IVAN MARTINS
10 coisas que aprendi em 2015
Uma lista de lições (muito pessoais) extraídas do ano que vai acabando, e que muitos gostariam de esquecer. Ou apagar
IVAN MARTINS
23/12/2015 - 08h25 - Atualizado 23/12/2015 09h35
Ouço todo mundo reclamando de que este ano não foi fácil. Eu concordo inteiramente. Aconteceu de tudo, e muita coisa foi ruim. Para mim, foi um ano de perdas como eu nunca tinha tido. Para todos, parece ter sido um ano de grande confusão – aquilo que os chineses chamavam, com enorme ironia, de “tempos interessantes”. De alguma maneira sobrevivemos e, naturalmente, aprendemos com isso. Eu mesmo aprendi muita coisa. Sobre morte, sobre separação, sobre relações passageiras e sobre o papel dos bichos na nossa vida. Muitas dessas coisas, como dizia um antigo chefe meu, são novidades apenas para mim. Outras, podem ser novas para mais gente. Tomara que haja mais do segundo caso. Dizem que a gente nunca aprende com a experiência dos outros, mas eu sou um pouco mais otimista. Se o meu annus horribilis não for capaz de ensinar, talvez consiga distrair. Vocês me digam:
1. Mãe faz muita falta. Não adianta ser um adulto grisalho. Não importa que a sua mãe tenha 87 anos. Quando ela morre, abre um buraco na sua biografia. Com ela, vai parte da criança que você foi: aquela que a amava de forma inocente e absoluta, e que se sentia amada por ela de maneira incondicional. Quem o amará dessa forma novamente? Além da dor simbólica e da orfandade assustadora, existe a ausência física. Nem faz um ano que a minha morreu, mas já me peguei várias vezes pensando em ligar para ela e perguntar besteiras, como eu sempre fazia. Como se faz panqueca, mãe? É razoável pagar trinta reais numa barra de calça? (“Não! Venha aqui que eu faço”). Os almoços semanais na casa dela eram regados a uma conversa nostálgica que apenas os velhos sabem manter. Ela falava da década de trinta do século XX - quando foi menina – como se fosse a semana passada, com a vivacidade e a fúria da memória implacável. Carregava galhardamente os mortos dela (meus avós, meus tios) e dividia a história deles comigo. É assim que a gente faz a conexão com o passado: há uma narrativa familiar que vem no leite e que nos ajuda a entender o mundo de onde surgimos. Eu tive sorte, perdi minha mãe adulto. Tivemos muitos anos para fazer a passagem do bastão. Agora eu guardo as memórias, algumas das quais passarei aos meus filhos. Outras se perderão, irremediavelmente. É triste, e temo que fique ainda mais triste à medida que o tempo passe. A presença da mãe ausente não diminui, só cresce.
2. A gente nunca aprende a lidar com separações. Cada vez que um grande amor acaba, temos de viver tudo de novo. A vida perde a graça, os olhos embaçam. O luto – esse é o nome do sentimento – é uma tinta que se agarra aos nossos dedos e se recusa a sair. Ela vai manchando tudo o que a gente toca. Temos de lutar contra essa dor todos os dias, e às vezes ela leva a melhor. Então nos recolhemos à nossa infelicidade e torcemos para que a noite seja breve. No fundo de nós, sabemos que uma hora a amargura vai passar, mas, verdadeiramente, não desejamos que passe. Superar o luto significa deixar de amar, e isso não parece razoável. Livrar-se internamente do outro é o mesmo que admitir que a possibilidade de estar com ele se esgotou. Outras possibilidades surgirão, naturalmente, mas reconhecer que aquele caminho se fechou é intolerável. Não queremos ser felizes de outra maneira. Queremos a vida com aquela única pessoa, não qualquer outra forma de vida. Essa é a armadilha sentimental das separações: não desejamos nos livrar da dor, porque há nela um germe de esperança. Entender esse paradoxo não resolve o problema, mas ajuda.
