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sábado, 29 de abril de 2017

Os 14 do Colégio Santa Cruz... / blog do Murilo

http://avaranda.blogspot.com.br/2017/04/carta-de-14-estudantes-evidencia-que.html?m=1

Carta de 14 estudantes evidencia que eles aprenderam a pensar - DEMÉTRIO MAGNOLI



A missão do professor é ensinar a pensar, não catequizar sobre o certo e o errado. Uma carta divulgada por 14 alunos do Colégio Santa Cruz, criticando a adesão de seus professores à greve geral, evidencia que eles aprenderam. O cerne da crítica: os professores apelam a "noções generalistas de justiça social" e pautam-se "em um maniqueísmo exacerbado", adotando uma "forma de pensar" que "simplifica e empobrece o debate" sobre a reforma previdenciária.

sábado, 13 de agosto de 2016

"Escola deve ser sem partido, mas também sem Igreja" / Demétrio Magnoli

sábado, agosto 13, 2016

Escola deve ser sem partido, mas também sem Igreja - 

DEMÉTRIO MAGNOLI

FOLHA DE SP - 13/08

Lula emerge como herói do povo em livros didáticos de diversos autores –e já se editam os que narram o impeachment de Dilma como um "golpe das elites". Sobram livros escolares que encontraram na Cuba castrista o paraíso terreno. Numa questão do Enem, aparece uma justificação "moral" para o terror jihadista. Textos pedagógicos pregam a censura à imprensa, na forma ritualizada do "controle social da mídia". A linguagem sectária do racialismo perpassa inúmeros materiais escolares. Livros e textos destinados a jovens estudantes apresentam a família nuclear como ferramenta de opressão da mulher. Na versão original das bases curriculares do MEC, abolia-se o ensino da história "ocidental". A marcha dos militantes políticos sobre a escola produziu, como contraponto, o movimento Escola Sem Partido. Contudo, as aparências (e os nomes) enganam: nesse caso, o antídoto é, ele também, um veneno.
O Escola Sem Partido patrocina um projeto de lei destinado a afixar nas escolas um cartaz com os "deveres do professor" que protegeria os estudantes da doutrinação ideológica e da propaganda partidária. Por si mesma, a ideia de uma intervenção estatal explícita, ameaçadora, contaminaria as relações entre alunos e professores no ambiente escolar. Dos seis itens do cartaz, quatro parecem óbvios a mentes não hipnotizadas pelo espírito doutrinário –mas, efetivamente, abrem espaço para infinitas interpretações subjetivas. Nos dois outros, revela-se um projeto tão nocivo quanto o dos militantes políticos das mil e uma causas.

O item quatro determina que, "ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas", o professor exibirá, "com a mesma seriedade", as "versões concorrentes". Há, aí, sobretudo, uma incompreensão da natureza do processo de ensino e aprendizagem. Embora a polêmica sobre valores tenha seu lugar na sala de aula, a escola não existe para cotejar as contraditórias "respostas certas" a temas desse tipo. Substituir a "verdade" autoritária do doutrinador pelo "Fla-Flu ideológico" pode até funcionar na imprensa pluralista, mas nada resolve no campo da educação. De fato, a missão do professor é ensinar a formular as perguntas pertinentes –isto é, a inscrever os dilemas humanos nos contextos históricos e sociais apropriados.

Isso não é tudo. O que significa cotejar versões quando se trata de uma "questão sociocultural" como a teoria da evolução? Na esfera da ciência, nem tudo é polêmica. Será que o Escola Sem Partido almeja que se ensine, "com a mesma seriedade", a "versão concorrente" que é o criacionismo?

O véu cai quando se examina o item cinco. De acordo com ele, "o professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções". Como "os pais" formam um universo muito heterogêneo, a regra proporcionaria um "direito de veto" à família mais tradicionalista. Na prática (oh, surpresa!), o padre ou pastor locais exerceriam um poder censório absoluto sobre os professores, subordinando a escola aos mais rudimentares anacronismos e preconceitos.

Na democracia e na república laica, o compromisso essencial da escola não é com os chamados "valores da família", mas com o direito dos alunos à cidadania. O alicerce de princípios da escola são os direitos humanos universais, inscritos na Declaração de 1948, que inspiram as constituições democráticas. A igualdade de direitos entre homens e mulheres, o respeito a diferentes orientações sexuais, o repúdio a preconceitos raciais e a proteção de minorias religiosas não devem ser descritos como "doutrinação ideológica" –e não são artigos negociáveis no balcão das "convicções dos pais".
Previsivelmente, a fúria dos militantes políticos irriga as sementes de uma fúria simétrica. Escola Sem Partido, sim. Mas, ao mesmo tempo, Escola Sem Igreja.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

O Brasil parece ter compromisso com o atraso... A Bula do ministro da Educação Renato Janine, que saiu, contem princípio ativo que degenera a História e sinaliza com recursos ideológicos que confrontam com a Ética do Ensino e que produziria diversos efeitos colaterais ao longo de sua posologia...


quinta-feira, outubro 08, 2015


História sem tempo 

fundo abstrato quebra Vetor grátis DEMÉTRIO MAGNOLI E ELAINE SENISE BARBOSA

O GLOBO - 08/10

Renato Janine, o Breve, transitou pela porta giratória do MEC em menos de seis meses. No curto reinado, antes da devolução do ministério a um “profissional da política”, teve tempo para proclamar a Base Nacional Comum (BNC), que equivale a um decreto ideológico de refundação do Brasil. Sob os auspícios do filósofo, a História foi abolida das escolas. No seu lugar, emerge uma sociologia do multiculturalismo destinada a apagar a lousa na qual gerações de professores ensinaram o processo histórico que conduziu à formação das modernas sociedades ocidentais, fundadas no princípio da igualdade dos indivíduos perante a lei.


