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quarta-feira, 1 de novembro de 2017

“Esta é uma sociedade de órfãos de pais vivos” / Juan Arias

“Esta é uma sociedade de órfãos de pais vivos”

O eco da tragédia de Goiás levará tempo para se dissipar, já que despertou o alarme em muitas famílias

Colégio GoyasesAmpliar foto
Estudante do Colégio Goyases abraça a mãe após colega atirar em alunos em Goiânia AFP
Estaremos criando uma sociedade de jovens de pais ausentes, distraídos demais com a Internet, à qual Leonardo Calembo, de 41 anos, pai de um dos adolescentes mortos a tiros no colégio de Goiânia por um colega de classe, chamou, enquanto enterrava o filho, de “órfãos de pais vivos”, de pais já mortos para eles, porque ignoram seus problemas?
O eco da tragédia de Goiânia, que se revela a cada dia com informações mais alarmantes sobre a personalidade complexa do jovem de 14 anos que disparou na sala de aulacontra os colegas, levará tampo para se dissipar, já que despertou o alarme em não poucas famílias. É como se, de repente, nos perguntássemos se realmente conhecemos nossos filhos e o que estão vivendo sem que saibamos.
O sociólogo Jorge Wertheim, que foi representante da Unesco no Brasil, acaba de escrever no jornal O Globo, comentando o caso do jovem assassino da escola de Goiás, que é significativo que em um país como o Brasil, “com um dos maiores índices de violência do mundo, se despreze a necessidade de investigar por que esses níveis inaceitáveis de violência assolam as escolas”.
Enquanto escrevo esta coluna, o jornal Folha de S. Paulo publica o que chama de “o mapa da morte”, com os dados de homicídios no Brasil em 2016, com um aumento de quase 4% em relação ao ano anterior. No total foram 61.689 homicídios, o que equivale a sete a cada hora, algo que supera muitas guerras juntas. É como se o Brasil sofresse a cada ano a explosão de uma bomba atômica. A de Hiroshima matou pouco mais do que se mata no Brasil todos os anos.
Algo que agrava esse mapa da morte é que metade desses homicídios é de jovens, o que significa que mais de 30.000 pais e mães tenham que enterrar filhos, algo que fere as leis da natureza. O normal é que os filhos enterrem os pais. A matança desses milhares de jovens conduz à aberração de que os pais se sintam órfãos dos filhos, sem poder desfrutar deles em vida.
A violência aumenta em todos os estratos do Brasil, dentro e fora dos lares. Também nas escolas, e com ela o fascínio dos rapazes pelas armas. Uma professora de ensino secundário me escreve para expressar sua surpresa ao perguntar a seus alunos o que desejariam ser quando adultos. Quase todos sonhavam em ser policiais. Por quê?, indagou a professora. “Para poder usar uma arma”, responderam em coro, o que poderia ser traduzido como “para poder matar”
Permitir ou não que as crianças e jovens vejam todo o tipo de violência virtual nos jogos, nos filmes, na televisão e nos celulares? Quando eu era estudante de psicologia em Roma, tive uma discussão com um de meus professores que defendia que as crianças deviam familiarizar-se com a violência para poder administrá-la quando adultas. É o que pensam ainda hoje até mesmo ilustres sociólogos. Para mim, porém, a vida real de hoje já oferece doses de sobra de violência, desde que se nasce, dentro e fora das casas, para que seja preciso acrescentar-lhe a violência virtual. Que as famílias tenham mais medo que seus filhos vejam cenas de sexo que de violência, que se assustem mais que vejam um nu do que uma execução é um sintoma que deveria nos levar a pensar, em um mundo cada vez mais fascinado pelas armas.
Jovens órfãos de pais vivos, pais que se veem sujeitos a enterrar filhos em flor e, se fosse pouco, desde 1980 até hoje segue aumentando no Brasil o número de suicídios juvenis, segundo o IPEA. É o ápice da tragédia da sociedade. Um jovem que se priva voluntariamente de uma vida que deveria estar repleta de esperança e projetos é uma chicotada na consciência dos adultos. Não são apenas órfãos virtuais, mas também jovens aos quais a vida se revela pior que a morte.
Mais do que saber se têm mais votos Lula, Doria ou Bolsonaro, os institutos de pesquisa deveriam se interessar em descobrir por que a juventude de uma sociedade como a do Brasil, que sempre teve como vocação a felicidade e os encontros festivos, se vê de repente representada por um triplo drama de orfandade. Quem salvará o Brasil não será, de fato, nenhum caudilho, herói ou messias, mas a tomada de consciência da sociedade de que as famílias precisam apostar para que seus filhos voltem “a ser sonhadores”, como pedia o jovem de outra escola em Olinda.
Quando um jovem pede aos pais que lhe dediquem mais tempo que a seu celular, ele lhes está suplicando mais afeto, ou está tentando contar-lhes que algo se está rompendo dentro dele. Quando lhe dizem: “depois, agora estou ocupado”, esse “depois” poderia ser tragicamente tarde.

