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segunda-feira, 20 de novembro de 2017

"Assédio sexual e pânico moral" / Lúcia Guimarães

Assédio sexual e pânico moral

A retaliação ao momento que atravessamos me parece inevitável

Lúcia Guimarães, O Estado de S. Paulo
20 Novembro 2017 | 03h00


Lúcia Guimarães, O Estado de S. Paulo
20 Novembro 2017 | 03h00
Quem se hospeda num hotel de Nova York e ouve a arrumadeira bater à porta, espera sabonete, shampoo, uma troca de toalhas. Muitos não sabem que ela traz sempre consigo um aparelho discreto: um botão de pânico. Depois que o ex-diretor do FMI Dominique Strauss-Kahn foi preso e acusado de tentar estuprar uma arrumadeira num hotel de Manhattan, em 2011, o sindicato que reúne 30 mil empregados na indústria hoteleira da cidade conseguiu incluir o botão de pânico em contratos. Strauss-Kahn não enfrentou a justiça por inconsistências na acusação, mas o caso chamou atenção para o segredo sujo da indústria hoteleira.
Mulheres são mais da metade dos empregados na indústria de serviços nos EUA e, embora não se saiba se alguma delas atraiu a fúria do provável réu e estuprador serial Harvey Weinstein, elas formam também a maioria das vítimas de agressão sexual no local de trabalho.
A rotina semanal de novas acusações de assédio sexual praticado por homens poderosos em Hollywood, no Congresso, nas redações e em corporações está provocando um pânico moral que pode levar a uma retaliação e, quem sabe, a um retrocesso. O que seria mais grave para as vítimas anônimas que precisam de proteção. Quanto mais baixo o salário, mais vulnerável a(o) empregada(o). As arrumadeiras de hotel são presa fácil por ficarem a sós com hóspedes no quarto. Mas, nos últimos três anos, pesquisas entre empregados de restaurantes em todo o país colocaram o índice de vítimas entre 40% e 60%.



Sobre o pânico moral, a excelente autora russo-americana Masha Gessen lembrou esta semana, num artigo na revista New Yorker, que ele é geralmente o resultado de um problema negligenciado por muito tempo, até que um caso marcante – o de Harvey Weinstein – captura a imaginação do público. O problema do pânico moral, além do óbvio risco de destruir vidas de inocentes falsamente acusados, é oferecer uma catarse que não vai proteger a arrumadeira do hotel ou trazer transformação cultural.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Siria > Ensaio com palavras fortes e argumentos insinuantes / Lúcia Guimarães

Lúcia Guimarães
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Palavras

02 de setembro de 2013 | 2h 16

Lúcia Guimarães - O Estado de S.Paulo
NOVA YORK - Em matéria de articular indignação ou defender posições insólitas com eloquência, acho que a turma do segundo grau da escola pública aqui perto tem um time de debatedores mais convincentes. Falo das declarações públicas que cercaram a aventura brasileira agora conhecida como Argo nos Andes, que, de potencial filme de suspense produzido por George Clooney, periga ter um roteiro de chanchada da Atlântida.
Em matéria de articular indignação sobre a Síria, os adolescentes da mesma escola podem estudar a alta oratória de gente como John Kerry ou Barack Obama nos últimos dias. Como tratam bem a própria língua, estes homens públicos em Washington.
"Em vez de dormir na segurança de suas camas, vimos fileiras de crianças lado a lado, espalhadas no chão, todas assassinadas pelo gás de Assad", disse Kerry, sugerindo aos que ignoram a evidência do ataque hediondo (ouviu, Vladimir?) conferir sua bússola moral. "Não podemos criar nossos filhos num mundo em que não agimos de acordo com nossas palavras, com os tratados que assinamos, com os valores que nos definem", disse um sombrio Obama, ladeado por um sombrio vice-presidente Biden. Meia hora depois, foram jogar golfe.
Em quase duas semanas de choque com as imagens de crianças se contorcendo e com suas bocas espumando, as cenas que o mundo supunha ter banido há quase cem anos, a diferença entre palavras e ações só fica mais evidente. Se 50% dos americanos são contra um ataque à Síria sob qualquer pretexto e 60% dos britânicos concordam com eles, seus governos sabem que foram as palavras de 2003 que erodiram a credibilidade em 2013. Afinal, 6 mil soldados voluntários dos dois países perderam a vida na invasão sob falso pretexto que matou 100 mil iraquianos.
"Como vocês pedem a um homem para ser o último a morrer por um erro?", perguntou, em 1971, um cabeludo e condecorado John Kerry, aos 28 anos, numa das declarações mais citadas sobre o fiasco americano no Vietnã. O ex-senador e agora Secretário de Estado tem demonstrado mais contundência e convicção pela decisão de atacar a Síria do que seu patrão. O que ele não explica é se tem planos para impedir que outro veterano faça a mesma pergunta que fez quando voltou da guerra.
"Eu entendi", admitiu um humilhado David Cameron, quando seus aliados transmitiram o recado do público e, pela primeira vez, desde 1782, negaram a um primeiro-ministro britânico autorização para um ato de guerra. Ponto para Cameron por não tentar encobrir sua trapalhada com voos de retórica.
No caso da Síria, o palavrório que mais desafia a credibilidade é o da missão humanitária. Os EUA podem disparar quantos mísseis quiserem, da segurança de seus navios no Mediterrâneo, mas não me venham dizer que atacam para salvar vidas das crianças choradas por estranhos, graças ao YouTube. Fazer chover mísseis durante dois dias, quem sabe até imobilizar boa parte do sistema de transporte do coquetel hediondo de armas químicas, não vai salvar vidas. Vai apenas fazer uma correção no método do lento genocídio. Pergunte aos amputados de Ruanda, que esperaram por um Bill Clinton hoje arrependido.
Os indignados de 2013 cruzaram os braços em 2012 enquanto Assad bombardeava a população. Mais de cem mil mortos depois, e com a forte presença de rebeldes islâmicos, entramos no território desconhecido, em parte por causa de outras palavras: a declaração improvisada de Barack Obama, há um ano, sobre a "linha vermelha" que Assad não poderia cruzar, se usasse armas químicas. O governo americano sabe desde dezembro que armas químicas foram usadas na Síria. Três dias antes do ataque de 21 de agosto, a inteligência americana observou os preparativos dos militares sírios que fariam 1.500 vítimas com gás sarin mas nada disse a lideres rebeldes com quem tem diálogo. No pesadelo sírio, os que mais têm a dizer vão sendo silenciados.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

"... Descobrir o susto e a maravilha do bebê que chega logo... mesmo que ele não tenha um berço para repousar!

Lúcia Guimarães

O menino esperou 20 anos para nascer

24 de dezembro de 2012 | 4h 36
Lúcia Guimarães - O Estado de S.Paulo
Lembro a cena como se fosse ontem: uma tarde de calor escorchante. Estava em pé no meio da sala do apartamento e olhava em volta, procurando uma superfície segura para depositar o embrulho que trazia no colo. Nos meus braços, envolta em uma manta de algodão, minha filha de 3 dias não desconfiava do completo amadorismo da mãe, que julgava estar no oitavo mês de uma gravidez não planejada quando sentiu uma pontada estranha nas costas, no meio do fechamento do Jornal Nacional. Continuou trabalhando. Foi jantar com o marido num botequim pé-sujo de Botafogo. As pontadas continuaram e a estranha agitação foi temporariamente aplacada com a leitura do então muito debatido O Crepúsculo do Macho, de Fernando Gabeira. Como escreve bem o Gabeira. Ai, o que foi isso?
O berço de madeira encomendado ainda estava a caminho. O pai corria atrás de mamadeiras e esterilizadores. As camisas de pagão do Ceará, de algodão pele de ovo, não tinham sido lavadas e o carrinho de bebê emprestado não tinha chegado. Pior: como uma das últimas a nascer, até então, na minha pequena família, nunca tinha estado na presença de um recém-nascido, a não ser através do vidro de um berçário de hospital.
A história de improvisação e quase desastres que cercou minha estreia na maternidade provoca horror na minha filha. Ela vai ler manuais, vai ser acompanhada por profissionais, vai discutir dietas e teorias neonatais com a paixão com que eu brigava com trotskistas no diretório da faculdade.
Mas, de tudo o que soneguei à minha filha, por imaturidade e falta de ambição, não sabia que estava dando a ela algo que só faria diferença décadas depois: o fato de ter engravidado jovem. Se eu viver o bastante para precisar de assistência como idosa, minha filha estará madura, com filhos crescidos e alguma estabilidade para ficar menos vulnerável ao meu declínio.
O fenômeno dos pais de meia-idade cresce em sociedades industrializadas. É mais do que uma vitória dos tratamentos de fertilidade. As consequências da paternidade e da maternidade adiada têm sido tratadas mais do ponto de vista econômico e psicológico. A indústria da fertilidade apresenta uma narrativa de triunfo, frequentemente triunfo feminista, sem desdobramentos negativos. Filhos de pais mais velhos desfrutam maior afluência e sabedoria que é fruto da maturidade.
Mas, recentemente, estudos médicos mostram com mais clareza que não apenas a idade da mãe pesa nessa equação. A idade do pai influi no aumento de inúmeras doenças, do autismo à esquizofrenia. Uma ciência que provoca crescente desconforto entre aspirantes à procriação adiada, a epigenética, documenta transmissão de mutações e há de provocar um exame sobre as práticas de fertilidade em laboratório.
Não preciso me debruçar sobre publicações médicas para observar o que mudou para pior. No começo, ao notar a idade das mães que empurram carrinhos no meu bairro, um epicentro de adoções e casais ambiciosos que adiam a primeira gravidez, olhava com admiração a elaborada dedicação ao ritual reprodutivo planejado. O sucesso profissional exige mais anos de instrução superior. Educação e saúde de boa qualidade se tornaram luxo. Mas estas crianças do meu bairro começaram a falar e se manifestar como pequenos Mussolinis. Dominam as refeições noturnas. Não conseguem se distrair sozinhas. São exibidas como troféus. Seus ombros suportam o mundo e ele pesa mais do que a mão de um adulto narcisista e ansioso.
Uma grande amiga engravidou pela primeira vez aos 42 anos. Outro dia, ela passou a tarde vendo uma peça na escola da filha, uma daquelas montagens intermináveis, que requerem nossas reservas de amor e orgulho materno. Na mesma semana, passei a tarde no teatro com a minha filha. No palco, Martha e George se destroçavam na clássica Quem Tem Medo de Virginia Woolf, de Edward Albee. Disfarcei meu orgulho materno ao ouvir a análise serena que ela fez sobre a dinâmica de um casal.
Conversava com um conhecido clínico geral nova-iorquino, autor de sucesso e especialista em saúde na terceira idade e perguntei por que os pais de meia-idade criam filhos tão ditatoriais, como se cada um deles fosse o herdeiro da coroa britânica? "Esta obsessão do pai idoso é biológica, evolucionária", ele disse. Como assim? Ele explicou: se você tem o primeiro filho ainda jovem, sabe, inconscientemente, que pode ter mais filhos. Seu instinto protetor é diferente. Se começa a ter filhos depois dos 40, sabe que suas chances de procriar são radicalmente reduzidas.
É impossível desvincular a fertilidade do mercado de trabalho hostil à procriação e da ideia de que procriar cedo é um problema da mulher. Quem sabe se os filhos dos chamados pais-avós, mais afligidos por mutações genéticas, problemas de desenvolvimento psicológico, expostos ao trauma da perda prematura dos pais e o fardo de cuidar de idosos no começo da vida profissional, vão redescobrir o susto e a maravilha do bebê que chega logo. Mesmo que ele ainda não tenha um berço para repousar.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

"Abaixo o diploma de jornalismo" // Lúcia Guimarães


Lúcia Guimarães
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Abaixo o diploma de jornalismo

