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quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Faça sua escolha ... entre Realidade e Ficção / Roberto Damatta em O Globo


O fato e o processo - ROBERTO DAMATTA

O GLOBO - 23/12

Na intimidade, traía-se o reino, e barões e duques eram vistos recebendo e dando o que Jurubeba chamava de pixuleco. Apurou-se que era tudo verdade!
Os especialistas em sexualidade dizem que quanto mais preocupação com a técnica, menos prazer.

Dito isto, vou à minha história.

O reino de Jurubeba era enorme e, talvez por isso, tivesse o gosto de acasalar opostos. Daí a adoção de um regime republicano em meio a uma semimonarquia. Para muitos foi um avanço, para outros, um passo em falso. Como conciliar ideais monárquicos com valores republicanos? Estes queriam distribuir renda pela necessidade e pelo mérito, aqueles pelo mérito e pela necessidade. O novo regime tinha afeição pela ambiguidade, sempre resolvida com muito formalismo jurídico e bate-boca.

Um dia ficaram sabendo que a mais fina realeza jurubebiana era traidora. Em público a nobreza dominante dizia ser contra Corrução, um reino inimigo, pequeno, mas forte, que fazia a fronteira esquerda com Jurubeba. Mas na intimidade, traía-se o reino, e barões e duques eram vistos recebendo e dando o que Jurubeba chamava de pixuleco.

Apurou-se que era tudo verdade!

Agentes secretos de Corrução infiltraram-se em Jurubeba, disseminando o roubo e a traição. Desonravam-se títulos imortais de nobreza pelas propinas que compravam um “green-card”, ao passo que bilhões de pixulecos davam plena cidadania em Corrução.

Muitos nobres de Jurubeba eram canalhas, mas protegidos por velhos privilégios de casta. E como os privilégios impediam condenações drásticas, o Direito era uma matéria básica em Jurubeba. De fato, num reino onde tudo, até o real, era regulado e poderia ser criado e corrigido por lei, todos — de sapateiros aos sacros magistrados do Tribunal de Suplicação — entendiam de regimentos, constituições, códigos e regras. Mas, mesmo assim e talvez por isso mesmo, todo dia alguém era acusado de grave delito. Passado, entretanto, o susto da denúncia, as coisas voltavam ao normal e a casta dos acusados e delinquentes tornava-se a maior, a mais poderosa e a mais escandalosa do reino.

Alguns diziam que, para ser uma democracia, o reino de Jurubeba tinha que mudar suas atitudes aristocráticas, mas os ladrões e traidores achavam que ser uma república com procedimentos e hábitos monarquistas era normal e até mesmo ideal. Enquanto isso, Corrução criava seus adeptos e ampliava sua lista de quinta-colunas.

Traição e ladroagem em alta escala, ao lado de um rei grosseiro e incompetente, incapaz de falar porque era mais gago do que o George da Inglaterra, culminaram com os escândalos das minas.

A vida estava dura. A cada manhã anunciava-se um novo crime; mas cada delito tinha o seu processo legal, de modo que tudo continuava na mesma. O ritual sagrado e longo neutralizava o crime e este procedimento engendrava novas acrobacias legais. Um dado juiz que se meteu a romper com essa lógica foi tido como traidor pela nobreza republicana da terra. As batalhas jurídicas imobilizaram o reino, preso por suas próprias leis e valores — todos legais e ilegais ao mesmo tempo.

Foi nesse contexto que, depois de instigar traições, Corrução declarou guerra e, ato contínuo, invadiu Jurubeba.

Diante da violência, o governo reagiu. Uma declaração de guerra era urgente. Mas entre a guerra (o fato) e a ação, havia o danado do processo legal que havia de ser impecável. Instalou-se um sério e denso debate sobre como seria a declaração. Depois de muito deliberar, a Suprema Corte anunciou as condições para tal rito. Ei-las:

Determinava-se a formação de uma Comissão de Guerra de mil membros para investigar se havia mesmo uma guerra. Dava-se um prazo de 30 dias para uma pré-declaração a ser avaliada pelo Real Conselho de Guerra, o qual, em terceiro lugar, teria o poder de rejeitá-la — o que, aliás ocorreu, com base num antigo decreto inspirado nas guerras Púnicas e bem lembrado pelo mais culto membro do Sacro Conselho Supremo, o qual só se comunicava em Latim. E, finalmente, seria preciso uma consulta popular para que todo reino manifestasse sua vontade soberana!