O ensino de História, oficializado pelo Estado-nação no século 19, fixou o paradigma da narrativa histórica baseado no esquema temporal clássico: Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna, Idade Contemporânea. A crítica historiográfica contesta esse paradigma, impregnado de positivismo, evolucionismo e eurocentrismo, desde os anos 60. Mas o MEC joga fora o nenê junto com a água do banho, eliminando o que caracteriza o ensino de História: uma narrativa que se organiza na perspectiva temporal. Segundo a BNC, no 6.º ano do ensino fundamental, alunos de 11 anos são convidados a “problematizar” o “modelo quadripartite francês”, que nunca mais reaparecerá. Muito depois, no ensino médio, aquilo que se chamava História Geral surgirá sob a forma fragmentária do estudo dos “mundos ameríndios, africanos e afrobrasileiros” (1.º ano), dos “mundos americanos” (2.º ano) e dos “mundos europeus e asiáticos” (3.º ano).


O esquema temporal clássico reconhecia que a mundialização da história humana derivou da expansão dos Estados europeus, num processo ritmado pelas Navegações, pelo Iluminismo, pela Revolução Industrial e pelo imperialismo. A tradição greco-romana, o cristianismo, o comércio, as tecnologias modernas e o advento da ideia de cidadania difundiram-se nesse amplo movimento que enlaçou, diferenciadamente, o mundo inteiro. A BNC rasga todas essas páginas para inaugurar o ensino de histórias paralelas de povos separados pela muralha da “cultura”. Os educadores do multiculturalismo que a elaboraram compartilham com os neoconservadores o paradigma do “choque de civilizações”, apenas invertendo os sinais de positividade e negatividade.


A ordem do dia é esculpir um Brasil descontaminado de heranças europeias. Na cartilha da BNC, o Brasil situa-se na intersecção dos “mundos ameríndios” com os “mundos afrobrasileiros”, sendo a Conquista, exclusivamente, uma irrupção genocida contra os povos autóctones e os povos africanos deslocados para a América Portuguesa. A mesma cartilha, com a finalidade de negar legitimidade às histórias nacionais, figura os “mundos americanos” como uma coleção das diásporas africana, indígena, asiática e europeia, “entre os séculos 16 e 21”. O conceito de nação deve ser derrubado para ceder espaço a uma história de grupos étnicos e culturais encaixados, pela força, na moldura das fronteiras políticas contemporâneas.


A historiografia liberal articula-se em torno do indivíduo e da política. A historiografia marxista organiza-se ao redor das classes sociais e da economia. Nas suas diferenças, ambas valorizam a historicidade, o movimento, a sucessão de “causas” e “consequências”. Já a Sociologia do Multiculturalismo é uma revolta reacionária contra a escritura da história. Seus sujeitos históricos são grupos etnoculturais sempre iguais a si mesmos, fechados na concha da tradição, que percorrem como cometas solitários o vazio do tempo. Na História da BNC, o que existe é apenas um recorrente cotejo moralista entre algoz e vítima, perfeito para o discurso de professores convertidos em doutrinadores.


Na BNC, não há menção à Grécia Clássica: sem a Ágora, os alunos nunca ouvirão falar das raízes do conceito de cidadania. Igualmente, inexistem referências sobre o medievo das catedrais, das cidades e do comércio: sem elas, nossas escolas cancelam o ensino do “império da Igreja” e das rupturas que originaram a modernidade. O MEC também decidiu excluir da narrativa histórica o Absolutismo e o Iluminismo, cancelando o estudo da formação do Estado-nação. A Revolução Francesa, por sua vez, surge apenas de passagem, no 8.º ano, como apêndice da análise das “incorporações do pensamento liberal no Brasil”.


Sob o sólido silêncio de nossas universidades, o MEC endossa propostas pedagógicas avessas à melhor produção universitária, que geram professores “obsoletos” em seus conhecimentos e métodos. Marc Bloch disse que “a História é a ciência dos homens no tempo”. Suas obras consagradas, bem como as de tantos outros, como Peter Burke, Jules Michelet, Perry Anderson, Maurice Dobb, Eric Hobsbawm, Joseph Ki-Zerbo, Marc Ferro, Albert Hourani, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda e José Murilo de Carvalho, não servem mais como fontes de inspiração para o nosso ensino. A partir de agora, em linha com o decreto firmado pelo ministro antes da defenestração, os professores devem curvar-se a autores obscuros, que ganharão selos de autenticidade política emitidos pelo MEC.