domingo, 15 de janeiro de 2017

'A esquerda brasileira está perdendo os novos pobres' / El País


A esquerda brasileira está perdendo os novos pobres

O problema da esquerda brasileira é que acabou se aristocratizando, transformando-se no refúgio da classe média alta, dos artistas e intelectuais



Sindicalistas protestam no RJ.  AGÊNCIA BRASIL


Começa a haver um consenso sobre a crise da esquerda contemporânea e o seu abandono pelos mais marginalizados, entre eles os trabalhadores não qualificados, os desempregados, os jovens desencantados e os imigrantes. Eles são o mundo da nova pobreza.
O resultado é duplamente dramático, porque a massa dos novos deserdados começa a se refugiar na extrema direita, que roubou da esquerda o discurso anticapitalista. Está ocorrendo na democrática Europa, e existe o perigo de que ocorra também aqui no Brasil.
No espaço de alguns dias, vários intelectuais se manifestaram em concordância com tal análise. Neste mesmo jornal, Víctor Lapuente, doutor em Ciências Políticas da Universidade de Oxford, em seu artigo “O sexo da esquerda”, alertou sobre o risco de que a esquerda contemporânea “deixe de ser vista como representante da sociedade em seu conjunto”.
E nesse conjunto da sociedade vivem, por exemplo, a grande massa dos trabalhadores desqualificados, os últimos na escala da pirâmide social e os milhões que procuram trabalho. Todos eles esquecidos pelos grandes sindicatos.
Allen Berger, catedrático de economia na Universidade da Carolina do Sul, bateu na mesma tecla numa recente entrevista ao jornal O Globo, em que afirma que a esquerda de hoje “perdeu o poder de diálogo com os trabalhadores mais pobres”. Ele alerta que “esse mundo se rebelou” e está sendo “absorvido pela extrema direita”.
No Brasil, em um artigo recente no Estadão, o sociólogo José de Souza Martins, que já lecionou na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, criticava o Partido dos Trabalhadores (PT) por ter traído sua função institucional: “Poderia ter sido o canal de expressão daquela parcela da população que a história condena ao silêncio”.
O problema da esquerda brasileira, começando pelo PT, que constituía sua espinha dorsal, é, de fato, que acabou se aristocratizando, transformando-se no refúgio da classe média alta, dos artistas e intelectuais.
Os sindicatos se burocratizaram e se comprometeram mais com as categorias ricas, como os banqueiros, do que com o exército dos milhões de trabalhadores marginalizados. Deixaram para trás valores como os do mérito e a economia, cuja bandeira hoje é empunhada pela direita.
A esquerda petista escorregou, além disso, para a política da corrupção e dos privilégios. Não foi só o partido que se aburguesou, mas também muitos de seus ativistas, que descobriram o gosto pela vida cômoda dos milionários. E eles representavam a ética.
A esquerda brasileira resgatou milhões de trabalhadores da miséria, mas sem qualificá-los profissionalmente. Formou assim uma massa de novos pobres que hoje, decepcionados e castigados pela crise econômica, voltam seus olhos para a direita e para as igrejas evangélicas conservadoras (exemplos: a periferia pobre de São Paulo, que preferiu votar para prefeito no milionário João Doria, relegando o candidato do PT; e os excluídos das favelas do Rio, que elegeram como prefeito Marcello Crivella, bispo conservador da Igreja Universal, preferindo-o a Marcelo Freixo, candidato do esquerdista PSOL, que era o preferido pelas classes mais altas).
Sabemos, ao mesmo tempo, que a classe de trabalhadores pobre é conservadora. Defende a família e a tradição, por cultura e por instinto de sobrevivência, e vê com bons olhos que a polícia mate os criminosos sem os penduricalhos dos processos judiciais, sob o lema de que “bandido bom é bandido morto”.
Essa massa não se assusta com o fato de ocorrerem no Brasil 60.000 homicídios por ano, um triste recorde mundial, nem que mais de meio milhão de pessoas apodreçam em prisões desumanas, a maioria pobres e negros.
Para essa massa de novos pobres, a polícia e o Exército são seus melhores guardiões. Analisem as redes sociais e vejam como o militar e ultradireitista Jair Bolsonaro, pré-candidato a presidente, que continua defendendo a tortura e a pena de morte, desperta a simpatia de boa parte do mundo dos trabalhadores mais pobres.
Por que a esquerda não foi capaz de convencer essa massa de pobres de que os valores da democracia e da modernidade constituem a maior garantia futura de prosperidade?
Como escreve o sociólogo brasileiro Souza Martins, porque a esquerda “incluiu sem democratizar”.
Não façam, por favor, uma pesquisa sobre a democracia nesse mundo da nova pobreza, pois sofreriam uma grande decepção.
A esquerda toda, e também a brasileira, precisa se reinventar para voltar a ser capaz (se é que ainda é possível) de reconquistar os que foram seu sangue e sua razão de ser: os trabalhadores mais pobres, os mais expostos às aventuras antidemocráticas. Cada época tem os seus. Hoje, o proletariado é outro.
Seria triste e perigoso ver uma transfusão de sangue da massa de trabalhadores marginalizados, ou de jovens desencantados sem futuro, para as veias da extrema direita.
O grande teste da democracia para os brasileiros já está logo aí, na eleição presidencial de 2018. Então veremos qual força política será capaz de conquistar os votos da massa dos novos pobres, hoje desiludidos com a esquerda