O procedimento estava em debate quando Jurubeba rendeu-se ao solerte inimigo. Muitos nobres, acusados de ser “reais-realistas”, disseram que foi bom porque afinal Corrupção já era mesmo a potência dominante. Outros choraram de indignação. Mas poucos, muito poucos, atinaram que a pátria fora morta pelo processo.
Isso ocorreu num Natal.

PS: Qualquer semelhança desta fábula com algum grupo ou pessoas, vivas, semivivas, sonâmbulas ou mortas é mera coincidência. Feliz Natal, amados leitores que fazem o cronista.

Roberto DaMatta é antropólogo 

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Baía de Guanabara : um desafio olímpico

04/06/2014

Um ponto de vista


Roberto Damatta
Leio que a poluição, na Baía de Guanabara, é um desafio olímpico. Examinada por técnicos, há a unanimidade que despoluir 80% da baía até o começo dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro de 2016, seria uma tarefa para o Super-homem ou talvez o Capitão Marvel, conforme me diriam Fernando e Romero, os meus finados irmãos gêmeos dos cinco irmãos e uma irmã dos quais eu tive o privilégio e a honra psicologicamente ambígua de ter sido "o mais velho".
... que quando um de nós elegíamos um super-herói alguém logo levantava outro, armando uma acalorada discussão sobre quem seria o mais poderoso... ramos crianças, mas, diferentemente dos governantes, tínhamos um vasto senso de realidade.
Jamais iriamos convocar o Fantasma Voador, o Flash Gordon, o Batman ou o Dick Tracy para disputar com o Super-homem, o Tocha Humana ou o Capitão Marvel, por que os primeiros eram seres humanos excepcionais, ao passo que os segundos possuíam poderes extra-humanos. Seriam como os santos ou os deuses do Olimpo, aquela montanha que, conforme invoca a reportagem de Ludmila de Lima publicada no Globo em 16/2, será representada pelo Pão de Açúcar e Corcovado nos jogos de 2016. Nossa consternação era que os santos somente atuavam em doenças e junto aos mortos, ao passo que os heróis que chegavam dos Estados Unidos, tocados à cultura de massa e alta urbanização, com suas terríveis questões e dilemas, agiam no mundo. Estavam mais próximos dos deuses gregos do que do nosso catolicismo, cuja orientação era para o outro mundo. Eu suspeito que acreditávamos mais no Super-homem, que residia em Metrópolis, e, na pele trivial de Clark Kent, era jornalista do Planeta Diário, do que em Deus.
Mas voltando à Baía de Guanabara, compreendo o dilema prático olímpico: como despoluir 80% em dois anos, quando se sabe que ela é premiada com 60% de todos os nojentos esgotos que a cercam - uma bagatela de 6 mil litros de porcaria a cada segundo! Convenhamos que essa é a melhor forma de matar a mais bela baía do mundo.
Um lado meu insiste que isso é obra das inúmeras circunstâncias da modernidade e que tais acidentes têm ocorrido em todos os lugares. Um outro, mais democrático e muito menos brasileiro, diz que a Baía de Guanabara é mais um exemplo de como temos nos adaptado ao individualismo, ao mercado, ao voto direto, à mídia, ao crescimento das cidades, ao nosso capitalismo monopolizador, rentista, semiestatal e hierarquizado que privatiza ganhos e socializa responsabilidades e perdas. Tudo isso pariu um sistema político-moral absolutamente antiolímpico. Decididamente contra um planejamento fora dos quadros das utopias populescas de direita e de esquerda. O que vamos ter após a Copa, será autoconsciência devastadora da nossa incapacidade de prevenir em vez de remediar. Essa máxima infantil que serve de lema para o Super-homem que, com sua visão de raio X, prendia os bandidos antes da ponte ser dinamitada.
Temo que os super-heróis e os santos fazem tudo, menos nos salvar de nós mesmos. E a eleição que vir logo após a Copa vai certamente comprovar a nossa compulsão para escolher o pior, o mais cínico, o mais perverso e o mais capaz de produzir uma destruição silenciosa, sutil, malandra, feita sem querer e por "gente boa" com a qual compartilhamos uma "Ética de Condescendência" que é parte fundamental do nosso inabalável elitismo.
Escrevo sobre a baía porque goste de acusar, mas porque nasci e - apesar de tudo - permaneci em Niterói. Uma Niterói cuja vocação marginal de "cidade dormitório" escondia dos dorminhocos cariocas paisagens deslumbrantes que experimentei quando abri os olhos para as praias das Flechas e da Boa Viajem, onde meus irmão e eu pescávamos em suas águas - acreditem-me - transparentes; e olhávamos as cavernas da encosta da Boa Viagem (os sugestivos Buraco do Adão e da Eva), como locais onde as fantasias viravam areia. Ali não havia tesouros de Ali Babá. E hoje não há nenhum herói ou deus para transformar o vergonhoso sujo da Guanabara no limpo capaz de honrar a sagrada tradição grega dos Jogos Olímpicos. O que seria um sonho vai virar pesadelo.
Mas como o mundo é uma bola, lembro uma velha piada. Os cariocas dizem que o melhor de Niterói é a vista do Rio. A réplica dos niteroienses é generosa. Os cariocas estão certos: o melhor do Rio é exatamente a paisagem.
Se Niterói não é uma cidade, mas - como aprendi com Valter Lima Jr. - um ponto de vista, daqui há uma visão do Rio com suas particularidades e seu senso de humor e seu carnavalismo de corte, com esperança. Afinal, não podemos continuar acasalados por uma ponte engarrafada e pelas águas de uma sentina. Algo olímpico deve ser feito urgentemente.
Com a palavra os que mandam e os que querem mandar.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

