Postagem em destaque

Uma crônica que tem perdão, indulto, desafio, crítica, poder...

Mostrando postagens com marcador Esse eu conheço. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Esse eu conheço. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

"Mas, quem inventa os fatos?" Os fatos são realidades ou fantasias? Os fatos são alegorias e os ideais são ilusões ?


Esse eu conheço!

20 de dezembro de 2012 
Autor: Roberto DaMatta
pequeno normal grande
Roberto DaMatta
A reta, como diria o Oscar Niemeyer, é o real. Mas o ideal é a curva, o arredondado sedutor da montanha onde morre o Sol; ou o suave declive da fonte que jorra por entre as suas frestas e mata a nossa infindável sede como viram, cada qual a seu tempo e à sua maneira, Ary Barroso e Schopenhauer.
Platão, inventor da oposição entre real e ideal, afirma que como tudo neste mundo está sempre se fazendo, as coisas reais não conferem nenhum conhecimento definitivo, pois são relativas e variáveis. Sujeitas, como revela sem cessar o nosso frustrante dia a dia, a redefinições. O ideal é único porque as ideias não morrem. O resto, como disseram Shakespeare e Erico Verissimo, é silêncio…
Estou, como o mundo inteiro, chocado com esse novo massacre ocorrido em Newtown, Estados Unidos. Penso nos pais forçados por um louco a entrar nesse triste clube ao qual eu, infelizmente, pertenço: a sociedade dos que perderam filhos. Empresto a todos eles a minha humilde solidariedade. Aprendi como as palavras, que deixam ver, por um instante, o todo no qual vivemos como inocentes, são importantes nesses momentos.
Estive no Estado de Connecticut umas duas ou três vezes e fiz palestras na sua universidade, no famoso Connecticut College (fundado em 1911 quando o Brasil fazia, como as máquinas, múltiplas revoluções) e na sua admirável Universidade Yale (fundada em 1701 quando, para muitos, o Brasil ainda não era Brasil), onde jaz um pedaço da alma do querido e saudoso Richard Morse, o americano mais brasileiro que conheci em toda a minha vida. Como explicar o massacre de crianças num lugar tão “adiantado” e “rico” sem uma lógica bíblica ou messiânica – sem um sistema de espoliação dos miseráveis e sem um Herodes agora armado, ele próprio, de pistolas automáticas, perguntou-me um jovem jornalista?
Inocente, pois não tenho a menor ideia do meu futuro nem da minha vida, a qual eu tento cuidar e honrar com o devido egoísmo por ela determinado, só posso falar de uma importante contradição. Nós odiamos a violência, mas a admitimos em certas circunstâncias. Na guerra, por exemplo. Sobretudo, nas guerras santas que jamais saíram de moda. Ou na luta ideológica contra a famosa “direita”, hoje propositalmente confundida no Brasil com o “direito”: o ético, o meritório e o correto.
No caso dessa tragédia americana, há uma contradição trivial. O real manda, no mínimo, discutir, como disse o presidente Obama, a venda de armas. Mas o ideal que tende a virar tabu trata a aquisição de armas como um direito.
Uma ética de condescendência – esse pouco discutido valor brasileiro de muitos quilates – nos leva a relativizar o ideal
No Brasil, criminalizamos o jogo, mas a Caixa Econômica Federal banca pelos menos sete ou oito jogos de azar. Ademais, condenamos o jogo e todo tipo de patifaria, mas compreendemos o canalha. Sobretudo quando ele é amigo. “Esse não! Esse eu conheço! Com ele eu não admito, ouviu? Não admito que sua reputação e sua figura à qual o país tanto deve sejam postas em questão!!!”
Somos todos contra a jogatina, mas entendemos quando o primo faz uma “fezinha na borboleta” ou no “burro” – esse totem de um Brasil que tenta sem sucesso livrar-se das asnices de uma visão de mundo na qual a lei teria a virtude de corrigir o mundo por reação e não por prevenção. “Mas isso é crime capitulado no artigo tal da lei X! Não há mais o que discutir.” Exceto, é claro, se o capitulado for meu amigo!
O problema é o que fazer com os criminosos depois de devidamente classificados como culpados. No nosso caso, a penalidade não é apenas uma decorrência do crime, é uma ciência e eu até diria, com todo o respeito, uma nobre arte. Afinal, como ouvi muitas vezes nesses meses afora, “são vidas humanas em jogo”.
Condenamos também a droga, mas tomamos o nosso vinhozinho, a nossa cervejinha e a nossa cachacinha com os amigos sem problema. Aceitamos até que um conhecido goste de uma “fileirinha”, no seu caso, inocente, porque: “Esse eu conheço e sei que é boa pessoa! Não é um indivíduo qualquer a ser espancado pela polícia e depois exposto e escrachado na mídia!!!”
Batemos de frente com as contradições entre o real e o ideal, a menos que ela comprometa o patrão, o amigo e o correligionário a quem devemos carreiras, favores e cargos. “Esse não! De modo algum! Esse eu conheço!” Gritamos com obrigatória veemência.
Uma ética de condescendência – esse pouco discutido valor brasileiro de muitos quilates – nos leva a relativizar o ideal. Como não é fácil equilibrá-los, pois o concreto sempre desafia o ideal, personalizamos e, com isso, impedir que X, Y ou Z sejam apreciados em suas faltas e velhacarias. E como “roupa suja só se lava em casa”, ferimos o ideal (e a ética) dando um golpe personalista. “Esse não pode!”, falamos, tirando do âmbito do crime ou da patifaria o amigo dileto ou o personagem poderoso.
Mas quem inventa os fatos?
Como esse bárbaro massacre ocorrido nos Estados Unidos; como esse inacreditável mensalão; como os vínculos de terna intimidade entre o ex-presidente e uma alta funcionária que representava a Presidência em São Paulo e lá montou uma quadrilha? Quem inventou um partido como o PT, que iria exterminar os ratos da corrupção nacional – como bolou o publicitário do grupo, o sr. Duda Mendonça – e acabaram metidos no maior escândalo da República? É o jornal que forma a quadrilha ou é a quadrilha que faz o jornal?
Fonte o Estado de São Paulo    19/12/2013