Joaquim José da Costa Portugal não se conformava. Depois de viajar do Maranhão para Lisboa, levando consigo Luciano e Carolina, seus dois empregados, foi informado pelas autoridades portuguesas que a nova interpretação da legislação do trabalho não permitia mais que ele desembarcasse com seus criados. Joaquim argumentou que voltaria logo para o Brasil – e, ainda mais, não tinha como viajar sem ser servido por seus empregados domésticos. Eram apenas dois, afinal.
Soube dessa história anos atrás no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, ao consultar uma série de processos do Juízo da Índia e da Mina. O ano era 1825 e os tempos eram difíceis. Muitos portugueses que então habitavam o Brasil ainda não haviam decidido se ficavam por aqui ou se voltavam a morar em Portugal. Não sabiam se a independência brasileira era para valer e o que ela significaria para os portugueses que haviam ficado no Brasil.
Muitos, como esse Joaquim José, optaram por temporariamente retornar a Lisboa, enquanto esperavam a situação se acalmar. Ao ser informado que escravos não podiam mais entrar no Reino de Portugal, e que todos aqueles vindos do Brasil seriam imediatamente libertos, Joaquim José estrilou. Pois quem iria servi-lo na viagem, não fossem seus cativos domésticos? Não adiantou nada espernear. Luciano Congo e Carolina Crioula foram alforriados.
Como vai ser agora, sem nossas empregadas domésticas? Vamos ter mesmo que lavar prato?
Claro que lembrei dessa história por conta da nova legislação que regula o trabalho doméstico no Brasil, recentemente aprovada, e da gritaria que ela provocou nas casas de tanta gente. Como vai ser agora, sem nossas empregadas domésticas? Vamos ter mesmo que lavar prato, como insinua a capa da revista Veja de 1 de abril passado, na qual um homem branco, triste que só, de avental e toalha pendurada no ombro, encara a pia? Para quem ainda não se acostumou com a ideia: vamos.
E não porque o trabalho doméstico vá acabar de uma vez – acabar de fato nunca vai, e nem deve; só vai ficar gradativamente mais e mais caro, como é nos Estados Unidos e na Europa – mas porque, muito em breve, não haverá como encontrar quem queira esse emprego.
Aliás, para quem acusa a nova lei de provocar desemprego entre as empregadas domésticas, pode ficar tranquilo. Se você precisar demitir a sua, logo ela vai achar outro trabalho. Dados do IBGE divulgados no dia 28 de março passado mostram que, nos 12 meses anteriores, 133 mil pessoas deixaram de ser empregadas domésticas. Só em fevereiro passado, foram 25 mil a menos, mesmo com o aumento de 7% nos rendimentos em relação ao ano anterior.
- Segundo dados do IBGE, 133 mil pessoas deixaram de ser empregadas domésticas. Só em fevereiro passado foram 25 mil a menos, mesmo com o aumento de 7% nos rendimentos em relação a 2012. Ou seja, mesmo ganhando mais, há menos mulheres dispostas a encarar o trabalho, conclui Grinberg. (foto: sanja gjenero/ Sxc.hu)
Ou seja: mesmo ganhando relativamente mais, há menos mulheres dispostas a encarar o trabalho de domésticas. E por quê? A resposta é simples: apesar de ninguém duvidar do fim da escravidão no Brasil, se suas marcas ainda existem em algum lugar, é nos nossos lares.
É em nossas residências, no âmbito mais íntimo da nossa privacidade, que habita a principal marca da hierarquização da nossa sociedade. Nós desprezamos o trabalho manual. Gostamos de ser servidos. Naturalizamos o luxo de ter gente que carregue nossas compras e dirija nossos carros.
É em nossas residências, no âmbito mais íntimo da nossa privacidade, que habita a principal marca da hierarquização da nossa sociedade
Reagimos com ironia à lei que obriga o estabelecimento de contratos de trabalho talvez porque o que a doméstica faz não é propriamente um trabalho, é um estar sempre a dispor, dia e noite, como Luciano e Carolina, os dois escravos que viajavam apenas para servir seu senhor. Não é que Joaquim José fizesse por mal. Mas como sobreviveria tantos dias no mar sem seus serviçais?
Processamento lento
O que é grave, quando atentamos para o episódio vivido por Joaquim José, Luciano e Carolina, é que isso aconteceu há quase duzentos anos e que histórias bem parecidas ainda acontecem por aí. Outro dia mesmo soube de um outro caso, o da família que se reuniu para discutir como iriam organizar a dinâmica da casa uma vez que a empregada não mais dormiria no emprego. Quem iria passar o café? A empregada, no dia anterior, deveria deixar a mesa do café posta para o dia seguinte? E quem iria cortar o melão?
Todo mundo adora consumir o que os Estados Unidos têm de pior – fast food, disneys e que tais – e se esquece do que os americanos, e também os europeus, têm de melhor.
Não pensem que lá o trabalho doméstico foi diminuindo sem suspiros resignados. Mas lá, dizem, tem estrutura. Tem panela elétrica. Tem boa comida congelada. Tem escola pública de qualidade de tempo integral. É isso mesmo. Lá tem tudo isso, ou quase. Não podemos esquecer que a panela elétrica e os congelados só chegaram às casas das mães americanas porque o trabalho doméstico já havia saído. E a escola pública de qualidade, bem, essa só vai virar uma bandeira da classe média quando nossos filhos partilharem a mesma sala de aula que os filhos das nossas empregadas.
- Nos Estados Unidos, como muitos dizem, há mais estrutura, mas, como lembra Grinberg, a panela elétrica e os congelados só chegaram às casas das mães norte-americanas porque o trabalho doméstico já havia se tornado escasso. (foto: reprodução)
Esse dia ainda está longe. Bem, talvez nem tanto. Vários bancos universitários hoje são divididos entre jovens de várias origens e cores. Somos lentos para processar mudanças que ameaçam a nossa hierarquia, mas um dia chegamos lá. Enquanto isso, vamos decidindo quem é, afinal, que vai acordar mais cedo para cortar o melão.
Somos lentos para processar mudanças que ameaçam a nossa hierarquia, mas um dia chegamos lá
Em tempo: se alguém quiser conferir as desventuras de Joaquim José, Luciano Congo e Carolina crioula, aqui vai a referência: Juízo da Índia e da Mina, caixa 126, maço 12, processo 1, 1825. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Portugal.
Keila Grinberg Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro