O fim da inocência digital
Em 2013, morreu a ideia de que a internet veio para nos libertar. Para 2014, nossa aposta é que o movimento para regulamentá-la ganhará mais força
GUILHERME EVELIN
11/01/2014 13h37 - Atualizado em 11/01/2014 13h39
A inspiração do premiado escritor americano Dave Eggers, autor de O círculo, é óbvia. É o clássico 1984, a distopia totalitária imaginada pelo britânico George Orwell, em que o governo, na forma do Grande Irmão (Big Brother), vê tudo e sabe tudo. Lá, não é o Círculo, mas o Partido que controla o presente. Em 1984, as imagens dos hereges, que tentam resistir, são mostradas em telas de TV, para que eles sejam expostos à ridicularização pelo populacho – algo semelhante ao que ocorre com um ex-namorado de Mae, a quem é reservado um destino trágico. Em 1984, há também três lemas, escritos na novilíngua do Ministério da Verdade: “Guerra é Paz”, “Liberdade é Escravidão”, “Ignorância é Força”.
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The Circle faz evidentes referências também a outro clássico: Admirável mundo novo, do britânico Aldous Huxley. Na distopia de Huxley, a sociedade é governada por uma ditadura, que controla os indivíduos graças a um poderoso narcótico, o soma, de efeitos agradavelmente entorpecentes. No feliz resumo de John Naughton, professor emérito da Open University, noReino Unido, estudioso do impacto social da tecnologia e autor de Gutenberg a Zuckerberg – O que você precisa realmente saber sobre a internet, Orwell temia que a humanidade fosse destruída pelas coisas que tememos – como o aparato de vigilância montado pelo Estado. Huxley temia que fôssemos destruídos por nossos prazeres.
O livro de Eggers foi lançado nos EUA em outubro, depois das denúncias feitas por Edward Snowden sobre o mega-aparato de vigilância e espionagem de governos, empresas e cidadãos montado pela NSA (National Security Agency), a agência nacional de segurança do governo americano. A repercussão foi enorme. Caiu a ficha para todos. A paródia de Eggers não é uma fantasia imaginada por um paranoico, mas uma realidade presente, em que a privacidade individual está sob risco. Como mostrou Snowden, o Estado capaz de vigilância total já chegou. E estamos indo bem também do lado “admirável mundo novo”. O fim da privacidade se tornou possível graças à sofreguidão com que as pessoas se lançam, como diz Naughton, a “partilhar seus estados de vida e alma nas plataformas de grandes companhias que armazenam, filtram e abusam dessas imensas bases de dados, sem qualquer necessidade de coação de um Estado totalitário”. O soma de nossa era, afirma Naughton, é nosso amor pela internet e pelos gadgets produzidos em série por Apple, Samsung, Amazon e outras grandes corporações.
The Circle faz evidentes referências também a outro clássico: Admirável mundo novo, do britânico Aldous Huxley. Na distopia de Huxley, a sociedade é governada por uma ditadura, que controla os indivíduos graças a um poderoso narcótico, o soma, de efeitos agradavelmente entorpecentes. No feliz resumo de John Naughton, professor emérito da Open University, noReino Unido, estudioso do impacto social da tecnologia e autor de Gutenberg a Zuckerberg – O que você precisa realmente saber sobre a internet, Orwell temia que a humanidade fosse destruída pelas coisas que tememos – como o aparato de vigilância montado pelo Estado. Huxley temia que fôssemos destruídos por nossos prazeres.
O livro de Eggers foi lançado nos EUA em outubro, depois das denúncias feitas por Edward Snowden sobre o mega-aparato de vigilância e espionagem de governos, empresas e cidadãos montado pela NSA (National Security Agency), a agência nacional de segurança do governo americano. A repercussão foi enorme. Caiu a ficha para todos. A paródia de Eggers não é uma fantasia imaginada por um paranoico, mas uma realidade presente, em que a privacidade individual está sob risco. Como mostrou Snowden, o Estado capaz de vigilância total já chegou. E estamos indo bem também do lado “admirável mundo novo”. O fim da privacidade se tornou possível graças à sofreguidão com que as pessoas se lançam, como diz Naughton, a “partilhar seus estados de vida e alma nas plataformas de grandes companhias que armazenam, filtram e abusam dessas imensas bases de dados, sem qualquer necessidade de coação de um Estado totalitário”. O soma de nossa era, afirma Naughton, é nosso amor pela internet e pelos gadgets produzidos em série por Apple, Samsung, Amazon e outras grandes corporações.