"É o partido do poder quem serve ao Brasil, e não o contrário"


ROBERTO DAMATTA - 12/01/2013 10h00 - Atualizado em 18/01/2013 16h34
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2013 – Ano Velho ou Novo?

ROBERTO DAMATTA
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ROBERTO DAMATTA é antropólogo, autor de Carnavais, malandros e heróis (1979) e Pé em Deus e fé na tábua (2010) (Foto: Guillermo Giansanti/ÉPOCA)
Perguntaram a Santo Agostinho de onde vinha o tempo, e ele disse: o tempo vem do futuro que ainda não existe; passa pelo presente, que não tem duração; e vai para o passado que não existe mais. Não tenho nenhuma afinidade com futurologias e sofro de aversão a previsões, sobretudo quando anunciam ideias grandiosas. O século XX (com duas grandes guerras e vários holocaustos e barbarismos) é a melhor prova do poder destrutivo de receitas para melhorar o mundo – como o nazismo, o comunismo e os vários autoritarismos latino-americanos, todos marcados por um excesso de credos com seus inevitáveis e sedutores milenarismos.

Mas concordo com Santo Agostinho que estamos todos num gigantesco trem histórico chegando à estação 2013 para, em seguida, deixá-la e esquecê-la. Penso que o ano de 2013 reafirmará nosso desejo de permanecer brasileiros. O que temos consolidado nesta primeira década deste século XXI não é a visão tremendamente pessimista que tínhamos na entrada do século XX. Uma visão marcada pela teoria do “quanto pior, melhor”. Realmente, na alvorada do século passado, pelos 1913, vivíamos uma intensa instabilidade política justamente porque a República de 1889 proclamava no papel uma igualdade de todos perante a lei – a regra de ouro da democracia republicana – por cima de uma sociedade cuja experiência e rotina era aristocrática, escravocrata e hierárquica. Nossa instabilidade do século passado se explica pela dissonância entre a República, com seus ideais de igualdade e liberdade, e uma sociedade constituída de barões, bispos, senhores de engenho e ex-escravos cujas rotinas se faziam fora do igualitarismo do mercado e, acima de tudo, de um civismo ausente e ignorado por suas elites.
Além da mestiçagem condenada pelo racismo vigorante em todo o mundo, tínhamos um hibridismo sociopolítico resultante de um longo processo histórico, durante o qual acasalamos misturas com o ideal simples da igualdade democrática. Nesta Terra de Santa Cruz os portugueses casavam com as índias e se acasalavam com as negras. Surgiu daí um sistema marcado por uma imensa verticalidade, mas sem as distâncias sociais que eram o marco da colonização-padrão adotada pelos modelos europeus, sobretudo do inglês, francês e holandês. Mesmo o sistema espanhol era muito mais rígido do que o nosso quando, em 1808, a corte portuguesa veio para o Brasil e nosso país passou a ser o centro de um imenso domínio colonial.
Depois do mensalão, não se admite mais que quem governa possa ter mais privilégios que os governados
Convenhamos que, com esse passado, fazer funcionar (ou nem sequer compreender) uma República – ou seja: um futuro de cidadania e de igualdade, numa cultura cujo passo foi marcado pelo escravismo e pelas etiquetas dos baronatos e dos catolicismos cuja preocupação era “um lugar para cada coisa e cada qual em seu lugar” – não é uma tarefa fácil. Pois, como ensina Santo Agostinho, passado, presente e futuro são muito mais misturados do que pensa nossa vã filosofia.
