quinta-feira, outubro 05, 2017
Massacre nos EUA deve nos lembrar que matar é fácil e demasiado humano -
CONTARDO CALLIGARIS
FOLHA DE SP - 05/10
Na noite entre domingo e segunda (2), em Las Vegas, Nevada (EUA), um atirador, instalado num quarto do 32º andar do Mandalay Bay, atirou longamente, com armas automáticas, na multidão que assistia a um festival de música country, num espaço aberto próximo ao hotel.
Aparentemente, o homem se suicidou quando a polícia de Las Vegas fez irrupção no quarto, no qual ele estava instalado havia dias, com suas armas (23, das quais 17 eram rifles) e munições (milhares).
A premeditação era evidente, por causa das armas e da espécie de martelo que lhe permitiu quebrar as janelas antes de atirar.
Nas reportagens, a primeira hipótese foi a do terrorismo –externo (islâmico, então) ou interno (supremacistas brancos ou inimigos do governo federal, no estilo Timothy McVeigh na bomba de Oklahoma, em 1995).
Mas nada indicava que o atirador Stephen Paddock, 64, contador, tivesse se convertido ao islã ou militasse nas fileiras da extrema direita.
Aparentemente, o Estado Islâmico se atribuiu a responsabilidade pelo atentado por oportunismo.
Sem ideologia que explicasse o massacre, as reportagens vasculharam a família e a vida privada do atirador. Assistimos à consternação do irmão, que mal conseguia imaginar o que teria levado Stephen a se transformar num assassino em massa. Tivemos acesso ao Facebook de Marilou Danley, uma mulher de origem filipina que, aparentemente, morava com Paddock: eram só fotos de felicidades –de férias e margarinas.
Enfim, descobrimos que o pai dos irmãos, Benjamin Paddock, foi um fugitivo procurado pelo FBI de 1969 (quando fugiu de prisão) a 1977. Ele era um assaltante de bancos, definido como psicopata, suicida, armado e perigoso. O pai não parecia ter tido relações diretas com os filhos, e a descoberta só levantou a suspeita, que paira no ar, de uma herança genética maldita.
Depois da família, foi a vez da situação econômica. Paddock não era um ressentido do sonho americano: era proprietário de duas casas, dois aviões (que ele pilotava), dois carros e quase 40 armas. Gostava de jogos de azar, mas ninguém descobriu uma última aposta que teria ruinado as finanças e a vida dele.
Até agora, tampouco apareceu algum diagnóstico médico terminal que pudesse empurrar Stephen ao desespero e à tentativa de se suicidar levando consigo todos os que ele pudesse.
A incapacidade de descobrir a motivação do massacre é boa: ela deveria nos lembrar que matar é fácil e demasiado humano. O mistério não é que alguém se torne assassino em massa. O mistério é que a grandíssima maioria não mate ninguém.
Mas vamos ao que nos sobrou para "explicar" o acontecido. Certo, há o eterno problema do direito de possuir armas, que é garantido pela Constituição dos EUA. Mesmo que Stephen fosse o tipo de pessoa (sem antecedentes) que um controle autorizaria a comprar qualquer arma, é bizarro que alguém possa ter mais de 40 delas e milhares de munições.
Mas não temos condição de criticar: no Brasil, o Estatuto do Desarmamento produziu uma situação em que as armas automáticas pesadas são de propriedade exclusiva do Exército e do crime organizado (a polícia só as consegue quando as toma dos bandidos).
Enfim, podemos acusar a cultura. A figura do atirador só que massacra dezenas, até ser morto, é tipicamente americana (talvez seja o custo do ideal do homem sozinho no Oeste, com seu rifle, contra todos).
Da mesma forma, a figura do assaltante que mata sem que isso seja necessário para roubar é tipicamente brasileira, e poderia ser explicada por nossa história nacional.
Ou ainda, nos últimos tempos, a figura do terrorista islâmico que atropela ou esfaqueia é tipicamente francesa e inglesa (duas mulheres foram mortas assim em Marselha, no domingo; a imprensa mundial mal notou).
Na noite entre domingo e segunda (2), em Las Vegas, Nevada (EUA), um atirador, instalado num quarto do 32º andar do Mandalay Bay, atirou longamente, com armas automáticas, na multidão que assistia a um festival de música country, num espaço aberto próximo ao hotel.