Não é incompetência, mas projeto político. Num parecer do Conselho Nacional de Educação de 2004, está escrito que o ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana “deve orientar para o esclarecimento de equívocos quanto a uma identidade humana universal”. Equívocos! No altar de uma educação ideológica, voltada para promover a “cultura”, a etnia e a raça, o MEC imolava o universalismo, incinerando a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A trajetória iniciada por meio daquele parecer conclui-se com uma BNC que descarta a historicidade para ocultar os princípios originários da democracia.


Doutrinação escolar? A intenção é essa, mas o verdadeiro resultado da abolição da História será um novo e brutal retrocesso nos indicadores de aprendizagem.

domingo, 28 de junho de 2015

Hino a Lula.../ Demetrio Magnoli/ blog do Murilo

sábado, 7 de fevereiro de 2015

"Que país é esse...?" / Demétrio Magnoli em Instituto Millenium / Entrevista


Demétrio Magnoli sobre a política de cotas raciais: “O Supremo eliminou o artigo 5º que dispõe sobre a igualdade dos cidadãos perante a lei. “

Apesar da aprovação por unanimidade pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a política de reserva de vagas para estudantes negros está longe de alcançar um consenso na sociedade brasileira.
Para esclarecer alguns dos aspectos que permeiam a questão das cotas, como o desrespeito ao princípio da igualdade jurídica, a ameaça de popularização do racismo e a possível extensão do sistema para o funcionalismo público e para o mercado de trabalho, o Instituto Millenium ouviu a opinião do sociólogo Demétrio Magnoli.
Instituto Millenium: O senhor acredita que a aprovação da política de cotas raciais na Universidade de Brasília (UnB) por unanimidade no Supremo Tribunal Federal (STF) representa um retrocesso para legislação brasileira, por quê?
Demétrio Magnoli: 
Não é apenas um retrocesso. Normalmente, as cortes constitucionais interpretam o texto da Constituição. Nesse caso, não havia nada a ser interpretado, porque a letra do texto era nítida e direta. O que o Supremo fez foi mudar a Constituição, sem dizer isso.
Na verdade, o Supremo eliminou o artigo 5º que dispõe sobre a igualdade dos cidadãos perante a lei. Junto com isso foram eliminados outros artigos como aquele que dispõe sobre o acesso ao ensino superior que, de acordo com a Constituição, será feito através do mérito.
Isso deveria nos levar a uma pergunta crucial que é por que o Supremo fez isso e por que fez isso por unanimidade?
Imil: O Sr. tem uma resposta para essa questão?
Magnoli: 
A medida revela a fraqueza do princípio da igualdade perante a lei no Brasil. Na história do Brasil esse é um princípio fraco porque somos um país cuja formação política se deu com base nas relações pessoais e porque foi abandonado pelas principais correntes políticas do país. O princípio de igualdade foi abandonado pela esquerda e também pelas correntes liberais e democráticas.
Formou-se um consenso na elite política, não estou falando em consenso nacional e nem da população, de aceitação da eliminação do princípio de igualdade perante a lei. Acho que o Supremo reflete o espírito de um tempo onde a elite política quase como um todo tem moldado a ideia da raça.
O que eu tento fazer é apontar um caminho de reflexão. Seria importante notar o contraste entre o que fez o Supremo e o que fizeram cortes constitucionais de outras democracias diante da questão das cotas raciais.
Na Índia, pouco depois da independência, tiveram início processos de cotas para as castas. Essas propostas foram barradas pela corte constitucional indiana obrigando o Congresso a relativizar o princípio da igualdade perante a lei, introduzindo uma clausula racial na Constituição indiana. Recentemente, a Suprema Corte Americana barrou as políticas de preferência racial de modo geral.
