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terça-feira, 11 de outubro de 2016

"Viajar de táxi era conviver com Donald Trump sem sofrer consequências "

terça-feira, outubro 11, 2016

Viajar de táxi era conviver com Donald Trump sem sofrer consequências - 

JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 11/10
O serviço Uber foi legalizado em Portugal. Os motoristas de táxi não gostaram. Prometeram violência ("Porrada não vai faltar!", anunciaram os beneméritos) e alguns cogitam subir os preços em dias feriados.

Sobre a violência, nada de novo: antes da legalização, porrada não faltava. De tal forma que houve espancamentos por engano: o cidadão passava no aeroporto para pegar um amigo e deixava a dentadura como lembrança.

Sobre os preços, será realmente inteligente apimentar a tarifa dos táxis quando a palavra do momento deveria ser "competição"? Até porque os táxis têm uma vantagem competitiva: os respectivos motoristas.
Sei do que falo. Por razões sociológicas, experimentei o Uber. Difícil não ficar impressionado com as qualidades técnicas do serviço: rapidez no atendimento, higiene do automóvel, preços que deixam qualquer cliente a salivar por mais.

Pena que os motoristas do Uber acrescentem pouco à viagem. Uma pessoa faz um comentário –sobre o tempo, sobre o trânsito, sobre a política e seu bestiário– e eles, com uma educação de mordomos ingleses, apenas sorriem ou respondem com monossílabos de psicanalista.

Podemos continuar a picar o bicho, esperando que ele entre na arena com as narinas fumegantes, mas o bicho não se perturba.

Então nós, frustrados e entristecidos, fechamos os olhos e lembramos com saudade de todos os motoristas de táxi que passaram pela nossa vida.

Para começar, os motoristas de táxi com quem convivi eram os mais puros representantes do pessimismo lusitano. As coisas, para eles, não estavam boas nem más; estavam péssimas. E quando havia um elogio meu à cidade, ao trânsito, à vida, eles reagiam como se alguém tivesse insultado suas mães.
Em anos e anos de circulação, só uma vez encontrei um otimista. Ou, pelo menos, alguém que não rebentou com meu otimismo. "Está um belo dia, não acha?", perguntei eu, olhando para o céu radioso de Lisboa.

"Já vi melhor", respondeu ele, angustiado por não conseguir desmentir o óbvio. "Já vi melhor" representa essa feroz resistência às alegrias do presente –e uma nostalgia melancólica, quase patológica, pelo passado.
A filosofia do "já vi melhor" acontece nas pequenas coisas ("antigamente, havia mais respeito") ou nas grandes ("o que era preciso era um Salazar em cada esquina").

Mas os motoristas de táxi que eu conheci não são apenas reacionários genuínos. Alguns vão mais longe e são autênticas preciosidades para um cientista político. Foi nos táxis que aprendi como funciona a mentalidade revolucionária. Políticos incompetentes? Corrupção no governo? Crise no país?

"Era tudo encostadinho na parede" –outra expressão que relembro com carinho. A solução para os problemas sociais –e todos eles tinham a solução– passava por dizimar um número indeterminado de pessoas.

Depois da chacina, era só fazer repousar sobre a pátria uma espécie de lei marcial eterna e tudo encaixava por milagre. O presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, não passa de um amador.

Naturalmente, nem todos os motoristas que encontrei sonhavam com a carreira de Pol Pot. Havia os confessionais (que partilhavam desgostos amorosos), os poetas incompreendidos (que me liam os seus sonetos) e até os sábios do cosmos (recordo um que passou a viagem inteira a convencer-me de que os alienígenas éramos nós).

Sem falar dos pequenos Sades (que relatavam aventuras escabrosas com donzelas ocasionais) ou amantes da eugenia (que dissertavam abundantemente sobre as diferentes raças). Viajar de táxi era como conviver com Donald Trump durante alguns minutos sem sofrer as consequências.

Quando o automóvel chegava ao destino, o passageiro sentia que pagava dobrado: pela viagem e pela experiência única de ter visitado um universo paralelo.

Minha pergunta é saber qual o destino desse universo. Que tipo de literatura oral não iremos perder com o Uber? E não será possível arranjar um compromisso?
O Uber veio para ficar –e triunfar. Mas há clientes que sentem falta da velha adrenalina: no fundo, são como fãs de cinema de horror condenados a assistir novelas.