É nesse contexto histórico que devemos compreender as idealizações do “Estado” como mais importante agente de mudança da sociedade, bem como sua brutal autoridade. A estadolatria e a estadomania – a noção segundo a qual o salvador do sistema é o “Estado” – tiram da sociedade seu papel. Esse papel que hoje começamos a criticar quando verificamos que tem sido a idealização do “Estado” a responsável pelos messianismos esquerdistas e direitistas, bem como dos surtos autoritários do getulismo e do governo militar, ao lado do interlúdio com uma vivência democrática – conturbada por esse mesmo estatismo – nos governos de Juscelino, de Jânio e de João Goulart.
No meu entender este século XXI não permite mais a leitura do Brasil como um combate entre capitalismo e socialismo, mas – eis a novidade – obriga a ver como problema a sintonia entre governantes e governados. Ninguém, depois da experiência desses governos petistas, pode admitir que quem governa possa ter mais privilégios do que os governados. Ou, em outras palavras, que ser do partido ou do “governo” signifique isenção de punições. 2012 será lembrado, sobretudo, pelo mensalão. Serão as implicações e reações a esse julgamento – que resultou em condenação a prisão de todo cardinalato petista, inclusive de seu “capitão do time”, José Dirceu – que vão certamente marcar 2013. Suas resultantes podem significar o fechamento do sistema democrático e do liberalismo no Brasil por crises institucionais de vários calibres – entre o Supremo e o Congresso, ou pela castração da Promotoria-Geral da República ou da mídia. Poderão, em sentido oposto, significar maior abertura e demanda de mais igualdade cívica e jurídica.
Mas isso não é tudo, pois este 2013 vai ser marcado pelos desdobramentos morais inevitáveis do “affaire” Lula-Rosemary Noronha, um caso cuja lógica vem reiterar a resistência e o poder dos laços pessoais na vida coletiva do Brasil. O que esse caso revela com todas as letras é a intimidade transformada em mecanismo de aristocratização de agentes e, muito pior que isso, de agências do Estado. A rede centrada em Rose tem a mesma lógica do “você sabe com quem está falando?” e do “jeitinho”. Ela mostra como redes de relações pessoais ultrapassam a lógica do mérito e do bem-estar social, esse centro de qualquer sistema republicano. Se os cargos públicos são negociados entre amigos, se agências governamentais importantes, inventadas para ampliar eficiência e decisões independentes, são ocupadas por parceiros da amiga do presidente, vai pelo ralo a ideia de um distanciamento mínimo entre pessoa e cargo. Entre governo e Estado. Entre partido político e nação.
Temos, pois, a seguinte equação: 2013 será ano novo se pudermos prosseguir na demanda por um sistema mais igualitário. Um sistema no qual o Estado trabalhe para a sociedade, e o governo tenha em mente o Brasil como um todo em suas decisões. É o partido do poder quem serve ao Brasil, e não o contrário.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Roberto Dammata // Fantasmas e eleitos

