Postagem em destaque

O QUÉ significa Isto ?

🌍 | AGORA: Argélia, Arábia Saudita, Egipto, Nigéria e outros países começaram a retirar as suas reservas nacionais de ouro dos Estados Unidos.

Mostrando postagens com marcador os sapatos de meu tio. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador os sapatos de meu tio. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Os sapatos de meu tio... // conto de Arnaldo Jabor

Arnaldo Jabor
Início do conteúdo

Os sapatos de meu tio

09 de abril de 2013 | 2h 18



Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo
foto-sapato-preto-para-o-noivo-12.jpg (600×486)
O telefone não dava linha. Era sempre assim: as linhas para o centro da cidade nunca completavam a chamada. Depois de meia hora conseguiu falar com a secretária do seu chefe no Banco do Brasil que lhe disse de uma reunião de urgência, o que lhe deu um pavor especial, como se fosse para um tribunal. Os 'lotações' passavam lotados, zuniam sem parar até que um deles fez meia trava e falou: "Só agachadinho". No terno marrom da Ducal ele foi sentado no chão e se consolou pensando nos jogadores que posavam nessa postura, Ademir agachado, Danilo agachado, ele no micro-ônibus com as pernas de uma senhora de meias ortopédicas junto a seu rosto. Recebeu o troco do ramalhete de notas que o motorista tinha entre os dedos e desceu na Avenida Rio Branco, em 1951, quando tudo era precário, com ônibus amontoados no trânsito sem rumo, milhares de transeuntes em sua pressa pobre, o que lhe aumentava o medo e a solidão porque (pensava sempre) dali a 50 anos todos estariam mortos.
E seu peito esfriou mais ainda quando atravessou a repartição, entre as máquinas de escrever batucando, como se o acusassem de fracassado, ele que marcava passo enquanto incompetentes subiam na vida.
Por que por que a ponta de sarcasmo no tom do contínuo que o chamou de 'meu chapa'? Por que a ironia (ele achou) no sorriso gélido da secretária?
O novo chefe à sua frente exibia uma desdenhosa superioridade, de modo a camuflar o fato de ser um indicado político boçal. Ele falava lentamente, como cabe a um diretor dirigir-se a um subordinado em cadeira mais baixa e seus olhos luziam cruéis quando lhe comunicou que seu relatório estava muito fraco, entregando-lhe o maço de papéis com desprezo. Trêmulo, ele perguntou por que o relatório era ruim e o chefe respondeu com um sorriso de expert para ocultar sua ignorância: "Descobre você mesmo" e indicou-lhe a porta.
Seu amigo mais próximo era o porteiro que o 'gozou' quando ele saiu do prédio: "Seu Flamengo, hein? Vender o Zizinho pro Bangu?" Dos bondes pendiam cachos de passageiros nos estribos como trens da Índia. Agarrou-se em um deles, grudado entre um negão fuzileiro naval de paletó vermelho, irritado com o recém-chegado e o condutor que se pendurava no cacho humano para pegar as notinhas de cruzeiro e ele, protegendo o maço do relatório que o vento ameaçava desfolhar, se perguntava com amargor por que o relatório era ruim, mas falou está falado, o chefe manda, e pensava também no catupiry que esquecera de comprar, já imaginando a cara de sua mulher dando um muxoxo que significava sua desvalia.
Não que fossem infelizes no casamento longo; sem ódio ou desamor, havia entre eles uma estranheza, um temor quando se amavam raramente no escuro da cama, quase um incesto entre dois irmãos íntimos, o que lhes esfriava o corpo, pois não sabiam como transformar o tédio incestuoso num delicioso pecado, numa perversão excitante.
Não que estivessem velhos e feios; eles eram exatamente o que a vida lhes previa havia anos - ela, com sua gostosura suburbana, perdera a bela maciez juvenil que clamava por fecundações que nunca vieram, sem falar no aborto espontâneo que lhe extinguiu o desejo maternal. O que antes era vigor do fundo de suas glândulas virara um peso de órgãos infelizes, ovários inchados, flores brancas, escassez de menstruo, varizes que lhe azulavam as pernas muito brancas e indesejados pelinhos negros que se espalhavam pelas coxas como uma hera, o que o abatia quando despia o terno da Ducal e se deitava sobre seu corpo. Ambos eram fiéis e quase não brigavam em silenciosa paciência, numa familiaridade insossa e, de noite, nas salas e quartos, pareciam personagens de uma casa que era na realidade habitada pelos móveis. Entre poltronas de veludo, quadros de pretos velhos e pombas, entre cortinas e abajures eles viviam combinando seus gestos com a mudez desbotada dos ambientes.
E o que mais lhe doía ali no estribo do bonde era saber que não seria despedido jamais, apenas eternamente humilhado, pois tinha estabilidade no emprego público; se bem que, no fundo do seu corpo havia o desejo de sê-lo - por quê? Sentia vontade de ser expulso não só do banco, mas de tudo, ejetado, projetado como uma bala para bem longe, para um remoto lugar onde não houvesse nada a não ser uma imensa planície verde como um infinito campo de golfe - por quê?
Pulou do bonde andando e chegou em casa. No elevador, já sentia a habitual mão dura e fria no peito. Quando entrou no apartamento evitou passar em frente do espelho, com um vago receio de não ser refletido. A casa estava vazia - somente ele e os móveis: o sofá de folhagens estampadas, a poltrona de veludo que parecia se mover em sua direção, a jarra de flores de plástico prestes a cair da cristaleira e o rádio tocando baixinho um bolero. Desligou tudo e ouviu o silencio com um agudo ruído ao fundo, como uma nota de violino sem fim.
A mão fria apertava mais seu peito e empurrou-o até a cozinha. A empregada pretinha chamava-se Hermínia (por que o nome grego?)
Mandou-a comprar bananas. Ela saiu. Ele bebeu um copo d'água com goles sôfregos. Em seguida foi até a área de serviço, tirou os sapatos, arrumou-os juntinhos com o pé direito um pouco à frente, como sempre fazia para dar sorte. Em seguida, jogou-se da janela como um banhista que mergulhasse de um trampolim.
As estatísticas registram o hábito estranho de que quase todos os suicidas tiram os sapatos antes de pular. Por quê? Talvez uma esperança de leveza, uma hipótese de voo, o quê? Um desejo de elegância para evitar sapatos desconjuntados?
Em três segundos, enquanto caía, muitas emoções viveu na velocidade da luz: um alívio pela coragem, um pavor arrependido, a ressurreição (sim, muitos se matam para renascer), a esperança de que o chão não chegue nunca, a curiosidade de conhecer a morte no instante do impacto e a pergunta 'por quê?' Caído na calçada, pode ter visto um campo verde.
Quando a empregada chegou com as bananas só viu a cozinha vazia e os sapatos pretos de amarrar, arrumadinhos no canto da área. Pegou os sapatos para levar ao quarto quando começou a gritaria dos condôminos lá embaixo.