Imil: Em uma entrevista concedida ao Canal Livre, o Sr. associa a criação de cotas raciais e a consequente divisão do povo brasileiro entre brancos e negros a uma demanda por poder político da liderança negra. O senhor poderia explicar esse argumento?MagnoliDe um modo geral, as iniciativas de políticas raciais não partiram de nenhum partido político. Elas partem das chamadas ONGs do movimento negro, com laços internacionais. E o que essas ONGs buscam é poder político, não algum tipo de redenção social. Dizer que esse tipo de política é favorável aos pobres é uma patética tentativa de justificar uma política de raças. Se alguém quisesse fazer política para os pobres passava a fazer uma política de renda.
Imil: Quais são as consequências das cotas para a área de Educação?
Magnoli: O que esta sendo feito na verdade é trocar uma série de ingressantes da universidade de cor mais clara por uma série de ingressantes de cor mais escura. Sendo os dois grupos pertencentes, de modo geral, à classe média.
Nesse caminho se violam direitos individuais, o direito de candidatos que tiraram notas melhores que outros candidatos, mas foram preteridos pelo sistema de cotas. A explicação para isso é que o direito desses indivíduos deve ser suprimido em nome de um princípio de redenção racial.
O que nos coloca num ponto chave. O Supremo substituiu uma Constituição que vê a nação com um conjunto de indivíduos por uma Constituição que vê a nação como uma coleção de grupos de raça.
Imil: O senhor acredita que haverá um avanço da política de cotas nas universidades brasileiras, isto é, universidades que ainda não adotaram o sistema como a  Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade de Campinas (Unicamp) tendem a aderir?
Magnoli: Acho que sim. Eu enfatizo o voto do ministro Marco Aurélio quando ele diz que não só as cotas são legais, como elas deveriam se generalizar. A decisão do Supremo coloca uma extraordinária pressão sobre as universidades que não adotaram o sistema de cotas raciais de algum tipo.
Isso é o ovo da serpente do racismo como princípio de mobilização popular
Imil: A política de cotas raciais pode ser adotada em outras esferas da maquina pública?
Magnoli:
 É cada vez mais provável a hipótese de generalização de cotas raciais no funcionalismo público e no mercado de trabalho privado em geral. Porque não há nenhuma diferença de natureza entre cotas raciais nas universidades e cotas raciais no mercado de trabalho e no funcionalismo público. Os mesmos argumentos que serviram para justificar as cotas nas universidades podem justificar a extensão dessa política para o funcionalismo público e para o mercado de trabalho privado. Esses serão os principais alvos das políticas racialistas nos próximos anos.
Imil: Quais seriam as consequências da generalização da política de cotas para o país?
Magnoli:
 A difusão popular do racismo. O racismo existe em todos os lugares.  Ele se torna um problema crítico quando se difunde popularmente. No Brasil existe racismo, o que praticamente inexiste aqui é o racismo como uma força mobilizadora popular.
A generalização das cotas como quer o ministro Marco Aurélio e as ONGs racialistas tende a inculcar a ideia de identidade de raça no meio do povo. Quando você generaliza as cotas o que você faz e difundir a regra segundo a qual “eu faço parte de uma raça e disso depende os meus direitos”. Isso é o ovo da serpente do racismo como princípio de mobilização popular.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Reforma Política é uma ilusão...// Demétrio Magnoli