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

"“Deus” foi a palavra mágica usada nos discursos de posse de milhares de prefeitos" / Juan Arias

“Deus” foi a palavra mágica usada nos discursos de posse de milhares de prefeitos

Um Deus curinga dos governantes para se esquivar de suas responsabilidades e adormecer os mais desamparados é um Deus perverso


Marcelo Crivella toma posse como prefeito do Rio de Janeiro.
  AGÊNCIA BRASIL
Talvez seja a sensação de impotência, a falta de confiança na política ou a forte influência das Igrejas Evangélicas, a verdade é que o Brasil parece se refugiar cada vez mais em Deus, algo que não desagrada seus governantes e muitos até exploram isso.
No dia primeiro de janeiro, quando milhares de prefeitos assumiram seus cargos, uma das palavras que mais foram repetidas em seus discursos foi “Deus”. E também a mais aplaudida.
“Não tenho medo de assumir essa responsabilidade porque Deus está comigo”; “Vamos mudar esta cidade porque Deus decidiu”, foram frases que se repetiram em muitos dos discursos dos recém-eleitos.
No Rio de Janeiro, o novo prefeito, o bispo evangélico Marcello Crivella, citou Deus seis vezes em oito minutos de seu discurso. Disse a uma multidão entusiasmada: “Tenho certeza de que Deus estará comigo enquanto governar”. E algo incomum nesses casos, em um país laico por Constituição, o evangélico Crivella abriu o ato recitando o Pai Nosso, um aceno para os católicos.
Não só aqueles que tomaram posse apelaram a Deus, mas também aqueles que se despediram depois de ter perdido a eleição. Um caso emblemático foi o da prefeita da pequena cidade de Sapezal (MT), Ilma Grisoste, 55 anos, formada em Pedagogia e doutora em Psicopedagogia.
Em vez de entregar as chaves da cidade ao seu sucessor, emitiu um documento no qual afirmava: “Decreto a entrega das chaves desta cidade a Deus”. E acrescentou: “Desejo que esta cidade pertença a Deus e que toda a prefeitura esteja sob a proteção do Todo-Poderoso”. Mais ainda: “Cancelo em nome de Jesus todos os pactos feitos por qualquer outro Deus ou entidade religiosa”.
Então, não é de estranhar que 90% dos brasileiros pensem que ser rico ou pobre depende de Deus, de acordo com uma pesquisa recente da Datafolha, publicada no jornal Folha de S. Paulo.
Esta pesquisa indica que nove de cada dez brasileiros estão convencidos de que “seu sucesso financeiro se deve a Deus”. E o mais estranho é que a alegação foi feita não só pelos crentes, mas também por 70% das pessoas sem religião e 23% daqueles que se declaram ateus.
E não apenas os mais pobres e menos escolarizados atribuem a Deus seu sucesso ou fracasso econômico, mas também 77% das pessoas que concluíram a universidade e ganham até 8.800 reais.
Esse Deus acaba sendo um perigo porque anula os próprios esforços das pessoas para avançar na vida, enquanto elimina sua capacidade de protestar e se rebelar contra o poder injusto.
Esse Deus empurra os pobres à resignação porque seria ele, e não o esforço e capacitação pessoal, ou a luta por seus direitos, que decide seu presente e seu futuro.
Os políticos devem ser os mais felizes com essa convicção de 90% dos brasileiros. Para que se esforçar muito, realizar reformas sociais que melhorem a vida das pessoas, se no final é Deus que decide sobre as finanças delas?
Ou para que melhorar a educação e elevar o nível cultural do povo, se 77% das pessoas com título universitário também acham que tudo depende de Deus?
Em qualquer sociedade laica do mundo, especialmente aquelas que possuem melhores índices de qualidade de vida, a situação econômica dos indivíduos e das famílias não depende de Deus, mas do esforço pessoal de cada um, sua capacidade e preparação profissional, bem como dos sistemas econômicos e políticos em que vivem.
Como diz o ditado espanhol: “A Deus rogando, mas com martelo batendo”. Ou, como respondeu Jesus (tão traído e distorcido nos discursos dos políticos brasileiros) aos judeus: “Dê a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
O resto é vontade de tirar sarro dos pobres e dar ao poder o álibi de que é Deus que vai cuidar deles.
A fé religiosa deveria ser, ao contrário, a primeira a exigir que o poder seja desmascarado sempre que pretende alienar as consciências com falsas promessas messiânicas ou perigosas bajulações aos pobres.
Um Deus curinga dos governantes para se esquivar de suas responsabilidades e adormecer os mais desamparados é um Deus perverso