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The Circle sofreu críticas nos EUA por ser um retrato exagerado, sem sutilezas nem nuances. Mas, como toda boa sátira, sua intenção não é elaborar finas psicologias, mas acentuar alguns traços de nosso mundo, que, ao ser amplificados, mostram seu lado grotesco. Morador da região da baía de San Francisco, na Califórnia, Eggers conhece de perto o Vale do Silício e a sociedade que emergiu com o florescimento das empresas de alta tecnologia. É um ótimo antropólogo da cultura nerd, que nos invadiu e nos convida à exposição permanente nas redes sociais. A sede do Círculo é chamada de Campus, tem alas com nomes pretensiosos como Renascimento e Iluminismo e é um decalque do mundo idílico de campos verdejantes e ambiente de trabalho estimulante para a criatividade do Googleplex, a sede do Google na Califórnia.
The Circle sofreu críticas nos EUA por ser um retrato exagerado, sem sutilezas nem nuances. Mas, como toda boa sátira, sua intenção não é elaborar finas psicologias, mas acentuar alguns traços de nosso mundo, que, ao ser amplificados, mostram seu lado grotesco. Morador da região da baía de San Francisco, na Califórnia, Eggers conhece de perto o Vale do Silício e a sociedade que emergiu com o florescimento das empresas de alta tecnologia. É um ótimo antropólogo da cultura nerd, que nos invadiu e nos convida à exposição permanente nas redes sociais. A sede do Círculo é chamada de Campus, tem alas com nomes pretensiosos como Renascimento e Iluminismo e é um decalque do mundo idílico de campos verdejantes e ambiente de trabalho estimulante para a criatividade do Googleplex, a sede do Google na Califórnia.
Os controladores do Círculo são conhecidos como os “três homens sábios”. Um deles, Eamon Bailey, se veste despojadamente como Steve Jobs, da Apple. Ele atrai seguidores com suas apresentações de novas tecnologias, que embasbacam a todos. Suas frases são cunhadas para ter o efeito bombástico de uma palestra do TED. São um bom compêndio da “cultura Google”, aquela crença de que a tecnologia é uma força irresistível que melhorará a humanidade. No romance, Bailey é o profeta da transparência total. Segundo ele acredita, ela livrará os homens de todos os males. No final do romance, revela-se apenas um bolchevique utópico. Nada exótico, se lembrarmos que Eric Schmidt, ex-CEO do Google, já disse a seguinte frase: “Nós sabemos onde você está. Nós sabemos onde você esteve. Nós sabemos mais ou menos o que você está pensando”.
O romance de Eggers pode parecer a alguns futurista. Não é. Algumas das tecnologias enunciadas no livro, que podem permitir o mundo da transparência total, já estão aí. As câmeras digitais estão cada vez menores, mais potentes e onipresentes. Nos Estados Unidos, as polícias usam as imagens capturadas por minicâmeras instaladas em ruas, cruzamentos e pontes, como parte de um sistema de leitura automática de placas de carros, para montar um megabanco de dados sobre cidadãos, mesmo aqueles inocentes de qualquer violação no trânsito. O temor das entidades de defesa de direitos individuais é que tal sistema leve a abusos policiais. Foi revelado, neste ano, que o governo americano faz rápidos progressos no desenvolvimento de um sistema de vigilância que equipará computadores com câmeras de vídeo que permitirão o reconhecimento facial de indivíduos no meio de multidões. Pode ser uma ótima arma para identificar terroristas. Sem controles, pode ser facilmente desvirtuada por quem é movido por razões torpes. O Google Glass, óculos equipados com uma câmera que permite fotografar e filmar com um piscar de olhos, está em fase de testes. Ao chegar ao mercado, fará explodir as possibilidades de alguém ser gravado e monitorado sem que saiba.