Enviado por Ricardo Noblat - 
01.08.2013
 | 
17h32m
POLÍTICA

0%2C%2C36338688-DP%2C0.JPG (398×391)Da arte de iludir

Demétrio Magnoli
Todos eles leram “O leopardo”, de Lampedusa. “Se queremos que as coisas permaneçam como sempre foram, elas terão que mudar” — o célebre conselho de Tancredi Falconeri a Don Fabrizio provavelmente não foi enunciado explicitamente na reunião de Dilma Rousseff com os líderes do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), mas uns e outros sabiam que era disso que se tratava.
A presidente declarou-se simpática à proposta de reforma política, mas não chegou a anunciar um apoio público, algo que “não interessa” ao movimento, segundo o juiz Márlon Reis. O patrocínio oficial ficou, assim, fora dos autos.
Nas ruas, em junho, gritaram-se as palavras “educação” e “saúde”, não “reforma política”. Contudo, o governo concluiu, razoavelmente, que o sistema político em vigor tornou-se insuportável — e resolveu agir antes que uma nova onda de manifestações se organize sob a bandeira de “Fora Dilma”.
Os ensaios sucessivos da constituinte exclusiva, uma flagrante inconstitucionalidade, e do plebiscito, uma tentativa quixotesca de cassar as prerrogativas do Congresso (o que se traduz, hoje, na prática, como prerrogativas do PMDB) evidenciaram o desespero que invadiu o Planalto. É sobre esse pano de fundo que surgiu, como derradeira boia de salvação, a iniciativa do MCCE. Tancredi está entre nós.
Antes das manifestações de junho, só o PT tinha uma proposta completa de reforma política. Nos sonhos petistas, o anárquico e corrompido sistema atual evoluiria em direção a algo mais consistente — e ainda mais impermeável à vontade dos cidadãos. O financiamento público de campanha concluiria o processo de estatização dos partidos políticos, que se tornariam virtualmente imunes ao escrutínio popular.
O voto em lista fechada concentraria o poder nas mãos das cúpulas partidárias, rompendo os tênues vínculos ainda existentes entre os eleitores e seus representantes. No fim, surgiria uma partidocracia cortada segundo os interesses exclusivos do partido dotado da máquina eleitoral mais eficiente.
O projeto petista, que já esbarrava na resistência do restante da elite política, tornou-se inviável depois do transbordamento das insatisfações populares. No lugar dele, o Planalto inclina-se em direção ao artefato lampedusiano produzido no forno do MCCE.
O primeiro componente da proposta, sobre o financiamento de campanha, é um tímido aceno às ruas. O segundo, sobre o sistema eleitoral, é uma versão levemente modificada do projeto petista do voto em listas fechadas. Os autores da proposta têm bons motivos para temer que lhes colem o rótulo de companheiros de viagem do governo.
Dentro da ideia do financiamento público de campanha pulsa um coração totalitário. Sob a sua lógica, os partidos se libertariam por completo da necessidade de persuadir as pessoas a financiá-los. Pela mesma lógica, eu seria compelido a pagar as campanhas de figuras arcaicas restauradas pelo lulopetismo (Sarney, Calheiros, Collor, Maluf), de pastores fanáticos que sonham incendiar bruxas (Feliciano), de oportunistas sem freios atraídos pelas luzes do poder (Kassab, Afif), de saudosistas confessos do regime militar (Bolsonaro) e de stalinistas conservados em formol que adoram ditaduras de esquerda (quase todos os candidatos do PT, do PCdoB e do PSOL).
O MCCE rejeitou essa ideia macabra, associando sensatamente o financiamento de campanha à capacidade dos partidos de exercer influência sobre cidadãos livres. Entretanto, curvando-se aos interesses gerais da elite política, a proposta não toca nas vacas sagradas do sistema em vigor: o Fundo Partidário e o tempo de televisão cinicamente qualificado como gratuito.
"O sistema eleitoral atual é uma triste caricatura de democracia representativa. Soterrados sob listas intermináveis de candidatos apresentados por dezenas de siglas partidárias e ludibriados pelo truque imoral das coligações proporcionais, os eleitores operam como engrenagens da máquina de reprodução de uma elite política bárbara, hostil ao interesse público."
A alternativa petista do voto em listas fechadas corrompe a representação de um modo diverso, mas não menos doentio, conferindo aos chefes dos partidos o poder extraordinário de esculpir a composição do parlamento.
A proposta do MCCE envolve a alternativa petista num celofane ilusório, sem modificar o seu cerne. Os partidos seriam obrigados a realizar prévias internas fiscalizadas pela Justiça Eleitoral para selecionar seus candidatos, o que configura uma interferência antidemocrática na vida partidária.
Numa primeira etapa, os eleitores votariam apenas nos partidos.Depois, na etapa derradeira, votariam em nomes constantes de listas com duas vezes mais candidatos que as vagas obtidas na etapa anterior. A valsa complexa conserva o poder de decisão essencialmente com os dirigentes dos partidos, mas distribui alguns doces aos eleitores. O Planalto e o PT entenderam o sentido da obra — que, por isso mesmo, deve ser descrita como “apartidária”.
Uma ruptura democrática seria a adoção do sistema de voto distrital misto. Nos Estados Unidos e na França, a disputa entre apenas um candidato de cada partido em circunscrições eleitorais delimitadas transfere o poder de decisão para os eleitores e provoca nítidas polarizações ideológicas. Sob a sua lógica, os partidos são estimulados a lançar candidatos capazes de sobreviver ao escrutínio direto do público. E, ao contrário do que argumentam os arautos do voto proporcional exclusivo, os candidatos não podem se apresentar como “deputados-vereadores”, pois a dinâmica da disputa majoritária os compele a associar seus nomes às posições doutrinárias de seus partidos.

