POLÍTICA
Democracia de resultados
Estátua da igualdade, monumento central na praça la République, Paris (Leopold Morice, estatuário, e Charles Morice, arquiteto (Foto: Domínio Público)
Democracia não tem dono, embora muitos se arvorem em tutelá-la. Não permite ser ditada por mandatários políticos ou econômicos. Muito menos tem espaço para ser transformada em democracia de resultados, de conveniência, como preconiza o grupo de advogados que assinou a “Carta aberta em repúdio ao regime de superação episódica de direitos e garantias verificado na Operação Lava Jato”, publicada na sexta-feira nos principais jornais do país.
Nada contra o direito de gritar, espernear, esbravejar, algo que só a liberdade de expressão garantida pelos regimes democráticos permite. Mas seria melhor fazê-lo sem banalizar o conceito de democracia, tão surrado no Brasil nestes tempos de domínio do lulopetismo, em que o governo se considera titular exclusivo dessa doutrina. E que agora tem de partilhar com os causídicos que defendem réus e investigados da operação Lava Jato, responsável por desbaratar a roubalheira desvairada que assolou a Petrobras.
A carta é um primor.
Do título extenso e nada convidativo, que denuncia a “superação episódica”, ao juridiquês, que transmuta descaso ou menosprezo em “menoscabo”, e salubridade em “higidez”, tudo nela é hiperbólico, ou melhor, exacerbado, exageradíssimo. A ponto de perder a razão até nos momentos em que poderia tê-la.
Para os signatários – 103, sendo que pelo menos um deles, o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Gipp, negou ter autorizado o uso de seu nome –, a Lava Jato não apenas viola “as prerrogativas da advocacia”, dentre “outros vícios” não explicitados, como imputará “consequências nefastas para o presente e o futuro da justiça criminal brasileira”.
Ora, se é assim tão grave, e se a Lava Jato fere de morte a Constituição, como afirmam, por que a tese não foi levada ao Supremo? Por que só reclamam agora depois de perder sucessivos (não confundir com periódicos) recursos em nome de seus clientes na mais alta Corte do país?
A certa altura, depois de criticar sem nominar a reportagem da revista Veja que traz o dia a dia de detentos nobres no presídio, a carta traça o cenário da conspiração perfeita: “estratégia de massacre midiático”, parte de um “verdadeiro plano de comunicação para incutir na coletividade a crença de que os acusados são culpados, mesmo antes deles (sic) serem julgados”.
E, pasmem-se, capaz de “pressionar instâncias do Poder Judiciário a manter injustas e desnecessárias medidas restritivas de direitos e prisões provisórias”. Nessa frase acusam diretamente – sem meias palavras - os juízes de tribunais superiores de serem suscetíveis à mídia e julgarem com parcialidade. Contra os clientes dos signatários, é claro.
Assim como o governo Dilma Rousseff e o PT, rechaçam com veemência o que chamam de “vazamento seletivo”, como se seus ricos fregueses tivessem foro privilegiado e depoimentos policiais protegidos.
Nem de longe mencionam que o Supremo manteve as prisões provisórias com base em fartura de provas e na possibilidade de os acusados, se libertados, manipulá-las.
Desafiam o STF e afirmam que a continuidade das prisões é instrumento de coerção para obter delação premiada. Os mesmos presos que representam “gravíssimo risco a ordem pública”, dizem, não oferecem ameaça alguma quando se tornam delatores. Omitem o fato de que, ao contrário dos demais detentos, delatores querem preservar as provas de seus dizeres, sob pena de perderem as vantagens negociadas, em vez de eliminá-las ou tentar alterá-las para driblar a Justiça.
Novamente com o cuidado de não citar nomes e até para evitar ser alvo de eventuais processos, imputam parcialidade ao juiz Sérgio Moro, que estaria se comportando “de maneira mais acusadora do que a própria acusação”.
Por fim, evocam a ameaça ao Estado de Direito e voltam a duvidar da capacidade do Poder Judiciário, que estaria sujeito a ser influenciado pela “publicidade opressiva que tem sido lançada em desfavor dos acusados”. Pura peça de defesa, aqui sem qualquer disfarce.
Mas nada é mais acintoso do que o uso indevido e oportunista do sentido da democracia. Muito mais do que uma “Justiça que se pretenda democrática”, como o documento defende, o país precisa de uma Justiça justa. Que não privilegie ninguém. Isso, sim, é democracia e o mérito maior da Lava Jato.