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,fantasmas-e-eleitos-,956783,0.htm

Fantasmas e eleitos

07 de novembro de 2012 | 2h 10


Roberto DaMatta - O Estado de S.Paulo

"Durante o curso ginasial, pelos idos de 1936, ouvi dois aforismos que marcaram minha vida. O primeiro dizia: 'Não se pode comer todas as mulheres do mundo, mas deve-se tentar' e expressava um impossível ideal varonil que muitos falavam entre sorrisos, mas poucos seguiam. O segundo sugeria o inverso, mas, no fundo, dava no mesmo porque rezava: 'Não se pode ler todos os livros do mundo, mas deve-se tentar'. Todos os chamados 'maus alunos' sabiam o primeiro e todos os 'bons alunos', aspirantes à castidade, fechavam por muitos motivos com o segundo ideal, o principal deles sendo a ausência absoluta de conhecimento concreto com o objeto do primeiro adágio. Como quase todo mundo, eu fui simultaneamente um bom e um mau aluno, de modo que persegui sem fé os dois ideais, como, acredito, é o destino de todos que vão atrás de causas perdidas."
Ouvi essas palavras de um dos meus parentes. Acho que foi de tio Silvio, quando logo que me casei e comecei a tomar parte na sua roda de botequim, que incluíam a cerveja (carinhosamente chamada de "lourinha - a edificante") e as histórias de conquistas amorosas, que corriam naquela roda de homens maduros e que iam ficando cada vez mais apimentadas (e impossíveis), na medida em que as garrafas vazias de sonhos se acumulavam num canto esquecido da mesa.
Seriam o gozo e o saber ideais paralelos cujo encontro ocorreria apenas no infinito? Penso que não, porque quanto mais se lê, mais se deseja; e quanto mais se deseja, mais aumenta o consumo dos livros. Conheci muitas pessoas que viveram nesse campo minado entre dois ideais aparentemente contraditórios. Se você é mulher ou de outro gênero, não se ofenda: inverta como quiser os termos do primeiro aforismo.
* * * *
Não se pode ler todos os livros e, em paralelo, "ler" todas as mulheres, sem pensar num outro trilho decisivo. O da memória e do esquecimento. Não ser esquecido soa como terrível no nosso mundo de personalismos egoístas (rotineiros na política) e altruístas (raros em todos os campos, sobretudo no intelectual). E ser esquecido, como na frase "vê se me esquece..." é um ato de brutal rompimento. Everardo Rocha, meu querido colega e amigo, lembra a carta testamento de Vargas demandando sua entrada na história e esculpindo em bronze uma eterna lembrança; e o pedido sarcástico - "eu quero que me esqueçam" - do último ditador militar, o general Figueiredo.
A luta entre o lembrar e o querer esquecer é imensa e ela é - sem exageros - a fonte do sofrimento. Não há fundo do poço para as lesões do esquecimento, exceto o aceitar ser esquecido. Não são os mortos que nos esquecem; somos nós que não queremos esquecer que eles nos esqueceram. Num mundo sem memória, todos seriam capazes de realizar tudo aquilo que a lembrança proíbe. Seria um lugar desumano, porque lembrar e deixar de lembrar é o que torna possível a compreensão.
Eu não fiz porque me lembrei de você, diz o menino para a mãe ou a amada para o amado. Ou: eu fui capaz de fazer porque não me esqueci de você. Foi sua presença dentro de mim que me forçou a realizar aquele ato heroico. Ou: trouxe uma "lembrancinha" para você - ou seja: eu te amo, meu irmão e meu amigo. Minha culpa é a minha lembrança. A memória tem um lado persecutório e o seu nome é passado. Quanto mais lembrança, mais peso. Ou mais saudade: essa lembrança que enternece o esquecimento.
Um dos maiores sofrimentos é ter a ilusão de que não se foi esquecido. O esquecimento absoluto, aprendi com os gregos antigos, via Jean-Pierre Vernant, é a morte. A paz é não ser mais torturado pelas obrigações ou deveres que chegam como dardos pela lembrança e pela perseguição do que não pode ser esquecido. Todos os bandidos aguardam o esquecimento e sabem que o crime pode virar piada de salão porque eles sequer pensam na lembrança que se possa ter dos seus atos. A punição e a vingança têm muito a ver com uma lembrança obrigatória e o perdão e a expiação fazem parte da regalia de poder esquecer - de suspender ou apagar as sequelas da lembrança que nos infligiu consternação.
É impossível controlar a memória porque todos somos feitos de uma infindável dialética de esquecimentos lembrados e esquecidos e de lembranças esquecidas e lembradas. Se isso deixa de acontecer, a pessoa vira um morto sem, como dizia Mark Twain, os privilégios da morte.
* * * *

