Publicado no Globo
Nas últimas horas do ano legislativo, o deputado Izalci Lucas (PSD) foi ao microfone:
— Senhoras e senhores parlamentares, eu acabei de receber um telefonema que me preocupou. Disseram-me: “Izalci, estou assistindo à TV Câmara e, sinceramente, não estou entendendo nada.”
Alguns riram, até porque nenhum dos 400 deputados era capaz de explicar.
Numa ironia da história, a Câmara terminava 2017 de forma inimaginável: com o PMDB e o PSDB festejando a aprovação de um projeto dos governos Lula e Dilma; o PT e o PCdoB repudiando a iniciativa dos ex-presidentes petistas por suspeita de “entreguismo” ao imperialismo ianque; e o PSOL celebrando um êxito do governo Michel Temer.
Sobrava perplexidade, resumida em versos mal escritos e recitados na tribuna por Pompeo de Mattos (PDT-RS): “Neste ano findo/ Para onde estamos indo?/ O que queremos afinal?”
Decidia-se o Acordo sobre Transportes Aéreos entre o Brasil e os Estados Unidos, negociado pelos governos Lula e Dilma Rousseff.
Por ele, Dilma viajou a Washington em 2012. Na segunda-feira 9 de abril, vestiu um tailleur vermelho e preto e foi à Casa Branca. Encontrou Barack Obama, a bordo de um terno cinza e gravata de listras largas. Assinaram o acordo de “céus abertos” para a aviação civil.
Cinco anos depois, na noite de terça passada, o texto foi à votação na Câmara. O deputado Mauro Pereira (PMDB-RS) ironizou:
— Vamos fechar o ano votando um projeto da ex-presidenta Dilma. Olhe que moral a bancada do PT vai ter hoje!
O PT reagiu mal.
Rejeitou a própria criação. E, pior, levantou suspeitas de que o projeto favorecia o entreguismo do setor aéreo nacional à sanha imperialista.
— Em defesa da soberania e do povo brasileiro, o partido é contrário a essa proposição — anunciou Erika Kokay (PT-DF), arrematando. — É preciso que neste Parlamento pulse o coração verde e amarelo! Quebrarão as nossas empresas e depois exercerão um monopólio, o que fará com que aumentem o preço das passagens aéreas de forma exorbitante.
Ao lado, Marcus Pestana (PSDB-MG) exasperou-se:
— Esse acordo é dos presidentes Lula e Dilma. Agora, só porque é com os EUA, ressurge o fantasma do imperialismo. É impressionante o anacronismo da esquerda brasileira.
Parecia impossível, mas aconteceu: PMDB e PSDB celebraram a aprovação do projeto dos ex-presidentes petistas, que acabara de ser rejeitado com repulsa pelo PT e o PCdoB.
A confusão aumentou quando Chico Alencar (PSOL-RJ), depois de listar as “perdas do povo” com o reformismo governamental durante 2017, proclamou louvores, literalmente, a uma iniciativa do governo Michel Temer:
— Devemos comemorar a liberação dos saques em contas inativas do FGTS.
No tumulto, André Amaral (PMDB-PB) viu um microfone vago, agarrou-o e apelou ao prefeito da sua paraibana Mataraca:
— Recoloquem a estátua do boi Diamante em praça pública. Ele representa a história de luta do povo, e inclusive carregou sua mãe quando foi dar à luz sua irmã: era com a carroça no lombo de Diamante que se faziam todos os serviços na cidade, hoje realizados pelo trator da prefeitura.
E assim terminou o ano da graça de 2017 na Câmara dos Deputados.