O romance de Eggers pode parecer a alguns futurista. Não é. Algumas das tecnologias enunciadas no livro, que podem permitir o mundo da transparência total, já estão aí. As câmeras digitais estão cada vez menores, mais potentes e onipresentes. Nos Estados Unidos, as polícias usam as imagens capturadas por minicâmeras instaladas em ruas, cruzamentos e pontes, como parte de um sistema de leitura automática de placas de carros, para montar um megabanco de dados sobre cidadãos, mesmo aqueles inocentes de qualquer violação no trânsito. O temor das entidades de defesa de direitos individuais é que tal sistema leve a abusos policiais. Foi revelado, neste ano, que o governo americano faz rápidos progressos no desenvolvimento de um sistema de vigilância que equipará computadores com câmeras de vídeo que permitirão o reconhecimento facial de indivíduos no meio de multidões. Pode ser uma ótima arma para identificar terroristas. Sem controles, pode ser facilmente desvirtuada por quem é movido por razões torpes. O Google Glass, óculos equipados com uma câmera que permite fotografar e filmar com um piscar de olhos, está em fase de testes. Ao chegar ao mercado, fará explodir as possibilidades de alguém ser gravado e monitorado sem que saiba.
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Nos tempos pré-Snowden, os riscos embutidos nessa cultura que põe a tecnologia numa espécie de altar ainda podiam passar despercebidos. Eram poucos os céticos, como o bielorrusso Evgeny Morozov. Num presciente livro de 2011 – The net delusion – The dark side of internet freedom (A ilusão da rede – O lado escuro da liberdade de internet) –, Morozov denunciara o que ele chamou de “ciberutopismo”: a crença ingênua de que a internet está destinada a libertar os oprimidos, em vez de reforçar os mecanismos de repressão dos opressores. Essa ideologia nasceu, segundo ele, do “fervor digital dos anos 1990”, quando “antigos hippies, abrigados nas mais prestigiosas universidades, entraram numa espécie de folia retórica, para provar que a internet poderia entregar o que os anos 1960 não conseguiram: incentivar a participação democrática, desencadear o renascimento de comunidades antes moribundas, reforçar a vida associativa”. Morozov também foi um crente no poder emancipatório da internet, mas, nascido na Bielorrússia, onde o totalitarismo soviético deitou raízes, viu como lá ela foi usada para reforçar os poderes do ditador local. Sua conclusão é simples e poderosa: “A tecnologia muda, mas a natureza humana não”.
Nos tempos pré-Snowden, os riscos embutidos nessa cultura que põe a tecnologia numa espécie de altar ainda podiam passar despercebidos. Eram poucos os céticos, como o bielorrusso Evgeny Morozov. Num presciente livro de 2011 – The net delusion – The dark side of internet freedom (A ilusão da rede – O lado escuro da liberdade de internet) –, Morozov denunciara o que ele chamou de “ciberutopismo”: a crença ingênua de que a internet está destinada a libertar os oprimidos, em vez de reforçar os mecanismos de repressão dos opressores. Essa ideologia nasceu, segundo ele, do “fervor digital dos anos 1990”, quando “antigos hippies, abrigados nas mais prestigiosas universidades, entraram numa espécie de folia retórica, para provar que a internet poderia entregar o que os anos 1960 não conseguiram: incentivar a participação democrática, desencadear o renascimento de comunidades antes moribundas, reforçar a vida associativa”. Morozov também foi um crente no poder emancipatório da internet, mas, nascido na Bielorrússia, onde o totalitarismo soviético deitou raízes, viu como lá ela foi usada para reforçar os poderes do ditador local. Sua conclusão é simples e poderosa: “A tecnologia muda, mas a natureza humana não”.