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Na porta do Céu // Roberto DaMatta


Roberto DaMatta
Início do conteúdo

Na porta do Céu

05 de setembro de 2012 | 3h 12
Roberto DaMatta - O Estado de S.Paulo
Da hoje talvez esquecida obra do psicólogo existencial Rollo May (1909- 1994), ficou em mim a marca de dois dos seus livros. O do famoso Amor e Vontade (de 1969); e de Coragem para Criar (de 1975) que li na Universidade de Cambridge, Inglaterra, quando visitava brevemente o seu Centro para Estudos Latino-Americanos, em 1978, e lá terminava o meu livro Carnavais, Malandros e Heróis, no qual tentei revelar o Brasil pelo seu avesso conflitivo, dilemático e hierárquico por meio de instituições tidas como inocentes como o carnaval, o você sabe com quem está falando e os seus heróis - alguns vistos como santos, outros como bandidos, quase todos como malandros. Era preciso alguma coragem para escrever sobre o Brasil sem falar em classes sociais, usar o estruturalismo de Dumont e Lévi-Strauss (tido como a miséria da razão) e citar o reacionário Alexis de Tocqueville e não o revolucionário Karl Marx.
Num desses livros, Rollo May conta o drama do jovem pesquisador que morreu e, chegando à porta do Paraíso, é julgado por São Pedro. No solene rito territorial que vai decidir sua futura vida eterna no Céu ou no Inferno (lembro que Rollo nasceu em Ada, Ohio, e que para os calvinistas não há o razoável e passageiro Purgatório com suas indulgências), o jovem decide que o melhor caminho é confessar e vai logo dizendo que tinha falsificado os dados de sua tese de doutorado em Psicologia Experimental. O calejado porteiro celestial olha para aquela alma, transparente na sua patética autoconfissão, e profere: "Não, meu jovem. O que pesa na sua vida não foi essa banal falsificação. Falsificar e enganar são dimensões constitutivas dos mortais. Esse é um pecado que não levamos muito a sério aqui em cima. O seu grande pecado, aquele que pode efetivamente condená-lo, é que você foi enviado para um teatro de horrores e para um vale de lágrimas e, no seu trabalho, você o reduziu a um mero circo de cavalinhos. Sua tarefa era compreender as tremendas contradições que são parte da vida emocional emoldurada pela razão e você reduziu tudo a um problema de estímulo e resposta!". Hoje, São Pedro certamente mencionaria a neurociência, esse novo reducionismo ocidental.
Tenho sido perseguido por essa passagem e talvez seja por isso que hoje, velho e um tanto cansado dos teóricos que pululam nas universidades, eu prefira ler literatura onde ninguém precisa falsificar coisa alguma, porque tudo já está falsificado, satisfazendo de sobra aquilo que buscamos. A falsificação convincente, com início, meio e fim, que tanto leva a admirar a temeridade do ladrão, a ousadia e a natural mendacidade dos políticos, quanto a bravura sisuda de um deslindador profissional de mentiras, como é o caso dos juízes os quais, com a intrepidez de Teseu, entram no labirinto do monstruoso Minotauro e, confiantes no tênue (mas mágico) fio de Ariadne não se perdem no dédalo das mentiras, as quais destroem, estabelecendo no ritual do julgamento (esse ato público de regeneração moral) o fim das falsidades.
