Postagem em destaque

Uma crônica que tem perdão, indulto, desafio, crítica, poder...

Mostrando postagens com marcador convite aberto. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador convite aberto. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 6 de março de 2017

"O que impressiona é a cegueira de um país em que magistrados acham possível eliminar a corrupção sem reduzir ao mínimo indispensável o tamanho do Estado"


J.R. Guzzo: 

Convite aberto

O que impressiona é a cegueira de um país em que magistrados acham possível eliminar a corrupção sem reduzir ao mínimo indispensável o tamanho do Estado

Publicado na edição impressa de VEJA
O texto que se segue não é uma piada. Também não faz parte de uma conspiração para desmoralizar a Operação Lava-Jato e os seus esforços contra a corrupção no Brasil. Trata-se apenas do relato resumido de alguns fatos da vida como ela é no Brasil de hoje – tão comuns que só aguentaram ficar no noticiário por alguns minutos, logo superados por outros de maior interesse, como a história da mulher acusada de contratar o próprio assassinato ou as instruções para sacar contas inativas do fundo de garantia. Esses fatos consistem no seguinte: durante todo o famoso ano de 2016, imortalizado por diversos dos mais heroicos combates jamais travados contra a corrupção no Brasil, algumas dezenas de cidadãos metiam loucamente a mão em dinheiro público a algumas centenas de metros em linha reta, ou pouco mais, da sala de trabalho de ninguém menos que o juiz Sergio Moro, na 13ª Vara da Justiça Penal Federal de Curitiba. Mais. Roubavam na Universidade Federal do Paraná, desviando verbas de bolsas estudantis – e o juiz Moro, em pessoa, é professor de processo penal na Faculdade de Direito da infeliz universidade roubada. Os delinquentes começaram seu trabalho em 2013; jamais lhes passou pela cabeça que não deveriam estar desviando verbas bem na cara do Ministério Público, da Justiça Federal e da polícia. Conclusão prática: após todo esse tempo de Lava Jato, das denúncias, prisões e condenações das maiores estrelas da corrupção nacional, e apesar da vizinhança física da força-tarefa anticorrupção, o medo que os corruptos têm de ser punidos é igual a zero. Para eles, não está acontecendo nada de diferente no Brasil – aliás, não está acontecendo nada de diferente nem em Curitiba. É como se o juiz Moro, o promotor Dallagnol e outros vice-reis da Operação Lava Jato estivessem despachando na Cochinchina. 
É bom deixar claro, o mais claro possível, que as ações anticorrupção comandadas a partir do juízo federal de Curitiba compõem, possivelmente, a decisão mais acertada que o Poder Judiciário brasileiro já tomou em toda a sua história. É um fenômeno excepcional, para começar, porque passou a punir de verdade um tipo de crime que na vida real não era punido no Brasil. Além disso, mandou para a cadeia gente que jamais alguém imaginou que pudesse ser presa neste país: para ficar numa lista resumida, estão neste momento no xadrez, ao mesmo tempo, os empresários Marcelo Odebrecht e Eike Batista, o ex-governador Sérgio Cabral, os ex-ministros Antonio Palocci e José Dirceu, o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, o ex-tesoureiro nacional do PT João Vaccari Neto, o ex-senador Gim Argello e mais uma penca de peixes graúdos. Quando aconteceu algo parecido? Uma salva de palmas para a Lava Jato, portanto, antes que alguém diga que estas linhas foram encomendadas pelo governo federal para divulgar a ideia de que a Lava Jato não adianta nada. Pelo governo ou pelo ex-presidente Lula e seus associados, que são os mais enterrados de todos nos processos de corrupção, mas segundo a ficção corrente já não têm mais muita coisa a ver com a ladroagem neurótica dos seus treze anos e meio de governo; o problema, pelo que se pode entender pelo noticiário, parece que é só dos que ficaram em seu lugar. Tudo bem – mas, sinceramente, em matéria de diminuir a corrupção, a Operação Lava Jato não adianta nada mesmo. Nem se diga acabar com a roubalheira; pelo que ficou demonstrado na Universidade Federal do Paraná, não está dando nem para diminuí-la um pouco. Dá para acreditar que o covil dos ladrões, durante esse tempo todo, estava num dos locais de trabalho frequentados pelo doutor Moro? Não há nada comparável em nenhum outro lugar do mundo. É artigo que não se imita, como diria Noel Rosa.
Os ladrões de bolsas não impressionam pelos 7 milhões de reais que roubaram; por se contentarem com uma mixaria dessas, é capaz até de receberem um prêmio no final do julgamento. Não seria de todo estranho, num sistema judicial que presenteia com prisão domiciliar e outros benefícios réus confessos e condenados por roubar dezenas de vezes mais – desde que façam a “delação premiada”. O que impressiona é a cegueira de um país em que milhares de magistrados e milhões de cidadãos acham possível eliminar a corrupção sem reduzir ao mínimo indispensável o tamanho do Estado brasileiro – e as oportunidades que ele oferece para ser roubado, da construção de refinarias a bolsas de estudo. Não somos roubados porque estão faltando leis. Somos roubados porque a máquina pública convida os ladrões a roubar.