Pelas contas até terça-feira, ele matou 58 pessoas e feriu mais de 500. Que eu saiba, foi o maior massacre produzido por um atirador isolado na história dos EUA.
Aparentemente, o homem se suicidou quando a polícia de Las Vegas fez irrupção no quarto, no qual ele estava instalado havia dias, com suas armas (23, das quais 17 eram rifles) e munições (milhares).
A premeditação era evidente, por causa das armas e da espécie de martelo que lhe permitiu quebrar as janelas antes de atirar.
Nas reportagens, a primeira hipótese foi a do terrorismo –externo (islâmico, então) ou interno (supremacistas brancos ou inimigos do governo federal, no estilo Timothy McVeigh na bomba de Oklahoma, em 1995).
Mas nada indicava que o atirador Stephen Paddock, 64, contador, tivesse se convertido ao islã ou militasse nas fileiras da extrema direita.
Aparentemente, o Estado Islâmico se atribuiu a responsabilidade pelo atentado por oportunismo.
Sem ideologia que explicasse o massacre, as reportagens vasculharam a família e a vida privada do atirador. Assistimos à consternação do irmão, que mal conseguia imaginar o que teria levado Stephen a se transformar num assassino em massa. Tivemos acesso ao Facebook de Marilou Danley, uma mulher de origem filipina que, aparentemente, morava com Paddock: eram só fotos de felicidades –de férias e margarinas.
Enfim, descobrimos que o pai dos irmãos, Benjamin Paddock, foi um fugitivo procurado pelo FBI de 1969 (quando fugiu de prisão) a 1977. Ele era um assaltante de bancos, definido como psicopata, suicida, armado e perigoso. O pai não parecia ter tido relações diretas com os filhos, e a descoberta só levantou a suspeita, que paira no ar, de uma herança genética maldita.
Depois da família, foi a vez da situação econômica. Paddock não era um ressentido do sonho americano: era proprietário de duas casas, dois aviões (que ele pilotava), dois carros e quase 40 armas. Gostava de jogos de azar, mas ninguém descobriu uma última aposta que teria ruinado as finanças e a vida dele.
Até agora, tampouco apareceu algum diagnóstico médico terminal que pudesse empurrar Stephen ao desespero e à tentativa de se suicidar levando consigo todos os que ele pudesse.
A incapacidade de descobrir a motivação do massacre é boa: ela deveria nos lembrar que matar é fácil e demasiado humano. O mistério não é que alguém se torne assassino em massa. O mistério é que a grandíssima maioria não mate ninguém.
Mas vamos ao que nos sobrou para "explicar" o acontecido. Certo, há o eterno problema do direito de possuir armas, que é garantido pela Constituição dos EUA. Mesmo que Stephen fosse o tipo de pessoa (sem antecedentes) que um controle autorizaria a comprar qualquer arma, é bizarro que alguém possa ter mais de 40 delas e milhares de munições.
Mas não temos condição de criticar: no Brasil, o Estatuto do Desarmamento produziu uma situação em que as armas automáticas pesadas são de propriedade exclusiva do Exército e do crime organizado (a polícia só as consegue quando as toma dos bandidos).
Enfim, podemos acusar a cultura. A figura do atirador só que massacra dezenas, até ser morto, é tipicamente americana (talvez seja o custo do ideal do homem sozinho no Oeste, com seu rifle, contra todos).
Da mesma forma, a figura do assaltante que mata sem que isso seja necessário para roubar é tipicamente brasileira, e poderia ser explicada por nossa história nacional.
Ou ainda, nos últimos tempos, a figura do terrorista islâmico que atropela ou esfaqueia é tipicamente francesa e inglesa (duas mulheres foram mortas assim em Marselha, no domingo; a imprensa mundial mal notou).
Mas o essencial é que, por razões culturais diferentes, um mesmo mal parece se espalhar, hoje, mundo afora: a degradação progressiva do espaço público. Ele está se transformando num terreno perigoso, em que entramos só por necessidade, quando não dá para evitar, correndo, curvos, entre os escombros e nos descampados, de casa em casa, como numa rua de Sarajevo em 1993.