* * * *
Essa parábola do julgamento do jovem cientista tem sido o meu emblema neste histórico e crucial ajuizamento do mensalão. Tenho assistido com assiduidade e interesse à atuação dos magistrados e dos defensores e me orgulhado de seus desempenhos. O drama da Justiça ao vivo, num caso tão importante quanto complicado e delicado para a vida democrática do nosso país, é muito semelhante à entrada no Céu ou o risco de deslindar confusões e decidir o caminho nas encruzilhadas.
Espantou-me como a maioria dos magistrados buscou com zelo e lucidez os fios mágicos - dentro daquilo que os juristas chamam de "contraditório" - para realizar um percurso em busca de uma verdade com duas caras: a da promotoria e a da defesa. Sem, diga-se de passagem, esquecer o direito dos réus. Tudo na ausência da autoridade de um poder final ou divino, exceto aquelas manifestações de onipotência humana que fazem parte de todo confronto público em que o foco é a divergência e por isso mesmo prevalece a regra da lei.
Esse espetáculo de civilidade deve ser não apenas louvado, mas visto por todos, sobretudo pelos lulo-petistas que estão no governo e nele ocupam cargos da mais alta responsabilidade.
Outro dia, um velho e querido amigo petista reclamou comigo da "politização" do caso. Mas como poderia ser de outro modo se tudo o que era do PT (e da chamada "esquerda" em geral) - do café da manhã aos desfiles carnavalescos e os jogos de futebol, sem esquecer o amor e o sexo - era (ou deveria ser) politizado? E como não ter desdobramentos políticos se o caso começa precisamente motivado por uma perspectiva da política e do poder? O que não se pode fazer é psicologizar o mensalão. Porque nesse caso seria bem pior e o julgamento entraria no terreno das compulsões e esquizofrenias nas quais a mão esquerda ignora a mão direita e deseja decepá-la, como é corrente no caso dos que escolhem o extremo como rotina e método. Ademais, se o caso fosse lido por psicólogos, alguns acabariam num hospício.
Por outro lado, essa politização está contida pelas etiquetas legais e pelos procedimentos jurídicos. Ninguém deseja destruir ninguém e muito menos um partido com a importância do PT. Agora, julgar aquilo que surgiu como engodo coletivo e como um plano para evitar o jogo liberal e igualitário de ganhar para depois perder e, em seguida, ganhar novamente, como sendo um evento trivial seria não somente leviandade, mas uma fuga dos desafios que a democracia demanda da sociedade brasileira.
Por isso, não há como fugir dessas duras viagens pelos labirintos das verdades e das mentiras. Por mais que isso aflija os que estão no mais alto poder e os que lá estiveram e se sentiram como deuses; ou fantasiaram o mundo como um circo de cavalinhos e pensaram que todos eram otários.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Roberto da Matta para Manuel Diégues Jr.