NOVA YORK - Faltei à formatura da minha faculdade. Fiquei pendurada porque tirei nota baixa em estatística, tive de fazer o crédito em recuperação e colei grau sozinha no meio do ano. Confesso que não me recuperei em estatística. Assim como não aprendi jornalismo na escola de jornalismo. Lembro dos professores complacentes, um lacaniano esquisito (pleonasmo?), um comunista feroz, uma preguiçosa que não preparava nada e flertava com alunos.
Só fui boa aluna até o fim do segundo grau. Faltava muito à aula na faculdade porque já trabalhava como repórter. Aprendi o ofício na redação.
Uma vez, não preparei o trabalho final de uma matéria e só me lembrei na manhã da última aula. Lavei um vidro de geleia, datilografei várias palavras e joguei o papel picado lá dentro. Sacudi e entreguei para o professor, dizendo que era um poema concreto. Tirei nota 8.
Obrigar o jornalista a ter diploma de jornalismo é como obrigar um cantor a tomar aula de voz antes de cantar no palco, uma violação da liberdade de expressão. Não que uma boa escola de jornalismo seja inútil, pelo contrário, a da Columbia University, aqui perto, é uma usina de grandes profissionais. Mas é uma escola de pós-graduação, você só é aceito se já escrever num nível cada vez mais raro na nossa imprensa.
As redações eram a lição de anatomia do jornalista da minha geração. Hoje é indispensável aprender técnicas do jornalismo digital. Jornalista deve estudar, acima de tudo, português e se educar em história, literatura, economia, ciência, filosofia e ciência política. Quem chega à redação passou pelo crivo de editores e competiu com seus pares, mesmo por um estágio.
Não compreendo por que um graduado em economia que escreve bem seria impedido de cobrir o Banco Central e substituído por um foca que pode ser facilmente enrolado, já que não decifra a informação financeira. Não fui capaz de questionar porta-vozes do governo quando tive que substituir colegas na cobertura da negociação da dívida externa em Nova York. Não entendia bulhufas dos comunicados.
O senador paraibano Cícero Lucena declarou, orgulhoso, pelo Twitter, que votou a favor da obrigatoriedade do diploma porque "democracia se faz com jornalismo ético, profissional e técnico". Sua excelência vai me desculpar, mas essa frase não passa pelo copidesque. O que tem a democracia a ver com a profissionalização do jornalista? E com sua capacidade técnica de fazer fotografia com foco? A ética começa ainda na primeira dentição, em casa, é aperfeiçoada durante a educação e é fundamental para qualquer profissão.
A democracia se faz com jornalismo, ponto. Quando Thomas Jefferson disse que era melhor ter um país sem governo do que um país sem jornais, a inspiração era o civismo, não o corporativismo. O baixo nível da maioria das escolas de comunicação é que erode a democracia porque joga milhares de jovens iletrados na vala comum do subemprego, fabrica profissionais despreparados para contestar o poder e investigar a corrupção num mundo cada vez mais sofisticado e falsificado pelo marketing. Não foi coincidência Charles Ferguson, ganhador do Oscar de 2011 por Inside Job, ter conduzido as entrevistas mais reveladoras já feitas sobre o crash de 2008. O homem se formou em matemática e fez PHD em ciência política, sabia o que perguntar.
A desculpa usada pelo senador sergipano Antonio Carlos Valadares - empresas de comunicação se opõem ao diploma porque querem contratar mão de obra barata - é absurda. A epidemia de cursos superiores de jornalismo alimenta a distorção de mercado que baixa os salários. Por que só o senador Aloysio Nunes Ferreira teve coragem de apontar a aberração constitucional do voto? Qual o motivo por trás da esmagadora maioria dos votos a favor?
E o que define para esses parlamentares a tal profissão, numa era em que qualquer um munido de smart phone pode narrar e fotografar um atentado no Afeganistão e apertar "enviar"? A diferença é editorial e o público vota no bom jornalismo selecionando onde deposita sua atenção. As empresas de comunicação que quiserem produzir seu conteúdo com mão de obra medíocre e barata terão na exigência do diploma sua maior aliada.
O jornalismo é um bem social importante demais para ficar nas mãos de jornalistas diplomados.