Nem só de sexo viviam os libertinos
Análise de obras censuradas do século XVIII sugere que autores se pautavam mais pela razão do que pela devassidão
GUSTAVO FIORATTI | Edição 196 - Junho de 2012
A última definição do Dicionário Houaiss para o termo (as citações acima provêm da mesma fonte) é a que mais se aproxima do valor semântico abordado por Luiz Carlos Villalta em seu estudo Livros libertinos e libertinagens em Portugal e no Brasil no ocaso do Antigo Regime. Na pesquisa de pós-doutorado realizada pelo professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), esse sujeito também pode ser aquele que, ao exercer a liberdade de reflexão, “desconsidera regras e dogmas religiosos”. Ou seja, a devassidão tem um lado político forte.
Em uma edição do século XIX do Diccionario da Língua Portugueza, libertino é ainda “o que sacudio o jugo da Revelação, e presume, que a razão só póde guiar com certeza no que respeita a Deus, á vida futura, &c.fig. o que é licencioso na vida; neste sentido é moderno”. A existência de Deus, aqui, passa a ser analisada por meio da razão e não pelo prisma dogmático.
Outras definições para a palavra, adaptadas de acordo com o período histórico, contexto cultural ou idioma, recriam, no fim das contas, a figura do homem da época moderna, que, sacudido pelas ideias iluministas, estabeleceu a razão como ferramenta essencial para reconfigurar um mundo até então calcificado em torno de duas fortes presenças: a da Igreja e a da Monarquia.
Muitos dos documentos utilizados estão hoje guardados pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Mas há também fartura de livros publicados e ainda hoje editados, como as obras do português Manuel Maria du Bocage (1765-1805) e do francês Marquês de Sade (1740-1814), para citar dois dos principais nomes relacionados ao gênero.
Villalta é um estudioso da história do livro desde a década de 1980. Seu doutorado foi sobre censura, também sobre bibliotecas e as práticas de leitura em Portugal e no Brasil. Em suas investigações anteriores, ele tangenciou, por mais de uma vez, menções a autores denominados libertinos, inclusive em confissão atribuída a um integrante da Inconfidência Mineira, Cláudio Manuel da Costa.
O básico do ideal libertino, defende Villalta, reside no uso da razão como crivo para compreender o mundo. Por conta do primado da razão, o libertino assume a função de crítico por excelência, principalmente em relação às “verdades” estabelecidas pelas autoridades religiosas, muito embora – e agora sim as práticas sexuais podem definir um tópico dentro de um pensamento – seus princípios acabem contestando o comportamento moral cristão também na prática.
A razão, no entanto, raramente se presta à contestação de um único item. Foi na segunda metade do século XVIII, segundo Villalta, que o termo ganhou um novo atributo entre autores europeus e luso-brasileiros. Passaram a ser libertinos também aqueles que se opunham à Monarquia absoluta. “Se usamos o primado da razão, temos a liberdade de criticar não só a religião, mas também a ordem política”, resume Villalta.
Isso não significa que todo libertino se dedicava a observar ambos os sistemas político e religioso. Há casos de autores que se debruçam sobre um ou outro aspecto. E, como exemplo de dissociação de temas, pode ser citada a obra de Jean Baptiste de Boyer, o Marquês d’Argens (1704-1771), nobre francês a quem é atribuída a autoria do romance Teresa filósofa.
Marquês d’Argens, diz Villalta, questiona os dogmas religiosos ao exercitar sua liberdade criando na literatura situações consideradas imorais pelas autoridades. Descreve-as com riqueza singular, algo a provocar inveja em qualquer roteirista do gênero erótico de hoje. “Mas, em nenhum momento, se opõe à Monarquia absoluta”, aponta o pesquisador. Da mesma forma, havia autores da época retratada que se opunham ao sistema político e que, no entanto, continuavam fazendo o sinal da cruz.