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terça-feira, 4 de setembro de 2012

Escravos de ontem, escravos de hoje


joão pereira coutinho

Diário da Europa

03/09/2012 - 03h00

Crimes sobre crimes

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Ninguém de bom senso nega a evidência. A escravatura foi um crime indesculpável e hediondo. Foi? Corrijo o tempo verbal. A escravatura é, ainda hoje, um crime indesculpável e hediondo.
Tempos atrás, Benjamin Skinner, autor de um livro fundamental sobre o assunto ("A Crime So Monstrous"), afirmava na revista "Foreign Policy" que existem agora mais escravos do que em qualquer outro período da história humana. Skinner narrava exemplos brutais de trabalho braçal forçado em África, na Ásia, até nas Américas.
A escravatura é um crime indesculpável e hediondo que não poupou, nem poupa, nenhum canto do globo e nenhuma civilização conhecida. Mas a pergunta fatal, que normalmente emerge sobre o tema, é outra: devem as vítimas da escravatura e de outras formas de segregação racial praticadas pelo Ocidente (branco) serem indemnizadas pelos seus sofrimentos passados?
Claro que as vítimas propriamente ditas já não estão entre os vivos. A questão lida com a descendência da descendência da descendência.
As "políticas afirmativas" dizem que sim. Se a história tratou mal os negros, por exemplo, deve haver cotas para eles --nas universidades, nas forças armadas, nos cargos públicos etc.
Entendo o raciocínio. Não concordo com ele. E mais: quem pensa que as "políticas afirmativas" passam pela criação de cotas não entendeu o seu significado original.
Foi na década de 1960 que John F. Kennedy iniciou as primeiras medidas de "affirmative action". Só que a intenção de Kennedy não era reservar cotas para grupos em universidades, forças armadas ou cargos públicos.
Pelo contrário: Kennedy desejava apenas derrubar barreiras - raciais, mas também religiosas ou culturais - que impediam certos grupos de acederem a determinados lugares ou profissões. Kennedy não transformava uma discriminação (negativa) em nova discriminação (positiva). O presidente pretendia apenas terminar com a primeira.
Infelizmente, a visão de Kennedy não sobreviveu ao dilúvio politicamente correcto, que transformou as políticas de "affirmative action" em pura engenharia social. Como? Reservando lugares em universidades ou cargos públicos para certos grupos, ignorando o mérito de cada um dos seus membros.
Eis, no fundo, o erro que o Brasil repete com a lei das cotas sancionada por Dilma Rousseff. Segundo essa lei, metade das vagas nas universidades federais serão para alunos do ensino público e, claro, para negros, índios e pardos.
Já escrevi nesta Folha sobre a aberração ("O céu é o limite", Ilustrada, 29/5/2012). Mas é impossível não voltar ao local do crime e repetir: a lei, longe de acabar com o racismo, é ela própria um exemplo de racismo.
Em primeiro lugar, é um exemplo de racismo porque mimetiza o pensamento racista nos seus pressupostos. Nenhuma sociedade é composta por grupos. As sociedades são compostas por pessoas - únicas e inconfundíveis. Com méritos e deméritos particulares.
Quando a cor da pele é mais importante do que essas singularidades, isso significa um dupla injustiça: uma injustiça sobre o mérito individual (de todas as raças); e até uma injustiça sobre negros, índios ou pardos. Ninguém merece que a pigmentação da sua pele seja a marca mais importante da sua personalidade - e do seu carácter.
Mas a lei é punitiva, também, para a própria sociedade brasileira. Fato: os negros, os índios e os pardos podem estar sub-representados na vida política e social do país. Na última Ilustríssima, Luiz Felipe de Alencastro escreveu um artigo interessante ("As armas e as cotas") onde reclamava mais negros e mulatos "no alto oficialato das Três Armas".
O problema é que essa sub-representação não pode ser corrigida a partir do topo. E não cabe à universidade - ou às forças armadas, ou ao judiciário, ou ao legislativo etc. --ser um arco-íris multiculturalista onde um país expia os seus pecados.
A universidade deve acolher a excelência, independentemente da cor da pele; e deve produzir os melhores profissionais para benefício da sociedade. Médicos, engenheiros ou professores que são apenas o produto de um sistema de cotas são um empobrecimento real para o Brasil.
Corrigir um crime com outro crime é apenas uma forma de perpetuar a injustiça.
João Pereira Coutinho
João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do "Correio da Manhã", o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve às terças na versão impressa de "Ilustrada" e a cada duas semanas, às segundas, no site.