3. Mudar de vida é bom, mas custa. A gente não percebe o quanto nosso equilíbrio depende das rotinas de trabalho que nos incomodam. Quando nos vemos livres dela, o mundo fica subitamente inquietante. É preciso inventar uma vida nova, e uma nova rotina que faça sentido. Em setembro de 2015 eu comecei a fazer isso. Estou feliz, mas ainda é estranho. Lamento, às vezes, não ter começado antes. A esta altura já teria criado uma nova disciplina interior. Ela é a chave de tudo. Antes, havia uma disciplina externa, ditada pelo ritmo da empresa. Agora, a disciplina tem de estar em mim, assim como o estímulo e a crítica. Não é fácil ser chefe de si mesmo, mas há uma geração de inteira de gente criativa vivendo assim. A liberdade é assustadora, mas traz promessas cintilantes de auto realização.
4. A ternura das pessoas que passam é essencial. Nossa vida não é feita somente de relações duradouras. Há gente que atravessa uma rua conosco, caminha ao nosso lado uma avenida, e pronto: deixa um perfume que não será esquecido. Não era para ser, não era para durar, mas isso não torna as pessoas menos essenciais. No longo vazio que sucede as separações, esses encontros são como pontos de luz. Eles marcam a vida com a intensidade ou a delicadeza das coisas efêmeras, que têm a sua própria forma de beleza. Não falo de sexo casual apenas. Falo do encontro temporário de corpos e de sentimentos, que nos dá a sensação de plenitude. Depois ela se dissipa, como é da natureza das coisas que passam, abrindo o nosso coração e o preparando para as coisas mais perenes que virão. Por esses encontros, que eu não sabia direito que existiam, e que não tinham nome no meu vocabulário, a minha comovida gratidão.
5. Hábitos podem ser mudados. Mesmo aqueles antigos, que a gente cultiva a vida inteira, podem ser postos de lado em nosso benefício. Este ano eu parei de beber, por exemplo. Posso tomar um vinho ou um copo de cerveja eventualmente, mas o hábito foi posto de lado. As razões dessa mudança nem eu mesmo entendo, mas noto que ela me fez bem. O prazer da bebida tornou-se eletivo, não social e automático. Acho que isso pode valer para tudo que a gente faz distraidamente, por imitação ou por descaso consigo mesmo. Podemos descobrir que hábito e prazer não são a mesma coisa.
6. A vida interior precisa de atenção. A frase é óbvia, mas a gente não aplica. Vivemos um dia depois do outro, entre a depressão e a euforia, sem nos questionar sobre a natureza dessas sensações. Nos parece, o tempo inteiro, que tudo que nos afeta vem de fora. O trabalho, a família, o amor, a droga da política. Mas não é verdade. Todos nós convivemos com um grau de sofrimento interno elevado, quase insuportável às vezes. E não damos a isso a atenção que deveríamos. Este ano, por um acaso generoso, eu fui posto em contato com as ideias meio budistas, meio indianas e algo freudianas do guru Sri Prem Baba. O resultado desse encontro é que eu voltei a refletir, como não fazia desde a adolescência, sobre os meus estados mentais. De onde vem a ansiedade? Por que tamanha inquietação? Que angústia e essa que vira e mexe me aflige? Na cultura ocidental, a gente resolve isso procurando um psicólogo ou psicanalista. Na tradição oriental, busca-se um mestre que ensine a meditar e refletir sobre a origem dos sentimentos dolorosos - e ajude a eliminá-los. Como eu tenho dificuldade pessoal com a ideia de seguir um guru, tenho lido sozinho sobre budismo e espiritualidade, e tenho tentado, precariamente, aprender a meditar – uma arte sutil que exige o oposto de tudo que a gente aprendeu a fazer em casa e na escola. Seu objetivo é separar o fluxo de sentimentos e pensamentos daquilo que os orientais chamam de consciência. Por trás disso, está a ideia assustadora (mas linda) de que nós não somos iguais aos nossos pensamentos e sensações. O cérebro produz essas coisas o tempo inteiro, compulsivamente, e nós sofremos por nos identificarmos demais com elas. Não é curioso? Quem quiser saber mais sobre isso, leia Despertar - um guia para a espiritualidade sem religião, do Sam Harris. Esse livro ajudou a melhorar o meu ano.
