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domingo, 20 de setembro de 2015

" Os jornalistas costumavam liderar o caminho, em vez de seguir servilmente o fluxo superficial do tráfego da internet " / blog do Ricardo Noblat / Bobby Fischer

GERAL

A era de Bobby Fischer

Os jornalistas costumavam liderar o caminho, em vez de seguir servilmente o fluxo superficial do tráfego da internet
Bobby Fischer (Foto: Divulgação)Bobby Fischer (Foto: Divulgação)
Kenneth Rogoff, O Globo
O novo e brilhante filme “Pawn Sacrifice” (“Sacrifício do peão”) retrata a vida do atormentado gênio do xadrez Robert James “Bobby” Fischer desde o começo como um prodígio ao histórico jogo de 1972, aos 29 anos, com o campeão mundial russo Boris Spassky. O ator Toby Maguire representa Fischer com uma autenticidade impressionante — de fato, um gol de placa para aqueles de nós que conhecemos Fischer em seu auge.
O filme retrata um jogo que se tornou um evento crucial na Guerra Fria entre a Rússia e os EUA. Também leva a pensar se um gênio criativo como Fischer, profundamente perturbado e ainda assim plenamente funcional como enxadrista, seria capaz de sobreviver hoje no implacável mundo on-line.
Fischer certamente obteve repercussão naquela época, mas a informação era filtrada de forma muito diferente do que é hoje. Os jornalistas costumavam liderar o caminho, em vez de seguir servilmente o fluxo superficial do tráfego da internet. A história de rapaz errático do Brooklyn vencendo o império soviético em seu esporte nacional fez uma boa cópia para os jornalistas, que entenderam o significado do evento. Durante dois meses, diariamente, o jogo sustentou manchetes de primeira página nos principais jornais do mundo, com os comentaristas analisando cada movimento durante até cinco horas a cada dia.
Naquela época, havia poucos canais de televisão. Não existia aparelhos de DVD ou serviços pay-per-view. Apesar disso, essa não era a única razão para as pessoas ficarem grudadas em seus aparelhos de TV para assistir o jogo. O ambiente surreal, as surpreendentes jogadas de xadrez e a Guerra Fria como pano de fundo tornaram Fischer uma das pessoas mais famosas no mundo naquele verão. Não vou me vangloriar a ponto de afirmar que foram as análises que atraíram a atenção, embora eu tenha sido um comentarista do crucial 13º jogo.
Para o campeão americano, a partida foi a culminação de duas décadas de busca do título, começando em seus dias de criança prodígio. Após uma vida inteira em relativa pobreza para um superstar (embora ele frequentemente aparecesse nas capas das principais revistas), Fischer se viu, enfim, disputando uma partida com uma bolsa de US$ 250 mil. Claro, isso era uma ninharia se comparada aos US$ 2,5 milhões que cada lutador havia garantido na luta Ali-Frazier de 1971. Mas Fischer reconheceu que a cultura americana marginaliza qualquer iniciativa que não produza uma fortuna, então ele viu o prêmio de seis dígitos como o mais alto símbolo de prestígio de seu esporte.
Para a Rússia, a partida não tinha a ver com dinheiro, mas sim com corações e mentes. O mundo do xadrez há muito havia sido o campo de batalha para se provar a superioridade do sistema comunista. Embora os ocidentais hoje finjam que sempre se soube que o comunismo à Rússia iria fracassar, isso não era tão óbvio àquela época. O principal texto introdutório de economia do período, do Prêmio Nobel Paul Samuelson, ainda previa que a Rússia poderia superar os EUA como a maior economia do mundo. Para sermos justos, os russos valorizavam enormemente o jogo de xadrez, mesmo sem produzir muita renda. De várias formas, o xadrez era o esporte nacional da Rússia. Não admira que a busca quixotesca do título de campeão por Fischer levou ao mentor da política americana Henry Kissinger a se reunir com Fischer e instá-lo a não desistir, como ele ameaçara fazer.
Qualquer que fosse o seu status nos EUA, Fischer era certamente o americano mais querido na Rússia. A majestade de seu jogo transcendia a propaganda num país onde diariamente as pessoas podiam apreciar e entender a beleza própria do jogo. Na preparação para o campeonato, Fischer derrotou dois oponentes muito bons com histórico placar de 6 a zero, um resultado surpreendente, quando muitos jogos de grandes mestres acabam em empate. Os torcedores russos ficaram tão estimulados pelo feito sem precedentes de Fischer que, conta-se, chegaram a congestionar as linhas telefônicas de Moscou para tentar obter informações. Depois de um tempo, as telefonistas simplesmente atendiam as ligações dizendo “6 a zero” e desligavam. No fim, até mesmo Spassky prestou o último tributo à genialidade de Fischer, aplaudindo com o público após a inspirada sexta vitória de Fischer, como mostra o filme. O americano pode ter sido o maior gênio do xadez, mas o russo teve o maior gesto de classe.
O diretor Edward Zwick não se esquivou de mostrar os demônios que atormentavam Fischer. Ele se preocupou coerentemente que o russos não poupassem esforços para evitar que ele fosse campeão, mas no fim as preocupações racionais se transformaram em paranoia, e Fischer começou a se voltar contra seus amigos e confidentes. Ele se tornou antissemita, mesmo sendo judeu.
Suspeita-se que, no mundo on-line de hoje, a paranoia de Fischer e suas falhas pessoais o teriam derrubado bem antes de se tornar campeão. Depois que Fischer venceu o campeonato e simplesmente parou de jogar xadrez em competições, sua enfermidade mental piorou. Embora ninguém possa condenar os surtos virulentos e pensamentos sombrios de Fischer em seus últimos anos (ele morreu em 2008), é triste perceber que alguém com tal criatividade e genialidade, que inspirou tantos por meio de seu xadrez, tenha tido sua carreira encerrada num estágio muito mais cedo do que ocorre hoje. Vivemos num mundo distinto. “Pawn Sacrifice” relembra um mundo em que as qualidades de Fischer eram possíveis.
Kenneth Rogoffex-economista-chefe do FMI, é professor de Economia e Política Pública na Universidade de Harvard