A TV Cultura sobreviverá a 2014?
A Fundação Padre Anchieta só tem um caminho: propor uma revolução interna de transparência, baseada em parâmetros públicos
13 de maio de 2013 | 2h 06
Eugênio Bucci - O Estado de S.Paulo
Ninguém, hoje, sabe responder com segurança. A emissora que já teve em seus quadros Vladimir Herzog, cujo nome inspira até hoje a melhor tradição jornalística de espírito crítico, chega a 2013 abduzida por indagações acerca de sua identidade, seus rumos e sua capacidade de se renovar. Às margens do rio Tietê, ela olha para o céu claro e frio: "Quem sou? Para onde vou?".
Por vezes, é como se não houvesse mais esperança alguma. Um clima de luto silencia alguns de seus dirigentes históricos. O pessimismo declarado do atual presidente, João Sayad, é a mais eloquente prova disso. Ele poderia tentar sua recondução por um segundo mandato, mas jogou a toalha. Na segunda-feira passada, expôs seu estado de ânimo num artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, sob um título que nos remete uma vez mais ao rio Tietê: "Taxonomia dos ratos".
Para João Sayad, o outono da TV Cultura é uma decadência moral. Segundo a lógica que podemos extrair de suas palavras, a TV Cultura vem perdendo as suas chances de independência jornalística, de brilho cultural e de integridade administrativa. O porvir é sombrio. Em sua gestão, Sayad procurou sanear as contas e, principalmente, os métodos de gestão. Portador de uma ojeriza visceral a clientelismos (no atacado e no varejo), declarou mais de uma vez que, para oferecer serviços de qualidade, um órgão público deve observar a retidão e a transparência administrativa. Impossível discordar. O que preocupa é que, nesse artigo de despedida, somos levados a crer que a transparência e a independência sofreram uma derrota.
Sayad fala como quem perdeu a guerra. Em tom de fastio, usa todos os parágrafos de que dispõe para amaldiçoar a corrupção, a grande e a pequena. Não menciona o nome da TV Cultura uma única vez, não lança acusações contra ninguém; apenas confessa o seu próprio desalento e, assim, confere um aspecto pútrido ao gigantesco ponto de interrogação de que pende, hoje, a entidade que presidiu. Ele afirma que "a corrupção pequena contrata parentes, compra papel higiênico superfaturado, orienta a criação de empresas de fachada para prestarem serviços, cria cooperativas para pagar funcionários terceirizados, faz acordo de 'kick back' com os fornecedores e, principalmente, avacalha, paralisa, lasseia e termina por matar a organização que administra". Ao final, sugere que chamemos a "corrupção mixa" de "corrupção brega", e desabafa: "Minha vontade de prosseguir na tarefa acabou. Estou indignado".
Indignado com o quê? Ele não diz com exatidão, mas figuras que têm peso nesse jogo sabem muito bem do que ele fala. A Fundação Padre Anchieta só tem um caminho: promover uma revolução interna de transparência, baseada em parâmetros públicos de avaliação de desempenho, para alcançar a excelência nos serviços que presta ao povo de São Paulo. Acontece que esse caminho só será viável se houver independência (em relação ao governo). Se abaixar a cabeça aos humores do Palácio dos Bandeirantes, a instituição se deixará reger por critérios estranhos à sua missão: rusgas partidárias, vaidades de homens públicos, afinidades ideológicas, proteção de apaniguados - vícios incompatíveis com o princípio da impessoalidade e com a qualidade da programação.
O drama atual da TV Cultura é ao mesmo tempo um drama de dimensões éticas (vide o artigo de João Sayad), estéticas e, sobretudo, políticas. Ele será superado - ou não - na postura jornalística da emissora. Não adianta: a alma de uma emissora pública é o seu jornalismo. Alguns acreditam numa programação apenas educativa, recreativa. Acreditam até no "entretenimento". Esses, na verdade, defendem programações chatas, bajulatórias e irrelevantes. Ou o jornalismo de uma emissora pública incomoda o poder e, com isso, ilumina e orienta a postura de todos ali dentro, ou nada feito. João Sayad cometeu seus erros, mas tentou limpar os métodos e caminhar na direção de um conteúdo menos chapa-branca. Realizou um bom debate entre os candidatos a prefeito de São Paulo, no primeiro turno de 2012, depois de um jejum de 16 anos em debates eleitorais. Fez um Roda Viva mais livre das conveniências governamentais. Deu seus passos e, então, desistiu.
Agora, resta a interrogação enferrujada às margens do Tietê. No próximo período, o teste de fogo da Cultura virá com o ano eleitoral de 2014. Se ela se acomodar ao papel de sala de visitas do Palácio dos Bandeirantes, evitando arranca-rabos, vai morrer um pouco mais. Talvez definitivamente.
* Eugênio Bucci é jornalista e professor da USP e da ESPM.
Nenhum comentário:
Postar um comentário