7. Eventos públicos interferem na vida privada. Este ano, com tudo o que aconteceu no Brasil, experimentei uma tremenda angústia. Lava Jato, impeachment, crise econômica. Não houve como se isolar das notícias terríveis. Todos os dias o jornal me deixava furioso ou prostrado. As conversas no bar e no trabalho terminavam em tom de exasperação. Nunca discuti tanto, e de forma tão inútil, nas redes sociais. Em vários momentos, tive a impressão de que o Brasil que eu vira emergir da ditadura nos anos 1980 virava farinha. Havíamos entrado na máquina do tempo e ela nos levava de volta a uma versão perversa de 1964. Sentia todas as manhãs, quando abria a internet, que as coisas se encaminhavam para um desfecho farsesco e injusto, sem que eu pudesse fazer nada além de assistir, apoplético. Um horror, capaz de afetar o meu sono e perturbar o meu escasso apetite. Felizmente, o ano vai terminando em uma nota alvissareira, apesar dos playboys ofendendo o Chico Buarque na saída do restaurante. Que horror aquele vídeo! As pessoas foram às ruas em defesa da legalidade e o STF pôs um limite ao reinado de Eduardo Cunha. A balança de alguma forma se equilibrou, embora o futuro ainda seja incerto. 2015 ficará na minha memória como o ano em que não foi possível viver fora da crise.
8. Engajamento é essencial. Cada vez mais, sinto que a gente precisa fazer algo pelo mundo ao redor. A vida não pode se reduzir, mesquinhamente, a acumular dinheiro e sucesso e a cuidar da nossa família, cheios de medo. No final deste ano, quando começou o movimento de ocupação das escolas em São Paulo, vi a alegria com que alguns dos meus amigos – pais de alunos, alguns; vizinhos das escolas, outros – se mexeram para ajudar os adolescentes. Foi uma coisa bonita, um reencontro com as biografias deles. As pessoas cozinharam, deram aulas, participaram de marchas e, ao final, sentiram-se parte da vitória dos meninos e meninas, que conseguiram impedir o fechamento de quase uma centena de escolas estaduais. Tenho certeza que nós seríamos mais felizes, e viveríamos num mundo melhor, se saíssemos regularmente da nossa vida privada para fazer algo pelos outros. No final, descobriríamos que os outros somos nós.
9. Bichos podem ser fundamentais. Carlota e Elizabeth, as minhas gatas, foram parte importante deste ano tumultuado. Quando as coisas ficaram difíceis, elas estavam lá para distrair e receber afeto. Levantar de manhã, limpar a caixinha e dar comida a elas, ou brincar com fitas e bolinhas, fazendo com que elas corram e se exercitem, são atividades prazerosas. Cuidar dos bichos me faz sentir melhor. Os gatos, ao contrário dos cachorros, não respondem da mesma forma ao carinho dos humanos, mas não importa – eles podem ser objetos da nossa afeição, mesmo de cara emburrada ou indiferente. Tenho um amigo que mora sozinho e adotou, recentemente, um cachorrão amoroso e estabanado. É impressionante como o cão fez bem para ele. Melhorou o humor do amigo e aumentou o seu prazer de estar em casa. A conclusão é óbvia: os bichos fazem bem aos humanos, sobretudo para aqueles que moram sozinhos. 2015 não me transformou num animal lover, mas fez com que eu revisse meus preconceitos em relação a eles.
10. Sentir-se perdido é o primeiro passo. Quando a vida está certinha, a gente boceja de tédio. Quando tudo sacode e desaba, morremos de medo. Estar num lugar é desejar o outro, e nos intervalos entre lá e cá nos sentimos perdidos. Bem perdidos. Eu estava desacostumado ao sentimento, mas este ano fui obrigado a percebê-lo como parte da vida. Ao menos de uma vida que se renova. No meio das mudanças, voluntárias ou não, sempre aparecem sentimentos de perplexidade e desorientação. Qual é mesmo o caminho a seguir? Qual a coisa certa a fazer? Há que tomar decisões e tentar. Se for o caso, arrume uma bússola. A minha costumava ser a psicanálise. Hoje em dia eu não sei. Mas sei, com toda certeza, que há vários caminhos possíveis, e que eles levam a lugares fascinantes. Sei também, porque aprendi, que o primeiro passo começa sempre com a sensação de estar perdido. É assustador. É libertador. Talvez seja essencial.