Para esses, o Uber deveria contratar os motoristas de táxi que promete jogar no desemprego. Para que eles ensinassem aos novos motoristas alguns repertórios clássicos –"já vi melhor", "era um Salazar em cada esquina", "tudo encostadinho na parede" etc. Há gostos para tudo –e os gostos, até para evitar porrada, não se discutem.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Jornalismo amazônico // João Pereira Coutinho

joão pereira coutinho

 

13/08/2013 - 03h00

Jornalismo amazônico

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Jeff Bezos, o fundador da Amazon, comprou o "Washington Post". E agora? Que futuro para o jornal? E que futuro para o jornalismo?
Calma, povo. Ponto prévio: a minha gratidão para com o sr. Bezos não tem limites. Nada mudou tanto a minha vida como a possibilidade de aceder a produtos que, em tempos mais jurássicos, eu era obrigado a carregar como um contrabandista sempre que viajava para o exterior.
Sem falar da pura extorsão que os produtos importados significavam para quem queria ler, escutar ou assistir ao que de melhor se escrevia, compunha ou filmava pelo mundo fora.
Além disso, confesso também que nunca comprei o tom catastrofista de quem vê na internet a maior ameaça para o jornalismo "tradicional".
É preciso fazer uma distinção entre o jornalismo "tradicional" e o jornalismo "impresso". Não são a mesma coisa. O primeiro indica uma forma de jornalismo onde critérios de verdade e relevância continuam a fazer sentido. A segunda, apenas uma forma de o apresentar.
Sim, a internet pode ser uma ameaça para o jornalismo "impresso". E, tal como Marshall McLuhan afirmou várias décadas atrás, é possível que um livro, uma revista ou até um jornal possam ser objetos artísticos, de luxo, próprios de colecionador, no futuro próximo.
Daqui a 20 anos, admito que esta Folha tenha menos exemplares nas bancas e mais leitores na internet. Mas também admito que os exemplares disponíveis nas bancas terão uma produção assaz refinada. Chegaremos ao cúmulo da sofisticação: comprar um jornal para ler e guardar na estante.
Nada disso significa o fim do jornalismo "tradicional". Enquanto existirem leitores do outro lado interessados em consumir informação, haverá notícias, entrevistas, crônicas ou reportagens prontas para serem servidas em vários tipos de telas.
Moral da história? A única coisa que o jornalismo "tradicional" tem a temer não é o fim do papel; é o fim dos leitores. E aqui entram os meus receios: saber até que ponto uma má adaptação do jornalismo "tradicional" para a internet não poderá alienar os próprios leitores.
Em excelente matéria para a "Veja", Rafael Sbarai levanta várias hipóteses sobre o futuro do jornalismo depois da compra de Jeff Bezos. Uma delas é Bezos aplicar ao jornal (e ao jornalismo) o mesmo critério comercial que pratica na Amazon.
Explico melhor. Sempre que entro na loja virtual, existem sugestões para mim. Sugestões de livros, discos, filmes. Alguém sabe do que eu gosto e esse alguém, como diria Flaubert sobre a sua Bovary, "c'est moi".
Parece que todas as compras ficam registradas e todos os registros criam um "perfil". Se eu gosto de cinema asiático, por exemplo, a Amazon registra a preferência. Depois, quando há novidades a Oriente, eu sou avisado a Ocidente.
Durante uns tempos, confesso, a precisão do negócio maravilhava-me. Todos os meses, todas as semanas, todos os dias havia mercadoria cultural para me tentar --e arruinar.
Mas havia também o lado negro do negócio: a minha preguiça crescente. Eu deixava de procurar porque a Amazon procurava por mim.
Em pouco tempo, eu deixei de ser um consumidor da Amazon. Passei a ser dependente dela. Dependente do mesmo tipo de livros, discos ou filmes --em repetição entediante. O que implicou ignorar outros livros, discos ou filmes que não apareceram mais no radar.
Eis a maior ameaça para o futuro do jornalismo: chegar a um ponto em que as notícias que interessam são apenas as notícias que me interessam. E em que todas as outras deixam de aparecer nesse radar.
Haverá quem pense que isso é um progresso intelectual: nós, fechados no nosso pequeno mundo, lendo apenas o que corresponde às nossas preferências e ignorando o que existe fora da nossa ilha de gostos e idiossincrasias. Sem espaço para surpresas, incertezas, até baixezas.
Pessoalmente, só posso esperar que esse cenário nunca seja real. E que os jornais, no papel ou na tela, continuem a ser esse espaço de descobertas várias por onde os leitores investem a sua curiosidade. Livremente. E sem amarras.
Um jornal amazônico que seja apenas o reflexo das preferências do leitor deixa de ser um jornal. E, a prazo, até o leitor deixa de ser um leitor.
João Pereira Coutinho
João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do "Correio da Manhã", o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve às terças na versão impressa de "Ilustrada" e a cada duas semanas, às segundas, no site.