O MCCE, porém, parece avesso à ideia de uma mudança genuína. “Precisamos do apoio de todas as forças políticas na hora da aprovação no Congresso”, explicou Márlon Reis, o Tancredi disponível na esteira da tempestade de junho.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

"O que é a sociedade? Não existe essa coisa..." // Frase de Margaret Thatcher // Demétrio Magnoli

“Essa coisa de sociedade não existe”

12 de abril de 2013 
Autor: Demétrio Magnoli
pequeno normal grande
Demétrio Magnoli - Instituto Millenium
“We built it” (nós construímos isso) – a frase, estampada nas telas e entoada pelos delegados, foi o tema central da convenção republicana do ano passado. Os republicanos estavam dizendo que os empresários criam seus negócios pelos próprios esforços e nada devem a ninguém. Mitt Romney, o candidato escolhido, extraiu um corolário negativo da mensagem, sintetizando-o no célebre parágrafo sobre os “47%”, registrado por uma câmera clandestina num jantar fechado de coleta de fundos: 47% dos americanos votariam em Barack Obama em qualquer circunstância, pois são “dependentes do governo” e “acreditam-se vítimas”. Como um maestro oculto na coxia, o vulto de Margaret Thatcher regia a orquestra republicana – e, por oposição, também a democrata.
No 10, Downing Street, sede do governo britânico, em setembro de 1987, a primeira-ministra concedeu uma entrevista à revista feminina Woman’s Own. Confrontada com uma pergunta confusa sobre a ganância e os yuppies da City, ela disse que nada havia de errado com o desejo de ganhar sempre mais dinheiro e, na sequência, delineou seu credo filosófico: “Acho que atravessamos um período no qual muitas crianças e pessoas foram levadas a acreditar que, se tenho um problema, é a missão do governo resolvê-lo ou que conseguirei uma subvenção para lidar com ele ou que, se sou um sem-teto, o governo deve dar-me moradia – de tal modo que essas pessoas estão arremessando seu problemas sobre a sociedade. Mas o que é a sociedade? Não existe essa coisa. O que existe são homens e mulheres, indivíduos, e famílias (…)”.
Thatcher não inventou essa crença, mas inscreveu-a com letras de fogo na cena política do pós-guerra. Ronald Reagan, eleito presidente dos EUA um ano depois da ascensão da “revolucionária conservadora” britânica, certamente subscreveria sua passagem sobre a “sociedade”. A polêmica que marcou as últimas eleições americanas não foi deflagrada por Romney, mas por Obama, semanas antes da convenção republicana, num discurso de improviso na Virginia. No fundo, o presidente respondia a Thatcher e a Reagan: “Se você foi bem-sucedido, não chegou lá por conta própria. Se você triunfou, alguém no caminho lhe deu alguma ajuda. Houve um grande professor em algum ponto de sua vida. Alguém ajudou a criar esse inacreditável sistema americano que permite que você prospere. Alguém investiu em estradas e pontes. A internet não nasceu espontaneamente. A pesquisa financiada pelo governo criou a internet, de modo que todas as empresas pudessem lucrar com ela. Quando alcançamos sucesso, triunfamos por nossa iniciativa individual, mas também porque fizemos coisas juntos”.
O capitalismo contemporâneo diferencia-se, no espaço e no tempo, ao sabor das oscilações eleitorais entre o ‘partido do indivíduo’ e o ‘partido da sociedade’
Obama tinha razão – e poderia acrescentar que a nova revolução energética em curso nos EUA deriva de pesquisa básica pública nos campos do fraturamento hidráulico e da perfuração horizontal. Mas, de certo modo, Thatcher também estava com a razão ao traçar círculos de giz em torno do indivíduo e da responsabilidade individual. A fé cega na “sociedade” fabricou corpos sociais fragmentados em fortalezas corporativas, vincados pelas linhas férreas das regulamentações e dos privilégios, entorpecidos sob uma pesada manta de garantias intocáveis. A Itália e a Grécia, entre tantos outros casos, evidenciam a virulência dessa enfermidade que arruína a capacidade de inventar e inovar das nações.
Thatcher não era rica nem defendia os privilégios de casta numa Grã-Bretanha que por tanto tempo acreditara nas distinções de berço e de sangue. Seu primeiro triunfo eleitoral decorreu do esgotamento do modelo de “República sindical” esculpido por sucessivos governos trabalhistas. Os britânicos não aguentavam mais a combinação de estagnação e inflação oferecida por social-democratas presos nas teias dos compromissos sindicais. Thatcher erguia o estandarte do “capitalismo popular”, uma ideia que renovou o Partido Conservador e década e meia depois, com o advento de Tony Blair, acabou provocando uma reinvenção vital do Partido Trabalhista.
Segundo uma lenda persistente, Thatcher e Reagan inauguraram o “neoliberalismo”. Em 1964 os gastos públicos britânicos representavam 38% do PIB. Durante a “era Thatcher”, entre 1979 e 1990, retrocederam de 45% para 39% do PIB. Em 2009, no ponto de partida da crise atual, estavam de volta à marca dos 48%, perto do recorde histórico, atingido em 1975. Hoje giram em torno de 43%, ainda acima do patamar thatcherista. Nenhuma utopia sobre o Estado mínimo tem o poder de fazer a História retroagir aos anos 1920, suprimindo o Estado de bem-estar erguido paulatinamente desde a Grande Depressão. Essa “coisa de sociedade” certamente existe, mas essa coisa de “neoliberalismo” não passa de uma fraude intelectual primitiva.
A dinâmica política das sociedades abertas articula-se como um debate incessante sobre os argumentos de Thatcher e de Obama. O capitalismo contemporâneo diferencia-se, no espaço e no tempo, ao sabor das oscilações eleitorais entre o “partido do indivíduo” e o “partido da sociedade”. Dois anos depois da entrevista de Thatcher à Woman’s Own, a queda do Muro de Berlim assinalou o colapso do “socialismo real”. O sistema soviético não tinha lugar nem para o indivíduo nem para a sociedade – mas unicamente para um Estado totalitário que sufocava tanto a criatividade individual quanto os direitos sociais.
Dominic Phillips, um jornalista de esquerda que pedia a cabeça de Thatcher durante a greve dos mineiros de 1984, escreveu o seguinte, um quarto de século mais tarde: “Ainda odiamos Margaret Thatcher. Mas ela me legou ambição e oportunidade. E não só a mim. Aprendemos que nossa carreira profissional era nossa responsabilidade mesmo. E, por isso, também a agradecemos”. Desconfio que ela emolduraria esse elogio de alguém que acredita nessa “coisa de sociedade”, preferindo-o às homenagens convencionais dos estadistas.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 11/04/2013

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Uma coisa é uma coisa outra coisa é outra coisa


Erro 404

4 de janeiro de 2013 
Autor: Demétrio Magnoli
pequeno normal grande
demetrio
Na chamada de um post recente, intitulado “As mentiras de Yoani Sánchez em 2012″, Yohandry anunciou o propósito de “narrar as falácias desta mulher, uma traiçoeira criação midiática”, com a finalidade de esclarecer seus “colegas de todo o mundo, (…) alertando quem ainda possa estar confuso”. Yohandry Fontana provavelmente não existe. O nome de guerra serve como assinatura de um blog oficial, que surgiu como reação ao de Yoani para reproduzir as sentenças de propaganda e os insultos políticos fabricados pelo regime castrista. O curioso, quase onírico, é que Cuba é um país virtualmente sem internet: o blogueiro inventado pelo poder escreve para “colegas” internautas “de todo o mundo”, mas não para os cubanos comuns residentes na ilha. O totalitarismo dos Castros subsiste num espaço-tempo anterior às redes sociais. O cenário é radicalmente diverso na China, onde um regime totalitário tenta provar que pode sobreviver à revolução da informação.
Quando visitou o país, o criador do Facebook, Mark Zuckerberg, foi saudado pelo banner viral “Bem-vindo à China, fundador do website Erro 404″, difundido pelos blogueiros chineses. Fruto da eficácia negativa do Grande Firewall da China (GFC), a mensagem “Erro 404″, alerta de que o servidor não encontrou o endereço solicitado, repete-se em escala descomunal nas telas de computadores e celulares do país. O Escudo Dourado, nome oficial do GFC, encomendado pelo Ministério da Segurança Pública, começou a operar em 2003. As ambições do projeto ultrapassam largamente a simples censura: trata-se de avançar rumo à implantação de uma gigantesca base de dados analítica de textos e imagens publicados pelos usuários da rede virtual com tecnologias que abrangem reconhecimento facial e de voz.
Totalitarismo é algo bem diferente de autoritarismo. O segundo se ampara, exclusivamente, na força e se contenta em calar, prender ou eliminar opositores. O primeiro também se ampara na força, mas nutre a pretensão de persuadir a sociedade a acreditar no seu enredo sobre a história – ou seja, numa narrativa que o torna depositário de uma legitimidade transcendental. George Orwell explicou isso: “O Estado totalitário é, efetivamente, uma teocracia e sua casta dirigente, a fim de conservar sua posição, deve ser vista como infalível. Mas como, na prática, ninguém é infalível, torna-se frequentemente necessário rearranjar os eventos passados de modo a mostrar que este ou aquele erro não ocorreu ou que este ou aquele triunfo imaginário realmente aconteceu”. Eis por que a política do totalitarismo demanda o controle sobre a linguagem empregada pelas pessoas. Não é trivial exercer tal controle na era da internet.
O totalitarismo dos Castros subsiste num espaço-tempo anterior às redes sociais
Os totalitarismos do século 20 detinham o monopólio dos grandes meios de comunicação da época: o rádio, o cinema, a televisão. Os regimes de Stalin, Mussolini e Hitler tinham consciência do valor político das mídias de massa e empenharam-se no seu desenvolvimento tecnológico e no aprimoramento técnico e artístico das mensagens que difundiam. Contudo as redes sociais da internet são intrinsecamente distintas das mídias eletrônicas tradicionais, pois todos os participantes podem operar como emissores de mensagens. Na China o Twitter é proibido, mas serviços nacionais similares contam com mais de 200 milhões de usuários. Por meio deles, dezenas de milhares de microblogueiros formam a vanguarda da dissidência política, organizando protestos de rua e denunciando a corrupção oficial.
À sombra do “Erro 404″ desenvolve-se um infindável jogo de gato e rato entre o GFC e os internautas. Na esfera da tecnologia, o desafio de circundar a censura estimula a invenção de softwares de codificação e a criação de rotas alternativas para acesso a servidores bloqueados. Na esfera da linguagem, ilude-se o Grande Irmão pelo emprego do método da analogia e pelo uso em profusão de metáforas, alegorias, parábolas e termos homófonos. A ironia é uma companheira inseparável dos microblogueiros subversivos: segundo eles, sites e blogs não são “suprimidos”, mas “harmonizados”, numa referência à meta declarada do regime de produzir uma “sociedade socialista harmoniosa”.
Ai Weiwei saltou a etapa da ironia, entregando-se ao sarcasmo. O artista plástico, consultor dos arquitetos que projetaram o estádio olímpico Ninho do Pássaro, tornou-se um dos mais notórios dissidentes chineses. Multado, encarcerado e espancado, ele não se “harmonizou”. Meses atrás postou no YouTube um vídeo em que aparece dançando no “estilo Gangnam” e usando algemas. Antes disso, diante da instalação de 15 câmeras para o monitoramento policial de seus movimentos, conectou à internet a “weiweicam”, uma câmera que filma sem parar o cenário de seu quarto. “Acho que eles não sabem como lidar com alguém como eu e meio que desistiram de me gerenciar”, sugeriu em entrevista recente. O escárnio fere o totalitarismo ainda mais que a acusação racional ou a denúncia moral.
Na opinião de Weiwei, a democracia chegará à China na década de 2020. Entre os analistas ocidentais vulgarizou-se o precário paralelo com a Coreia do Sul e Taiwan, que transitaram para a democracia no compasso da modernização econômica, da urbanização e da consolidação de uma classe média cosmopolita. De acordo com essa linha otimista de interpretação, a própria elite dirigente chinesa administrará uma transição política gradual, dissolvendo aos poucos os grilhões do sistema totalitário.
Tudo é possível. O certo é que não há precedentes adequados para orientar a análise. Entre as inúmeras singularidades históricas da China, a mais relevante se encontra justamente na universalização das redes sociais ao abrigo de um Estado totalitário. O poder de Mao Tsé-tung não foi abalado pela maior crise de fome do século 20. Em contraste, o “Erro 404″ tem o potencial de arrasar a fortaleza de seus sucessores.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 03/01/2013

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Teoria política da corrupção /// Demétrio Magnoli

Teoria Política da Corrupção
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Nos idos de 2005, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos formulou o discurso adotado pelo PT face ao escândalo do mensalão. O noticiário, ensinou, constituiria uma tentativa de “golpe das elites” contra o “governo popular” de Lula. Ano passado, o autor da tese assumiu a presidência da Casa de Rui Barbosa, cargo de confiança subordinado ao Ministério da Cultura. É nessa condição que, em entrevista ao jornal “Valor” (21/9), ele reativa sua linha de montagem de discursos “científicos” adaptados às conveniências do lulismo. Dessa vez, para crismar o julgamento do mensalão como “julgamento de exceção” conduzido por uma corte “pré-democrática”.

