Minha filha me reprogramou
Filhos renovam os pais. Em vez de resistir, aprenda com eles
Volto para casa depois de um dia de trabalho e encontro minha filha, de pijama e toalha na cabeça, esparramada no sofá. Esparramada, mas não exatamente relaxada. Os pés descansavam sobre o braço de tecido acolchoado, mas as mãos e o cérebro trabalhavam com velocidade. Sem que ela tirasse os olhos do iPad, trocamos algumas palavras.
- Não dá para falar agora, mãe. Preciso terminar esse vídeo até amanhã.
Alguns dias antes, minha menina de 12 anos havia pedido para comprar, com meu cartão de crédito, um programa para ajudá-la a produzir vídeos no tablet.
Em cima da cama, a montanha de álbuns da infância, recheados de fotos em papel, dava uma pista do projeto que a mantinha tão concentrada. Quando ela finalmente explicou do que se tratava, sorri por dentro. Feliz, orgulhosa da sensibilidade da cria.
A amiga mais próxima, vizinha de porta, companheira de aventuras desde que as duas tinham um ano de idade, faria aniversário no dia seguinte. Depois de tantos anos dividindo tudo, as duas terão de se acostumar com a ideia da separação. No final do ano, a garota se muda com a família para o Exterior.
Bia, minha filha, quis preparar um presente especial. Alguma coisa que a quase irmã pudesse ver e rever, sempre que tivesse saudade ou vontade de relembrar as emoções daquela convivência. As brigas, os chamegos, o apoio mútuo, os desafios, as descobertas dos primeiros anos.
O vídeo ficou pronto naquela mesma noite. Quando sentei ao lado dela para assistir, tentei disfarçar meu coração de manteiga. Em vão, é claro. Se existe alguém que conhece meus excessos esse alguém é ela.
Meus olhos ficaram molhados logo na primeira cena. Assim que surgiu na tela o nome de sua produtora imaginária. O que vi depois do “BiaSegatto Filmes apresenta...” foi um lindo exercício de síntese. A escolha da palavra exata, da imagem exata para traduzir em pouco mais de um minuto uma história que demorou 12 anos para ser construída.
A história daqueles dois pacotinhos de gente que cresceram e estão virando adolescentes cheias de gostos, de opiniões e de uma alentadora capacidade de enxergar o outro com olhos solidários.
Escolher a palavra exata, a imagem exata, a síntese perfeita é também a obsessão do meu ofício. Persigo a simplicidade, a clareza, o essencial. A Bia, que já me ensinou tanto sobre a vida, está me ajudando também a avançar nesse objetivo profissional.
A geração dela está exposta a um bombardeio sem precedentes de informações, de estímulos visuais, sensoriais, de luxo e de lixo. Por isso mesmo, essa geração desenvolveu uma capacidade incomum de ir direto ao ponto. De pinçar o que interessa. De selecionar, classificar, resumir. É econômica na linguagem e no uso do tempo, mas não perde de vista o alvo de interesse. É a geração dos olhos de lince.
saiba mais
- O mundo é dos mansos
- Feliz com pouco, feliz com muito
- Aprendendo a ser razoável
- O segredo dos gordinhos saudáveis
- Uma novata no SUS
- TV, sofá e, na parede, o seu DNA
- "A vida com meu pai era um inferno"
- "Não existe homem fiel"
- Ah, se a hepatite fosse a aids...
- A mãe inconformada e a presidente
- Parar de fumar engorda quanto?
- Doentes felizes
- Gordinha e desavergonhada
- As garotas e a imagem corporal distorcida: quando casar sara?
- O Estado e a mulher que aborta
- Legião Urbana, Wagner Moura e a solidão feliz
Já pedi para a Bia me dar umas aulas com o programa novo. Vou aprender com ela a fazer vídeos, vou me exercitar na arte do despojamento, vou aparar os excessos. Essa menina me reprogramou. E a obra está inacabada. Enquanto houver vida existe a chance de reinvenção.
Sempre é possível fazer diferente. E até mesmo desafiar os limites biológicos da reinvenção. Que nos sirva de inspiração o trabalho que rendeu nesta semana o Prêmio Nobel de Medicina ao japonês Shinya Yamanaka.
Ele também é um obcecado pelo fundamental, pelo indispensável. E assim descobriu os quatro genes essenciais capazes de fazer uma célula adulta voltar no tempo. E se comportar como se fosse imatura, embrionária, com o potencial de seguir qualquer caminho, virar qualquer coisa.
Não gosto de usar a palavra “revolucionária” para me referir a criações científicas. Esse cuidado nos livra do risco de anunciar uma revolução por dia, mas a descoberta de Yamanaka realmente mudou os rumos da pesquisa biomédica. Por isso, ele ganhou um Nobel em apenas seis anos – um reconhecimento que os laureados costumam levar décadas, ou uma vida inteira, para conquistar.