Roberto DaMatta
Início do conteúdo

Para Manuel Diégues Jr.

15 de agosto de 2012 | 3h 10
Roberto DaMatta - O Estado de S.Paulo

Ofereço esta crônica a Manuel Diégues Jr. como uma prova de afeto e testemunho da importância da sua vida e do seu trabalho para as Ciências Sociais do Brasil. Estava programado para tomar parte na comemoração do centenário de Manuel Diégues Jr. na Academia Brasileira de Letras, mas um imprevisto me impede de estar fisicamente nessa homenagem de modo que a escrita, como símbolo do espírito, torna-me presente, ao lado das minhas desculpas, neste tributo. Homenagem que faço com ternura pelos inúmeros laços que me ligam à família e especialmente ao Cacá (com quem fiz um programa de televisão) e a Madalena, que foi minha orientanda nos velhos tempos de Museu Nacional.
* * *
Sou da geração que estudou os clássicos da Antropologia Cultural em aulas e conferências pronunciadas por alguns praticantes que se tornaram, eles próprios, clássicos. Gente como Florestan Fernandes, Thales de Azevedo, Gilberto Freyre, Luís de Castro Faria, Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira, David Maybury-Lewis, Otávio Ianni, Ruth Cardoso, Oracy Nogueira, Eunice Durham, Fernando Henrique Cardoso. Cito os que balizaram direta (como foi o caso de Roberto Cardoso de Oliveira, de David Maybury-Lewis e de Luís de Castro Faria) ou indiretamente (como foi o caso de Fernando Henrique Cardoso) a minha vida profissional e os meus ideais intelectuais. Todos fazem parte, com o nosso homenageado, de uma vasta tapeçaria humana feita de fios de vida e de vidas que são fios nos quais somos reconhecidos porque nela fomos nutridos e amparados.
* * *
Conheci Manuel Diégues Jr. primeiramente pelo seu livro clássico Etnias e Culturas no Brasil. Depois, ao tentar compreender nossa sociedade do meu próprio ponto de vista, li O Engenho de Açúcar no Nordeste, ficando impressionado com a sua riqueza e virtude sociológica. Um pouco além, quando tentei escrever sobre a figura de Nossa Senhora como intercessora - situada entre o divino e o humano -, algo que, no meu entender, caracterizava o feminino na sociedade brasileira e, talvez, no mundo ibérico, analisei o ensaio de Diégues sobre O Culto de Nossa Senhora na Tradição Popular, publicado na Revista Brasileira de Folclore, em 1968. Fiquei impressionado com a amplitude dessa sociologia e, ao mesmo tempo, com o profundo desinteresse que então se demonstrava pela temática simbólica, como era o caso do carnaval, da comida, do jogo do bicho, do futebol, da hierarquia, do personalismo - aí está o mensalão inconcebível em outras terras - e de outras instituições que constituem o mel e o fel da nossa identidade coletiva.
Foi nesse momento que o conheci pessoalmente como diretor do Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais da Unesco e foi nesse espaço dirigido por Diégues que o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional foi acolhido num momento de crise.
Ao conhecê-lo, esperava encontrar um diretor marcado por posicionamentos e pontos de vista autoritários e irredutíveis (como era comum naquela pobre década e ainda faz parte do papel neste nosso Brasil) mas, pelo contrário, encontrei um tranquilíssimo professor e administrador, mais interessado em saber de livros e pesquisa do que de radicalismos.
* * *
A contribuição de Manuel Diégues Jr. foi tão ampla e democrática como o seu espírito. Por isso ele pôde ser colunista, professor, etnólogo dos engenhos nordestinos, administrador eficiente e autor de um livro permanente: Etnias e Culturas no Brasil. Obra a ser revista em função de um ponto que jamais foi bem entendido no que toca a nossa visão de nós mesmos: a nossa imensa capacidade de equilibrar fatores locais os mais variados e unir polos e papéis sociais que toda a sociologia clássica sempre tomou como opostos e mutuamente exclusivos. Tanto que, em muitas teorias eles seriam os deflagradores de transformações radicais que mudariam definitivamente o curso da História. No Brasil, entretanto, e sobretudo no Brasil de Manuel Diégues Jr. , discípulo de Gilberto Freyre, o Brasil - com todos os seus contrastes e iniquidades sociais e regionais - seria um marco civilizatório original e, quem sabe, senão novo, pelo menos inovador.
Eu vou deixar falar o próprio Manuel Diégues Jr. e espero que vocês possam ouvir novamente a sua voz sempre alagoana e serena: "Na realidade" - diz ele no livro citado - "esse é o quadro de nossos dias; o do pluralismo étnico e cultural que encontra suas raízes em fatores, os mais diversos, vindos do passado; e associando-se, intercomunicando-se, para oferecer esse resultado do Brasil moderno. Nesse passado encontram-se as fontes de onde brotaram as águas que fizeram esse admirável mar de unidade, oferecendo condições para o pluralismo de nossos dias."
Eis o Diégues que foi um pluralista cultural antes do seu tempo e um antirradical no tempo em que a moda era ser intolerante. Louvo-o pelo seu espírito aberto e faço-me presente na comemoração do centenário do seu nascimento com a lembrança de sua personalidade honesta e tranquila. De toda uma vida voltada para o Brasil que compreendeu e amou até mesmo e principalmente por suas contradições. Talvez por isso não tenha recebido o reconhecimento de justiça. Mas assim é a vida e a morte.