partidários instalados no Palácio dos Bandeirantes?

Ninguém, hoje, sabe responder com segurança. A emissora que já teve em seus quadros Vladimir Herzog, cujo nome inspira até hoje a melhor tradição jornalística de espírito crítico, chega a 2013 abduzida por indagações acerca de sua identidade, seus rumos e sua capacidade de se renovar. Às margens do rio Tietê, ela olha para o céu claro e frio: "Quem sou? Para onde vou?".

Por vezes, é como se não houvesse mais esperança alguma. Um clima de luto silencia alguns de seus dirigentes históricos. O pessimismo declarado do atual presidente, João Sayad, é a mais eloquente prova disso. Ele poderia tentar sua recondução por um segundo mandato, mas jogou a toalha. Na segunda-feira passada, expôs seu estado de ânimo num artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, sob um título que nos remete uma vez mais ao rio Tietê: "Taxonomia dos ratos".

Para João Sayad, o outono da TV Cultura é uma decadência moral. Segundo a lógica que podemos extrair de suas palavras, a TV Cultura vem perdendo as suas chances de independência jornalística, de brilho cultural e de integridade administrativa. O porvir é sombrio. Em sua gestão, Sayad procurou sanear as contas e, principalmente, os métodos de gestão. Portador de uma ojeriza visceral a clientelismos (no atacado e no varejo), declarou mais de uma vez que, para oferecer serviços de qualidade, um órgão público deve observar a retidão e a transparência administrativa. Impossível discordar. O que preocupa é que, nesse artigo de despedida, somos levados a crer que a transparência e a independência sofreram uma derrota.

Sayad fala como quem perdeu a guerra. Em tom de fastio, usa todos os parágrafos de que dispõe para amaldiçoar a corrupção, a grande e a pequena. Não menciona o nome da TV Cultura uma única vez, não lança acusações contra ninguém; apenas confessa o seu próprio desalento e, assim, confere um aspecto pútrido ao gigantesco ponto de interrogação de que pende, hoje, a entidade que presidiu. Ele afirma que "a corrupção pequena contrata parentes, compra papel higiênico superfaturado, orienta a criação de empresas de fachada para prestarem serviços, cria cooperativas para pagar funcionários terceirizados, faz acordo de 'kick back' com os fornecedores e, principalmente, avacalha, paralisa, lasseia e termina por matar a organização que administra". Ao final, sugere que chamemos a "corrupção mixa" de "corrupção brega", e desabafa: "Minha vontade de prosseguir na tarefa acabou. Estou indignado".

Indignado com o quê? Ele não diz com exatidão, mas figuras que têm peso nesse jogo sabem muito bem do que ele fala. A Fundação Padre Anchieta só tem um caminho: promover uma revolução interna de transparência, baseada em parâmetros públicos de avaliação de desempenho, para alcançar a excelência nos serviços que presta ao povo de São Paulo. Acontece que esse caminho só será viável se houver independência (em relação ao governo). Se abaixar a cabeça aos humores do Palácio dos Bandeirantes, a instituição se deixará reger por critérios estranhos à sua missão: rusgas partidárias, vaidades de homens públicos, afinidades ideológicas, proteção de apaniguados - vícios incompatíveis com o princípio da impessoalidade e com a qualidade da programação.

O drama atual da TV Cultura é ao mesmo tempo um drama de dimensões éticas (vide o artigo de João Sayad), estéticas e, sobretudo, políticas. Ele será superado - ou não - na postura jornalística da emissora. Não adianta: a alma de uma emissora pública é o seu jornalismo. Alguns acreditam numa programação apenas educativa, recreativa. Acreditam até no "entretenimento". Esses, na verdade, defendem programações chatas, bajulatórias e irrelevantes. Ou o jornalismo de uma emissora pública incomoda o poder e, com isso, ilumina e orienta a postura de todos ali dentro, ou nada feito. João Sayad cometeu seus erros, mas tentou limpar os métodos e caminhar na direção de um conteúdo menos chapa-branca. Realizou um bom debate entre os candidatos a prefeito de São Paulo, no primeiro turno de 2012, depois de um jejum de 16 anos em debates eleitorais. Fez um Roda Viva mais livre das conveniências governamentais. Deu seus passos e, então, desistiu.

Agora, resta a interrogação enferrujada às margens do Tietê. No próximo período, o teste de fogo da Cultura virá com o ano eleitoral de 2014. Se ela se acomodar ao papel de sala de visitas do Palácio dos Bandeirantes, evitando arranca-rabos, vai morrer um pouco mais. Talvez definitivamente.
* Eugênio Bucci é jornalista e professor da USP e da ESPM.