A entrevista diz alguma coisa sobre o jornalismo do “Valor”. As perguntas não são indagações, no sentido preciso do termo, mas introduções propícias à exposição da tese do entrevistado — como se (oh, não, impossível!) jornalista e intelectual engajado preparassem o texto a quatro mãos. Mas a peça diz uma coisa mais importante sobre o tema do compromisso entre os intelectuais e o poder: o discurso científico sucumbe no pântano da fraude quando é rebaixado ao estatuto de ferramenta política de ocasião. Os ministros do STF narraram uma história de apropriação criminosa de recursos públicos e de fabricação de empréstimos fraudulentos pela direção do PT, que se utilizou para tanto das prerrogativas de quem detém o poder de Estado. Wanderley Guilherme, contudo, transita em universo paralelo, circundando o tema da origem do dinheiro e repetindo a versão desmoralizada da defesa. “O que os ministros expuseram até agora é a intimidade do caixa 2 de campanhas eleitorais (...). Isso eles se recusam a discutir, como se o que eles estão julgando não fosse algo comum (...), como se fosse algum projeto maligno.”

Wanderley Guilherme não parece incomodado com a condenação dos operadores financeiros do esquema, mas interpreta os veredictos dos ministros contra os operadores políticos (ou seja: os dirigentes do PT) como frutos de um “desprezo aristocrático” à “política profissional”. O dinheiro desviado serviu para construir uma coalizão governista destituída de um mínimo de consenso político, explicou a maioria do STF. O cientista político, porém, atribui o diagnóstico a uma natureza “pré-democrática” de juízes incapazes de compreender tanto os defeitos da legislação eleitoral brasileira quanto o funcionamento dos “sistemas de representação proporcional”, que “são governados por coalizões das mais variadas”.

O núcleo do argumento serviria para a defesa de todo e qualquer “mensalão”. Os acusados tucanos do “mensalão mineiro” e os acusados do DEM do “mensalão de Brasília” estão tão amparados quanto os petistas por uma concepção da “política profissional” que invoca a democracia para justificar a fraude do sistema de representação popular e qualifica como aristocráticos os esforços para separar a esfera pública da esfera privada. A teoria política da corrupção formulada pelo intelectual deve ser lida como um manifesto em defesa de privilégios de impunidade judicial do conjunto da elite política brasileira.

Mas, obviamente, o argumento perde a força persuasiva se for lido como aquilo que, de fato, é. Para ocultar seu sentido, conferindo à obra uma coloração “progressista”, Wanderley Guilherme acrescenta-lhe uma camada de tinta fresca. A insurreição “aristocrática” do STF contra a “política democrática” derivaria da rejeição a uma novidade histórica: a irrupção da “política popular de mobilização”, representada pelo PT. A corte suprema estaria “reagindo à democracia em ação” por meio de um “julgamento de exceção”, um evento singular que “jamais vai acontecer de novo”.

É nesse ponto do raciocínio que a teoria política da corrupção se transforma na corrupção da teoria política. Uma regra inviolável do discurso científico, explicou Karl Popper, é a exigência de consistência interna. Um discurso só tem estatuto científico se está aberto a argumentos racionais contrários.

Quando apela à profecia de que os tribunais não julgarão outros casos com base na jurisprudência estabelecida nos veredictos do mensalão, Wanderley Guilherme embrenha-se pela vereda da fraude científica. A sua hipótese sobre o futuro — que, logicamente, não pode ser confirmada ou falseada — impede a aplicação do teste de Popper.

Há duas leituras contrastantes, ambas coerentes, sobre o “mensalão do PT”. A primeira acusa o partido de agir “como os outros”, entregando-se às práticas convencionais da tradição patrimonial brasileira e levando-as a consequências extremas. O diagnóstico, uma “crítica pela esquerda”, interpreta o extenso arco de alianças organizado pelo lulismo como fonte de corrupção e atestado da falência da natureza transformadora do PT. A segunda acusa o partido de operar, sob o impulso de um projeto de poder autoritário, com a finalidade de quebrar os contrapesos parlamentares ao Executivo e perpetuar-se no governo. 

A “crítica pela direita” distingue o “mensalão do PT” de outros casos de corrupção política, enfatizando o caráter centralizado e as metas de longo prazo do conjunto da operação.

A leitura corrompida de Wanderley Guilherme forma uma curiosa alternativa às duas interpretações. Seu núcleo é uma celebração da corrupção inerente à política patrimonial tradicional, que seria a “política profissional” nos “sistemas de representação proporcional”. Seu verniz aparente, por outro lado, é um elogio exclusivo da corrupção petista, que expressaria a “irrupção da política de mobilização popular” e a “democracia em ação”. Na fronteira onde o pensamento acadêmico se conecta com a empulhação militante, o paradoxo pode até ser batizado como dialética. Contudo, mais apropriado é reconhecê-lo como um reflexo especular da fotografia na qual Paulo Maluf e Lula da Silva reelaboram os significados dos termos “direita” e “esquerda”. Do site do jornal O Globo